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💫 Pontes Imortais ― Capítulo 8
Histórias de infância
Começando outubro do jeitinho que a gente gosta: com o último capítulo do primeiro arco de Pontes Imortais! Sim, este é um capítulo de revelações, então leia com atenção. A partir da semana que vem, as coisas se intensificam um bom tanto e é bom estarem preparados!
No capítulo anterior… Tomás aceitou o conselho de Lótus, bancou o stalker e foi parar no meio de um show de metal, mas parece que a investida fez um grande favor para o envolvimento entre ele e Yue. Nas Cidades Flutuantes, tínhamos visto a relação bem questionável entre Oz e os pais, o dom especial de cura de Yan e o potencial artístico da nossa Sereia, Li’a. Quais serão os pontos fracos e segredos de uma diplomata tão importante? Vocês descobrem agora.
A música para o capítulo é João e Maria, de Nara Leão e Chico Buarque.
Capítulo 8 — Histórias de infância
Farkas, Pré-Hecatombe
As asas do Fronteiriço seriam largas o suficiente para cobrir a lua.
Era assim o começo de uma das histórias infantis mais amadas de Nivaria, sobre quando Niva, antes de se tornar um Imortal, protegeu a cidade de uma das criaturas voadoras saídas do vórtex.
Nivarianos não conheciam a lua, mas decoravam as histórias sobre ela, a mitologia de outros universos espalhada boca a boca por histórias e cânticos. Havia muito nas Cidades Flutuantes que pertencia a outros mundos, fossem suas roupas ou quitutes, a tecnologia, e até mesmo os contos que atravessavam gerações — todos vindos, de uma forma ou de outra, pelo vórtex.
Oz também nunca tinha visto uma lua; mas, no momento em que o Fronteiriço abriu as asas de morcego, grandes e articuladas, feitas de uma pele tão fina que era possível ver através dela as luzes da noite, foi tomado pela mesma sensação de quando ouviu a história pela primeira vez, anos e anos atrás, ao lado de Maali e Yan.
A sensação de que proteger Farkas das criaturas do vórtex era o mais nobre motivo para ter sido presenteado com mãos tão fortes.
― Jovem Mestre… ― A voz do júnior mais próximo não estremeceu por pouco. Oz precisava dar créditos à força de vontade dele. ― O que devemos fazer?
Fronteiriços eram raros em Farkas, tão distante do vórtex que apenas as criaturas aladas, mais incomuns, conseguiam alcançá-la. Quase tudo que Oz sabia sobre aqueles trastes era conhecimento de caça nivariano, coisa que ainda tinha nas memórias sobre Maali.
― Alertem os discípulos mais velhos para se armarem com lanças ― Oz ergueu a voz. Ao fundo, o alarme da cidade soava como uma onda de gritos entoados pelas centenas de pássaros-engrenagem espalhados pelo território. ― Eu não quero saber de ninguém portando armas curtas perto daquela coisa. Vocês e quem dos mais novos for bom com o arco, mirem as asas. Derrubem ele do ar.
― Oz ― Yan surgiu às suas costas, vindo de dentro do Hall. ― É um ataque Fronteiriço?
― É, vira-lata? Por isso que os curupacos tão enlouquecidos? ― Shu despontava pelo cabelo de Yan, se apoiando em sua cabeça bem quando o bicho voltou a revoar, fazendo sombra sobre as cabeças do grupo.
As pupilas de Yan se contraíram no instante em que pousaram sobre o grande corpo da criatura.
― Vai pra dentro ― Oz rebateu. ― E leva a lagartixa com você. A não ser que ele queira pegar em armas e ser útil.
― Com essas patinhas? Não, obrigado. ― Shu virou a cara.
― Devo chamar o Mestre Farkas? ― Yan voltou a perguntar. O que recebeu em resposta foi um rosnado.
― Ele ouve os mesmos alarmes que nós. Viria se julgasse necessário ― Oz bufou.
Não chamariam seu pai. Não para que ele tivesse mais uma oportunidade para tratá-lo como um garoto. Era apenas um Fronteiriço desgarrado. Seria realmente um júnior se não soubesse como resolver um problema desses com sua própria autoridade.
― Vamos! ― Voltou a bradar pelos discípulos que se acumulavam ao redor do portão. ― Yan, fica lá dentro ― ele repetiu o pedido, com a voz mais gentil.
A lança trazida para ele por um leva-e-traz era pesada, de material resistente para que não se quebrasse; e longa, para evitar combates a curta distância. Não era uma arma espiritual, mas era de qualidade.
Eles saíram em direção aos arredores da cidade. O bicho tinha voado para além do centro, no caminho para a ponte que levava a Banjora.
Yan os assistiu de dentro dos portões ainda abertos, as mãos cuidadosamente pousadas no batente, enquanto os funcionários internos se agitavam para cima e para baixo do Hall, alarmados pelo som alto dos pássaros.
― Então… ― sibilou Shu. ― Não vamos ficar, né?
― O que te faz pensar isso? ― Yan questionou, tateando o interior da bolsa para se certificar de que não esquecera de nada. Foi uma sorte que Oz não tivesse notado que calçava botas.
Um leva-e-traz passou por perto. Yan acenou, dizendo que estaria por ali se precisassem de algo. E então deslizou o corpo pela abertura assim que ele se afastou.
― Por que não podemos ficar lá dentro, no quentinho? ― Shu resmungou, dramático.
― Porque tem um Fronteiriço nos céus e os farkasianos não têm a menor experiência nesse combate ― Yan confessou, aos sussurros. ― Eu só quero checar se o Nyan está bem. E a minha mãe ― completou, revirando os olhos.
― Mas isso é… ― Shu apontou a patinha no ar, tentando se localizar.
― Na direção da antiga ponte para Nivaria, sim. O bicho foi pro outro lado. Não vai ter problema. ― Ele tocou a cabeça de Shu num afago suave.
― Você precisa de uma aula de direção! ― Shu se agitou. ― A gente tá indo pro mesmo caminho daquela coisa!
― Shh, vai ficar tudo bem. Você tem pulmões potentes pro caso de a gente precisar gritar ― Yan brincou, se esgueirando pela noite com passos apressados, em meio à confusão de pessoas.
― Me preocupa que você confie nos pulmões de um lagarto mais do que nos seus ― Shu apertou as patas em seu cabelo. O olhar agitado avaliava os arredores em busca de qualquer sinal de ataque. ― Se morrermos de um jeito tão imbecil, eu te mato!
― Fica alerta, Shu. Me avisa se vir algo estranho.
Desde que não esbarrassem em Oz, não havia ninguém para tirá-lo daquele caminho. E, pelos gritos de ataque que ouvia mais à frente em meio ao alarme, não esbarrariam.
*
Fora um dia cheio na agenda de Li’a. Havia passado toda a manhã em reunião com o líder Farkas e, durante a tarde, se encontrado com as lideranças menores da cidade. Em geral, Tapisa não a acompanhava em seus compromissos políticos, mas na ausência de Kuí ― chamado às pressas para um compromisso diplomático na fronteira ― as ordens eram para que não saísse do lado dela.
Minutos antes de os alarmes começarem a soar, uma Tapisa emburrada folheava revistas de moda na boutique que Li’a decidira visitar ― como se o dia já não tivesse sido enfadonho o bastante. A moda de Farkas, baseada em tecidos finos e decotes exuberantes, não fazia muito o estilo da diplomata, mas o instável clima farkasiano estava tirando Li’a do sério, e ela precisava adaptar o próprio guarda-roupa.
― A senhora tem certeza de que não quer contratar um dos nossos estilistas? ― A dona da loja, uma madona tão simpática quanto suas jóias eram grandes, voltou a perguntar.
― Eu prefiro deixar a confecção das minhas roupas a cargo da trupe ― Li’a repetiu, bem-disposta. A máscara em seu rosto naquela noite tinha o mesmo tom de vermelho-sangue dos cabelos de Tapisa. ― Mas lembrarei de indicar os tecidos deslumbrantes que a senhora tem por aqui, sem sombra de dúvidas.
A promessa fez os olhos da mulher brilharem. O toque certo de um diplomata e a roda da fortuna poderia trabalhar a favor de alguém.
Tinha feito a lição de casa e se informado sobre cada um dos principais diplomatas da Ópera, seus nomes e gostos pessoais. Principalmente daquela que, de acordo com alguns clientes, tinha sido a estrela de uma apresentação exclusiva para o clã Farkas. Sabia quem era Li’a assim que ela cruzara a porta, e tinha preparado uma infusão de flores de cerejeira para recebê-la, com uma pequena dose de destilado doce para agradá-la e umas boas pedras de gelo, para fazer honra à fama de calorenta da diplomata.
― Que diabos é isso? ― Tapisa questionou, franzindo a testa. Embora a porta da boutique fosse pesada, o som a atravessava, agudo e constante. Através do vidro fosco, viu sombras se movimentando rapidamente do outro lado.
― Eu não… Faço ideia. Algum tipo de alarme ― a mulher sussurrou em resposta, olhando Li’a em seguida. ― Senhora…?
Agarrada ao balcão com os dedos finos, a diplomata parecia uns bons tons mais pálida.
― Tá, eu vou conferir ― Tapisa respondeu, emburrada, abrindo a porta antes que Li’a pudesse impedi-la.
A sombra diáfana de alguma coisa no céu se refletiu no chão iluminado pelas lanternas flutuantes da cidade. Tinha asas e o corpo alongado e humanoide, como o de um gárgula. Com a porta aberta, o alarme era como o lamento de um animal ferido, tão alto que machucava os ouvidos. As pessoas corriam sem rumo, mais assustadas com o barulho do que o acontecimento. A falta de experiência era notável, não só pela reação desorientada da população, mas pela falta de organização que tomava Farkas, fruto de um alarme sem instrução.
Da esquerda, um grupo de discípulos do clã principal surgiu a passos largos, liderados por uma figura alta, de vastos cabelos negros, com um crânio animal sobre a cabeça.
Oz, o herdeiro Farkas. E seu grupo de discípulos mais velhos, armados com lanças. Agora que o via de mais perto, Tapisa não pôde deixar de pensar que aquela criatura era graciosa o bastante para ser transformada em simpáticas tortinhas. Pelo tamanho, em uma boa porção delas.
― Eles vão matar o bicho? ― exclamou, excitada, já se adiantando para a rua. ― Senhora, fica aqui, eu vou espiar! Sempre quis ver como se mata uma coisona dessas!
― Tapisa! ― Li’a tentou gritar com o pouco ar que havia em seus pulmões no momento.
Ignorando a dona da boutique, Li’a correu para fora. No calor, era mais difícil ignorar o alarme dos pássaros-engrenagem. O som se agarrava aos ouvidos como as garras de um pesadelo.
Ao primeiro sinal da torre de vigia, todos os residentes devem permanecer em casa ou procurar o abrigo de emergência mais próximo. É imprescindível manter em boas condições os kits de emergência. As luzes devem permanecer apagadas até que o sinal de contenção seja enviado.
Ela balançou a cabeça para calar as vozes dentro dela. Tapisa saltitava não muito longe de si, mas as pernas de Li’a eram fracas demais para conseguir alcançá-la tão facilmente. Voltou a gritar o nome da garota e, daquela vez, tudo que emitiu foi um grunhido rouco. Os pulmões chiavam com o esforço e Li’a sentia a vertigem de um colapso começar a se espalhar pelo corpo.
O caos ao redor evocava imagens antigas. Por que uma coisa assim tinha de acontecer justamente quando Kuí não estava na cidade? O medo do Fronteiriço nos céus só não era maior do que o medo de enfrentar aquele inferno sem ele.
Existem três tipos de flecha: 1. Flechas sinalizadoras. Certifique-se de utilizar a cor correspondente à mensagem enviada. 2. Flechas de contenção. Restritas à equipe de contenção, servem para paralisar a presa visada. 3. Flechas de aniquilação. Restritas à equipe de caça, só devem ser disparadas com a mira fixada. Evite o desperdício de recursos.
Li’a tentou gritar para sufocar as memórias, forçando os pés desorientados a seguir adiante. Tapisa parou alguns passos à frente, em meio ao cerco de luzes flutuantes de uma praça. Na rua de baixo, o bicho voador começava a perder altitude por conta das incontáveis flechadas em suas asas.
― Sua imbecil ― Li’a soprou, segurando o pulso de Tapisa com tanta força que as garrinhas de vidro que usava sobre os dedos, como anéis, afundaram na pele da garota. ― Quem te ensinou a correr direto para os braços da morte?
Li’a estava gelada, e bastou isso para que Tapisa se esquecesse do que acontecia ao Fronteiriço.
― Senhora… ― começou, dando um gritinho quando Li’a cambaleou em sua direção, os olhos se fechando. ― Senhora!
Tapisa a amparou no colo. Poderia carregá-la facilmente de volta para a Ópera, não fosse aquela confusão de gente ao redor. Tentou pedir ajuda a algum dos farkasianos que ainda corria em busca de abrigo, e foi ignorada. O Senhor Instrutor iria matá-la se Li’a aparecesse com um arranhãozinho sequer.
― Socorro! ― insistiu, os olhos marejados. Tinha medo do castigo, é claro, mas também tinha medo de Li’a morrer e deixá-la sozinha. ― Por favor, alguém…
― Vocês são da Ópera ― A voz do homem que a abordou era gentil, destoando do alarme inquietante. Ele tocou o rosto de Li’a na testa, então pressionou dois dedos sobre seu pulso, assentindo em silêncio. Tinha orelhas redondinhas como as de um ratinho e um lagarto pousado sobre a cabeça que sapateava sibilante. ― Não parece ser sério, mas vamos levá-la para a tenda de vocês antes de qualquer coisa. Eu sou curandeiro. Meu nome é Yan ― ele explicou, então olhou em volta, buscando por algo. ― Eu só não sei se consigo carregá-la até lá.
― Não se preocupa. ― Tapisa respirou fundo, erguendo Li’a no colo e ajeitando-a nos braços. Aceitaria qualquer ajuda naquele momento, e o nome de Yan era um que tinha gravado na memória. ― Você cuida dela e eu cuido dessa parte.
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A tenda-moradia da Ópera do Fim do Mundo era maior do que aquela reservada às apresentações. Em seu interior, a miscelânea de tons terrosos dava destaque aos detalhes em rosa, do mesmo tom elétrico e hipnotizante dos cabelos de seu Instrutor.
Era um universo próprio, com jardim interno e mobília requintada que parecia impossível de transportar, mas era, ainda assim, carregado através das pontes de um lado para o outro das Cidades Flutuantes, com uma estrutura que deixaria qualquer cidade com inveja. Lá fora, os animais de carga pastavam, tranquilos, entre bois simpáticos e grandes mamutes, cujos rostos bondosos traziam a Yan lembranças de infância.
Yan também apreciava o cheiro do lugar, discreto e doce como o de incenso, o cheiro de algo que Ravi cobiçaria no instante em que pousasse seus olhos. Embora parecesse feita de um único tecido esvoaçante, a tenda tinha um infinito de partições e pequenos cômodos cujos barulhos desencontrados de muitas vidas em um mesmo espaço deveriam chegar aos seus ouvidos, mas não chegavam. O som de cada um daqueles pequenos quartos pertencia apenas a quem o habitasse, um acréscimo de magia à altura de uma trupe de diplomatas.
Deitaram Li’a em sua própria cama, no segundo maior quarto. O centro do cômodo era ocupado por uma grande bola de luz flutuante, enevoada por fumaça de incenso. O pó com aroma de sonhos circulava os contornos da lâmpada como um delicado caminho de formigas. Em um canto, três grandes araras de bronze sustentavam tantas roupas que poderiam vestir uma pequena cidade; abaixo de cada arara, pares de sapatos enfileiravam-se impecavelmente. Era um luxo escancarado, mas despretensioso.
Yan soube o nome de Tapisa no caminho. A força daquela jovem de cabelos vermelhos esvoaçantes deixaria muitos juniores farkasianos com inveja. Ela trouxe a tigela de água gelada que lhe tinha pedido. E uma toalha macia.
Aromatizou o líquido com ervas secas, agitando-o calmamente com a ponta de um agrupamento de ramos preso com cipó, um potencializador de frescor. Então, com a toalha embebida no preparo, pousou-a gentilmente sobre a testa da diplomata desacordada, percebendo o instante em que ela entoou um leve suspiro de alívio.
― O clima de Farkas também me fazia mal quando era mais novo ― Yan comentou, com a voz baixa, como se não soubesse da magia óbvia que preservava os sons no interior dos quartos como sussurros. Shu tinha descido de seus cabelos e encontrado um canto macio sobre uma das almofadas que decoravam a cama. ― Eu preciso tirar a máscara dela ― avisou para Tapisa.
― Mas sem pressa, moça. Sem pressa ― Shu sibilou, se ajeitando sobre o tecido fino. A barriga branca refletindo a luz que vinha de cima.
Yan meneou a cabeça em um divertimento contido, então molhou os dedos na água cheirosa, espirrando pequenas gotas na direção do lagarto, que sorriu folgado. Já Tapisa não parecia tão animada. Andando de um lado para o outro diante deles, com os braços apertados contra o busto, parecia às vésperas de vomitar ou sair correndo.
― Cara, não me pede uma coisa assim, cara ― ela disse, roendo uma unha longa, pintada de vermelho. ― O chefão não tá aqui, a chefinha tá falecida e o zé ruela que assume no lugar deles deve tá na casa do caralho, chapado de incenso.
― Eu gosto dessa aí, Yan. É uma companhia melhor e mais cheirosa do que aquele vira-lata ― Shu provocou. Yan o olhou de canto em uma reprimenda.
― Eu vou ser o único a vê-la, senhorita ― o curandeiro explicou. ― Esse lagarto intrometido pode ficar escondido no meu cabelo. E seja qual for o motivo para que ela use a máscara, pode confiar que nenhum sussurro sobre isso sairá deste quarto.
― Tá. ― Ela estacou diante de Yan. Não era muito alta, mas com o rosto abaixado naquele ângulo, os olhos escuros pareciam emitir um leve brilho avermelhado, como um predador pequeno e esperto. ― Vocês curandeiros têm um juramento, não têm? De sigilo. É melhor mesmo que cumpra com a sua palavra porque se a minha senhora passar por qualquer transtorno por sua culpa, eu te caço e te como, bonitinho. Aposto que você é doce.
― Eu agradeço pelo elogio ― Yan respondeu, com um sorriso realmente doce. ― Me ameaçar não costuma ser um bom jeito de fazer amizades em Farkas, senhorita. Eu tenho um amigo meio esquentado.
― Caguei! ― ela retrucou, torcendo os lábios.
― Mas pode confiar na minha palavra como curandeiro ― Yan acrescentou, segurando o riso.
― Eu tiro a máscara. ― Tapisa se adiantou, sentando-se à beira da cama com cuidado. Só ela e Li’a tocavam nas máscaras. Não importava o quão bem-intencionado fosse aquele curandeiro ― e Tapisa nunca acreditava em boas intenções ― não deixaria que ele assumisse aquela tarefa.
A diplomata tinha um rosto anguloso, embora excessivamente magro, com lábios grossos. Yan assumiu que, em algum momento, a pele dela poderia ter sido de um saudável marrom-avermelhado, mas estava tão pálida que mais parecia um esboço de criatura. Aquela palidez não parecia ser culpa do clima, mas de uma condição pregressa.
― Você não deve se preocupar tanto com hoje. Os sintomas do calor são tão fáceis de ler que eu os notei assim que entramos na luz. Mas… ― Ele pontuava, enquanto deixava a toalha correr pelas maçãs do rosto de Li’a, vendo-as retomar um pouco do corado ao toque fresco. ― Ela me parece abatida de outros eventos. Seria inteligente que descansasse em algum lugar fresco. E que se alimentasse bem. Melhor do que agora ― acrescentou ao fim, ajeitando os óculos sobre o nariz.
Era peculiar. Uma Ópera influente como aquela, rica em moedas e segredos, com uma estrela cuja saúde parecia tão frágil.
Se demorou em seu rosto por um instante mais longo. A familiaridade em seus traços se unia ao aroma de sonhos. Ela era como os personagens de uma história de infância.
― Ela já teve desmaios como esse antes? ― perguntou, pousando a toalha sobre seu pescoço, aliviando um pouco a passagem de ar estressada por lidar com a umidade quente do ar de Farkas.
― Eu vou buscar mais água fresca ― Tapisa respondeu em lugar de dar qualquer explicação. ― Seja cavalheiro ― reforçou, estreitando os olhos para encarar Yan, levantando-se em seguida. ― Você pode usar a mesa da penteadeira como suporte, mas não faça bagunça, ou vai ter que limpar.
― Se a questão é ser cavalheiro, ainda bem que é você aqui e não o vira-lata ― Shu resmungou assim que teve certeza de que a garota estava longe. ― Aposto que ele ia sair espiando todos os baús chiques da mulher.
― Hoje você está implicando demais com alguém que nem está por perto ― Yan não se comoveu com os resmungos do lagarto. ― E Oz seria um bisbilhoteiro, sim, mas do tipo cavalheiro o suficiente para não chamar de mulher uma madame.
― Defende ele mais do que os muros do Hall… ― Shu voltou a resmungar, desistindo de sua pose com a pança para o ar e rastejando pela almofada até poder ele próprio espiar melhor o rosto da desacordada. Uma das patinhas mancou quando sustentou seu peso sobre o colchão. ― Que achou dela?
― Isso não é nada cavalheiro. Onde aprendeu essas coisas? ― Yan rebateu com um petelecozinho na cabeça que fez Shu abrir um curto berreiro em protesto antes de se distrair com uma mecha ondulada de cabelo branco.
― Ela parece feita de neve, não parece? Neve derretendo, cinza. Não a bonita.
― Shu! ― Yan ergueu um pouco a voz. ― Seria muito indelicado se ela te ouvisse.
Neve.
A cascata de cabelos brancos realmente se parecia com um campo coberto de neve. Não via um há tanto tempo…
Desceu uma mão até o decote trespassado de sua roupa, tomando o cuidado de não deixar que seus dedos tocassem a pele dela. Então, com a toalha ainda gotejando um pouco de água gelada, pressionou-a na abertura, subindo em direção ao pescoço, e voltando a descer, refrescando-a um pouco mais.
― Talvez ela tenha vindo de uma região mais fria ― sussurrou. Havia um frio na barriga quando pensava nesse tipo de clima. ― E, por isso, ainda não tenha recuperado os sentidos.
― Ela não parece com alguém das terras da tua mãe ― Shu rebateu. ― E mais frio que isso a gente sabe que ou tá voando solto no nada ou virou pó dentro do vórtex. Mas o que um pobre lagarto entende de geografia?
― Shu… ― Yan pediu baixo, em um tom frágil que o calou na hora. E então se levantou, segurando a tigela de água nas duas mãos, com a toalha mergulhada dentro.
Não podia fazer mais nada por ela agora, ao menos até que despertasse, o que não deveria levar ainda muito tempo. Era melhor tirar a água do caminho, para o caso de que acordasse agitada.
Um dos móveis mais ao canto do quarto era uma pesada cômoda de madeira maciça, com tampo inteiriço de mármore. Yan esboçou um sorriso impressionado ao notá-la.
― Como eles carregam tudo isso? É uma magia incrível, você não acha, Shu? ― Perguntou, apoiando sobre a tigela sobre o tampo. O toque do mármore sob seus dedos era frio como uma pedra no inverno. Aquilo o fez sorrir.
Se pegou ele próprio sendo o bisbilhoteiro quando seus olhos correram pelos objetos organizados sobre o móvel. Havia um pequeno abajur no formato de uma concha, e uma escova de cabelo feita de madrepérola, com cerdas macias como a pelagem de um búfalo; mais ao canto, uma pequena coleção de perfumes ― Yan tinha visto mais frascos do outro lado, mas teve a sensação, pelo nível de líquido no interior, de que aqueles eram os favoritos dela.
O espelho apoiado à cômoda era ovalado, emoldurado em padrões de flores douradas, e ficava logo atrás de uma almofadinha quadrada que apoiava uma caixa comprida.
Uma caixa que já tinha visto antes, há tempo demais para que se lembrasse bem… Se não fosse ele quem a tivesse escolhido, anos atrás, em uma ocasião especial.
Franziu a testa, sentindo os dedos trêmulos se esticarem naquela direção. O papel meio descascado que a revestia já vira dias melhores, mas ainda tinha o mesmo toque aveludado de que tanto tinha gostado na primeira vez em que a viu.
Ele vai gostar dessa, sua própria voz ressoou pela cabeça em uma memória vívida. Vai guardá-la com o mesmo carinho do presente.
Dentro dela, o presente repousava intacto, longo e arredondado em uma das pontas, como um palito, mas de material translúcido feito vidro. Uma das extremidades, retorcida como a de um galho fino, carregava na ponta uma delicada flor de ameixeira de mesmo material. A ponta oposta era reta, fina como uma agulha de tricô, e igualmente afiada.
Como uma arma.
― Tapisa…? ― A voz acetinada também era uma velha conhecida. Não estava escondida sob instrumentos e aplausos, mas exposta na intimidade de um pequeno cômodo.
Conhecida como tinha sido o aroma que a despertou. Não o do incenso, ao qual tinha se habituado, mas o aroma de ervas impregnado na pele de alguém que não há muito tempo tinha estado ao alcance de um toque.
― Oh. ― A voz de Shu foi um pouco mais potente. ― Essa raposa sonsa não deveria estar morta?
― Raposa…? ― Yan sussurrou. E virou o corpo encontrando os olhos cor de geada que o observavam da cama em completo choque. E um par de orelhas de raposa, brancos também como neve, que não estavam ali quando se levantou do canto da cama.
Poderia ser qualquer raposa. E aquele enfeite de cabelo poderia não ser tão exclusivo quanto o ourives havia garantido às jovens versões de si mesmo e de Oz, mas era incapaz de ignorar a marca na orelha direita: a cicatriz de uma mordida cujo padrão havia percorrido com a ponta dos dedos vezes sem fim.
― Maali. ― O nome escapou por entre seus lábios sem tom definido, qualquer coisa entre um suspiro aliviado e o medo sutil de quem acreditava ver um fantasma.
Continua…
E aí? Passam bem? O que acharam dessa revelação e do primeiro arco da história de Pontes Imortais? Esse foi só o começo de tudo, mas agora fomos apresentados devidamente a todas as peças do tabuleiro. Qual é o jogo, entretanto? Isso é algo para as próximas cenas.
No próximo capítulo… Quanta saudade vocês sentem de Vi e Yue quando eles não estão em cena? Tivemos poucas chances de ver esses dois juntos. Talvez tenha chegado a hora de ver detalhes sobre certas amizades.
O Capítulo 9 — Eu tenho um convite chega no dia 13 de outubro às 12h! Sexta-feira 13, outubro… Uma bela ocasião pra cutucar os monstrinhos dentro de vocês com o fantasma dos sentimentos não ditos.
Nos vemos logo!
Ei, vizinho! Não esquece de me acompanhar nas outras redes! 💫
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