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💫 Pontes Imortais ― Capítulo 6
A Bela e a Fera
Boa sexta, vortexianos! Uma nova semana = um novo capítulo de Pontes Imortais! Bora lá?
No capítulo anterior… Tomás ficou tão distraído com a presença de Yue que até transbordou a garrafinha d’água no bebedouro, mas parecia bem o bastante para discutir detalhes do seu encontro com Vi na mesa do café durante o aniversário de Lótus. Na nossa última visita às Cidades Flutuantes, vimos parte da celebração do Festival da Vitória e os segredos que o bosque esconde. Nem todo mundo é tão leal assim o tempo todo, né? Eu certamente… Vou deixar vocês descobrirem. Tá na hora de ver um pouco mais sobre as dinâmicas de poder da família Farkas e de conhecer a nossa Sereia. Prontos?
A música para o capítulo é Mermaids, de Florence and The Machine.
AVISO: Este capítulo contém cenas de violência física.
Capítulo 6 — A Bela e a Fera
Farkas, Pré-Hecatombe
Ravi tinha um pigarro persistente preso na garganta. Não era uma tosse completamente seca, mas do tipo que vem dos pulmões, irritante, subindo até o topo da garganta e grudando nela com um leve sabor adocicado. O catarro o irritava. Parecia disposto a tirá-lo do sério como se fizesse de propósito. E estava conseguindo. Estivera ali por toda aquela manhã. Yan o acompanhava em silêncio, parado em pé ao lado de sua cadeira pomposa.
― Pelo menos deixa ele sentar ― Oz reclamou do assento ao seu lado. Estavam ali há horas e já tinha visto Yan ir e voltar com chá mais vezes do que achava tolerável. ― Ele é um curandeiro, não um leva-e-traz. Yan, vem aqui.
― Rapaz, fica ― Ravi ordenou.
Yan não se mexeu. Segurava uma bandejinha onde havia um novo bule de chá, o terceiro daquela ocasião. O copo de cerâmica sumia na mão de Ravi. Às vezes, até parecia que ele poderia engoli-lo sem querer.
― Está tudo bem. Não estou cansado ― comentou ao ver a forma como a boca de Oz começava a se alterar numa ameaça de rosnado.
― Oz, não seja tão afrontoso com o seu pai ― pediu Juno, à direita do líder Farkas.
Era a mais ponderada da sala, ainda que tenha estado ao lado de Ravi em todas as escolhas que ele fizera, fossem boas ou questionáveis. A mãe de Oz não era uma farkasiana de nascença. Nem da família que emprestava o nome à Cidade, nem mesmo uma cria de suas províncias. Nascida em Banjora, usava com orgulho as suas próprias vestes vermelhas como sangue, cobertas por uma túnica aberta caída até abaixo da linha dos ombros, que ela segurava contra o peito.
― Talvez um gole do seu chá o ajudasse ― ela pediu com um sinal de mão, indicando o bule fumacento sobre a bandeja.
― É a infusão para os sintomas climáticos do mestre Farkas, madame. Não teriam poder algum como calmante ― Yan respondeu, olhando-os apenas de canto. Se olhasse para Oz agora, só inflamaria mais o espírito protetor em seu coração. Estar em pé não era realmente um problema, de qualquer forma.
― Tem mais gente para entrar ou estou aqui à toa? ― Ravi se inclinou para frente, deitando o cotovelo sobre o apoio da cadeira. O verdadeiro leva-e-traz, um homem de meia-idade parado perto da porta, se apressou em mandar entrar o próximo assunto. Certamente tinha esperado a discussão da família se amansar, o que não foi uma ideia boa para um dia como aquele.
Yan precisou firmar as mãos na bandeja quando Ravi pousou de volta o copo com um peso desnecessário e pigarreou, irritado.
― Não deixe essa discussão idiota tirar seu foco, rapaz. É porque conheço a qualidade dos seus remédios que faço tanta questão da sua presença. Temos uma celebração mais tarde e eu odiaria estar indisposto. ― Ele meneou a cabeça, coçando o tufo de barba no centro do queixo. ― Você vai conosco, inclusive. O Senhor Instrutor solicitou. É bom. Já que conhece intimamente o meu filho, poderia ajudá-lo a cortejar alguém interessante. Uma diplomata da Ópera seria uma escolha agradável.
Oz soltou o rosnado que tinha preso à garganta. Ao redor dos assentos, o pequeno grupo de lobos-híbridos mostrou os dentes por reflexo.
― Lá vai você tentar me negociar de novo um casamento estúpido. Eu já disse que não tenho interesse desde que… ― Oz se interrompeu com a abertura da porta da Sala de Escuta.
― Falamos sobre isso em outra ocasião, garoto. ― Ravi o encarou, sério. ― Agora cale a boca.
O leva-e-traz conduziu para dentro um homem de ombros troncudos, com os pulsos presos um ao outro por um tira grossa de couro.
― Qual foi a ocorrência? ― Juno tomou a frente, uma sobrancelha arqueada em interesse. ― E bem no último dia do festival?
― Esse senhor furtava bebidas do estoque do mercado, madame ― o leva-e-traz anunciou. ― Aproveitou a festa como uma distração. Foi pego ontem à noite depois de consumir três dos nossos galões de vinho de cevada, bêbado e desgracento, fazendo marra. Ainda por cima, socou um dos híbridos.
― Socou um lobo? ― Ravi tinha o semblante entediado. Teria deixado passar, não fosse aquela parte do relato. ― Em Farkas, durante o Festival da Vitória? Isso soa como uma afronta ― pigarreou. E mostrou os dentes. Yan apertou a bandejinha na mão. Sua lanterna para Niva seria uma afronta ainda mais séria.
― E o nivariano que cultiva como curandeiro pessoal não soa, mestre? ― O farkasiano mirou suas orelhas de arminho. Yan desviou o olhar para baixo. Oz rosnou de seu lugar.
― Não me lembro de ter dado permissão para questionar, homem. ― Ravi meneou a cabeça. Ao seu lado, era Juno quem agora soltava um pigarro baixo, fechando os olhos em um suspiro profundo. ― Veja bem, além de roubar dos Farkas, agora você questiona o líder dentro de seus aposentos e ao lado de sua senhora. E socou um lobo.
― Aquele lobo tentou rasgar minha bolsa de dinheiro.
O silêncio que sucedeu a acusação só foi rompido com a sonora risada de Ravi.
― Ridículo. Nossos lobos não são cães de rua. ― Estreitou os olhos, se recompondo, então tocou o pulso de Yan com uma mão firme, guiando-o para perto para poder se servir de mais chá. O silêncio retomou seu espaço, respingado pelo som baixo e gutural do rosnado de lobos. ― Mas se esse é um esporte que o interessa, então eu gostaria de uma demonstração. ― Tomou um gole e então sinalizou na direção do filho. ― Oz, vá até ele. Eu quero ver se ele é mesmo capaz de socar um lobo.
Ele não protestou, não como na primeira vez em que Ravi o pediu algo assim. O sorriso de Oz se alargou para a esquerda, o canino aparecendo mais conforme a covinha se cavava na bochecha. Yan sentiu o coração disparar.
― Quero mesmo ver se ele vai fazer mais algum comentário sobre o Yan. ― Se levantou, balançando displicentemente os braços num alongamento por provocação. ― Leva-e-traz, solta os braços dele. Se ele me acertar um soco, ganha um pouco mais do meu respeito.
― Mais? ― Ravi pontuou, se ajeitando na cadeira com as sobrancelhas arqueadas, emendando outro gole de chá.
― Roubou três galões de vinho bem debaixo das barbas de todo mundo, não foi? ― Apoiando a mão na curva com o dorso, Oz girou um dos ombros para trás, então o outro. ― Um feito e tanto para um cara corpulento. Vem! ― Se agitou ao ver o homem chacoalhar no ar os pulsos agora soltos. Ergueu o rosto, soltando um uivo breve, seguido pela dúzia de lobos que habitava os aposentos.
Nix, uma das híbridas mais próximas de Oz, se sentou ao lado de Yan, o rabo preto felpudo balançando no chão ao seu lado enquanto encarava as provocações com os olhos díspares — um orgânico e outro mecânico.
― O grandão barulhento tá uivando de novo? ― Shu sibilou baixo. Yan se alarmou, relaxando os ombros ao notar que só ele pôde ouvir a voz baixa do lagarto em seu ombro. ― Eu que não vou perder isso.
― Shh… Shu ― pediu.
― Eu admito a derrota se me acertar primeiro, homem. Nem precisa ser forte ― Oz se gabou, fingindo ajustar as braçadeiras em volta das mangas. Nem mesmo tinha tirado o crânio de lobo da cabeça, em uma demonstração de arrogância.
O homem avançou, abordando Oz pela esquerda com um gancho armado. A coisa toda não durou mais do que alguns segundos. Ele parecia ter encontrado uma brecha. Preparou o soco e o lançou. Oz o bloqueou com a esquerda, agarrando-o pelo braço com a guarda aberta. Seu punho atingiu o homem bem no meio do rosto e o derrubou.
Os lobos uivaram mais, sapateando no chão em excitação. As unhas tilintavam como uma chuva de pedrinhas.
Oz se abaixou, rosnando ao ter o olhar do perdedor no seu.
― Roube, se puder, mas não soque um lobo ― disse. Abaixando a voz, continuou: ― E não ache que pode abrir a boca para falar de Yan na minha presença.
Yan apertou as laterais da bandeja. Quando voltava para seu lugar, Oz tinha um sorriso para ele, confiante e protetor. Aquele sorriso tinha existido desde quando se conheceram.
― Onde pensa que vai? ― Ravi ergueu a voz grave, coçando a barba no queixo. As unhas rebarbentas deixavam marcas avermelhadas na pele clara de seu queixo. Ao seu lado, Juno mal esboçava reação, mas o olhou pelo canto dos grandes olhos negros quando ouviu a voz do marido.
― Meu filho já fez o que pediu ― enfatizou, como se o homem ao seu lado tivesse perdido momentaneamente a capacidade de ver com os próprios olhos.
No centro da sala, o ladrão de bebida se erguia com a mão cobrindo uma mancha que começava a aparecer sobre o osso do nariz. Se há poucos minutos tinha sido acusado de socar lobos, agora a situação claramente se invertera, bem na frente dos olhos da família de líderes do clã e de sua alcateia de lobos de confiança.
― Se ele acha que um único golpe vale a honra de todo o seu clã… ― Ravi deu de ombros, se ajeitando na cadeira e cruzando os braços antes de limpar a garganta. ― Me preocupa que esse seja o único herdeiro que temos.
― O homem estava no chão. ― Oz fechou o punho. ― Mais do que isso seria uma punição exagerada. Pelo quê? Algumas palavras e um porre? ― Riu debochado. ― Estamos passando necessidade de vinho de cevada, pai?
― Volte imediatamente, garoto.
Já tinha anos que não havia justificativa para se referir a Oz daquela maneira, a não ser como uma mostra direta de desprezo.
― Ou você pode aplicar sua punição com seus próprios punhos ― Oz rebateu, dando mais um passo em direção à cadeira, que Ravi bloqueou com o braço em um gesto duro.
― Eu sou o líder do seu clã. Até que isso mude, os seus punhos são meus. ― Sem mover o braço, apontou o queixo em direção ao homem. ― Agora volte lá e deixe que eu resolva o quanto vale a nossa honra.
O olhar de Oz encontrou o de Yan, brevemente, no caminho entre o rosto de seu pai e o do homem que o esperava em pé no centro do espaço. O ladrão se justificava, a voz erguendo um tom de um jeito defensivo, enquanto ele levantava as mãos na frente do rosto.
― Tente me enfrentar, pelo menos ― Oz rosnou, caminhando num meio círculo ao redor dele. ― Fica menos feio se conseguir me acertar pelo menos uma porra de soco.
Ele hesitou. E então tentou. Ergueu a mão pesada no ar, lançando o punho na direção de Oz. Ele o segurou, apertando até ouvir um estalo, então o atingiu na lateral do rosto com um soco vindo da esquerda.
Yan soltou o ar em um ofego desconfortável.
Nunca foi a velocidade. Era a força. Oz fazia valer, sem muito esforço, a alcunha de Lobo dos Punhos de Chumbo, um apelido conquistado nas ruas da cidade por um histórico bobo de brigas desmedidas e investidas protetoras ― muitas delas por causa de Yan. A violência por punição tinha começado depois e era coisa de Ravi. O chão da Sala de Escuta era quem ditava o fim. Bastava que o punido caísse e o caso era dado como encerrado, sob panos quentes.
Mas, em todos os mundos, as leis flutuavam com o humor de seus líderes. Em Farkas, não seria diferente. Pelo contrário, as coisas ali eram escancaradas e barulhentas, como a boca de um lobo raivoso.
Três socos e o homem voltou a cair. Yan reconheceu no rosto de Juno o mesmo olhar de expectativa que tinha agora para Ravi. Ainda assim, ele nem mesmo titubeou, encarando Oz e nada mais.
― Não te mandei parar ― reforçou. ― Levante, homem. Já não está bêbado. Por que ainda parece tão difícil se sustentar nos próprios pés?
Apoiando a mão no joelho flexionado, o homem se levantou. Tinha o rosto desfigurado em pelo menos quatro pontos.
Oz encarou o pai. As sobrancelhas grossas e peludas enfatizavam a incompreensão que transbordava do olhar.
― Ele cai muito fácil. Vamos extinguir essa regra por agora. Você para apenas ao meu sinal, garoto. ― Ele ergueu o rosto. Pigarreou, irritado. Yan tentou abordá-lo com um pouco mais de chá, mas foi momentaneamente ignorado. ― Adestrei toda uma matilha. Não ache que não posso adestrar alguém da minha própria linhagem.
― Marido ― Juno entoou. O tom retinto de sua pele tinha um rubor novo concentrado nas bochechas.
― Sem necessidade de drama. É pra isso que temos o curandeiro. ― Quando puxou Yan pelo pulso, o toque brusco quase fez a bandeja ir ao chão. ― Ele cuida disso. Não cuida, Yan?
― Sim, mestre Farkas ― Yan respondeu, quase sem voz. De seu ombro, Shu mostrou a língua de um jeito agressivo.
Oz exibiu os dentes. Se distraiu por tempo o suficiente observando a cena nas cadeiras para que o homem tivesse tempo de se ajeitar. Cambaleava por efeito de uma porrada na cabeça e tentou retrucar com um soco no estômago. O grito de alerta veio de Shu antes mesmo que Yan pudesse avisar. Foi atrasado, e o punho não tão firme atingiu Oz nas costelas.
Ravi segurou um riso debochado, que murchou de volta quando Oz atingiu o homem na testa com uma cabeçada. Um canino do imponente crânio de lobo sobre sua cabeça abriu um talho no supercílio do sujeito, que começou a sangrar.
O soco potente com que atingiu o homem em seguida o fez curvar o corpo e cambalear para trás. Ele cuspiu sangue, surpreso com o pouco tempo antes de receber o golpe seguinte. Então o próximo.
As pupilas dilatadas de Oz desapareceram no oceano escuro de suas íris, negras como as noites profundas com que os imortais puniam as Cidades Flutuantes nos tempos mais sombrios. Por dentro, ele se sentia em chamas, queimando em um incêndio que crescia no fundo do estômago e se espalhava, fazendo arder até os nós dos dedos, marcados pela violência.
Foram cinco socos. E então dez, sem qualquer interrupção. Quando o corpo do homem tombou no chão, seu rosto coberto de hematomas era difícil de encarar. E Oz continuava o acertando, as mãos trêmulas descarregando golpes automáticos, esperando pela ordem para parar.
― Mestre ― foi Yan quem rompeu o silêncio. As juntas doíam, de tanto que apertava a bandeja. ― Eu acredito que ele esteja morto.
― Morto? ― Ravi enfim reagiu, se inclinando interessado. O corpo do homem estava no chão, virado para a porta, com as costas voltadas na direção deles, em meio a marcas sangrentas que se espalhavam pelo chão de pedra. Oz tinha apoiado uma mão em seu pescoço enquanto a outra golpeava. Sua respiração era cortada e audível, como a de um animal ferido. ― Vá verificar, Yan. Oz ― ele ergueu a voz ―, chega.
O último soco, preparado ao lado da cabeça, morreu no ar. Ele se afastou, se levantando em um único movimento, dando alguns passos para trás. Os olhos não saíram do homem no chão, mesmo no tempo em que Yan levou para deixar de lado a bandeja e se adiantar até o meio da sala.
O curandeiro se abaixou, tocou os dedos na lateral do pescoço do homem. E então suspirou em reconhecimento.
― Está mesmo morto, mestre ― reportou a Ravi.
A expressão de Oz se contorceu, confusa. Ele voltou a mirar o homem, as narinas alargadas, as sobrancelhas pesadas quase forçando os olhos a se fecharem. A forma como o encarava era a prova de que Yan não precisava: de que aquela era a primeira vez de Oz admirando a morte trazida pelas próprias mãos e nada mais.
― Mestre, eu posso…? ― Yan deixou a pergunta no ar. Ravi o respondeu com um aceno de mão displicente enquanto se levantava.
― Sim, faça o seu negócio. Não precisamos ser tão duros quanto os punhos do meu filho. ― Ele ajeitou a postura, tomou a mão de Juno na sua para guiá-la para si, casual como em um fim de baile. ― Nós vamos nos arrumar para o evento desta noite. Deixe que alguém se ocupe da bagunça em seguida.
Yan esperou que eles saíssem. Com uma mão, virou o corpo do homem de peito para cima. E checou Oz com um olhar rápido.
Ele continuava parado no mesmo lugar, encarando a forma como o corpo sem vida virou no chão sem resistência.
― Ele está mesmo morto? ― perguntou. ― Tão fácil?
A segunda pergunta foi a mais incômoda. Fez as pequenas orelhas de Yan se agitarem, desconfortáveis.
― Por pouco tempo ― respondeu. E tocou a mão no peito do homem, por baixo da túnica esgarçada, coberta de suor e gotejos sangrentos.
Sua pele ainda estava quente. Para o toque de Yan, era uma sensação morna diferente da vida, mais como a impressão de uma porta ainda aberta. Podia resolver.
Seus olhos se iluminaram, alaranjados e brilhantes, o brilho enfatizado pelas lentes dos óculos. Era muita energia, mas usada pela melhor das causas. Um dom raro. Desgastante, ainda que precioso.
Só afastou a mão quando o homem gemeu de dor, o derradeiro sinal de que a vida tinha voltado a circular por seu corpo.
Oz mal piscava. Tinha entreaberto os lábios para respirar lufadas mais potentes de ar. Agora mostrava os dentes numa expressão mais acuada do que agressiva. Ainda assim, o necessário para que o sujeito começasse a implorar assim que o viu ainda ali.
― Senhor, consegue se levantar?
Yan tentou ajudar, empurrando suas costas até que ele pudesse se sentar. As mãos vasculharam habilidosamente a inseparável bolsa transpassada ao corpo. Trazia nela diversos preparos de emergência, uma pequena parte reservada ao que Ravi solicitava; a maioria, uma lista de coisas que conviver com Oz o ensinara a sempre ter à mão.
― Este unguento vai secar as feridas e evitar infecção. E esta pomada, senhor, é um bom alívio para as marcas. O embrulho de ervas é bom contra a dor. Um pouco de cada de manhã e à noite e sua recuperação será acelerada ― Yan falava de um jeito automático. Seu foco não era o desconhecido, mas o dom da cura o impedia de apenas ignorá-lo.
Estava com Oz antes mesmo que o sujeito terminasse de se levantar, com o auxílio de um dos servos. O tocou na mão e na bochecha, virando o olhar estático de Oz para seu próprio rosto.
― Eu matei ele ― Oz murmurou. Yan segurou sua mão, pressionando o lenço empapado de tônico sobre as juntas feridas. ― Eu matei e você trouxe de volta. Isso é… ― Yan teve certeza, pelo tom de voz, que ele completaria com assustador. ― Engraçado, não é?
Encontrou o olhar dele. A marca no centro das bochechas aparecia apenas levemente no sorriso incerto. Yan retribuiu o sorriso, mais confiante. Trouxe a mão de Oz até perto do rosto e beijou seus dedos feridos. A mão dele tremeu quando a afastou.
― O seu tônico de força é mesmo poderoso, viu? ― Ele tentou firmar mais o sorriso. Yan não sabia dizer se ele tinha conhecimento do quanto falhou naquilo. ― Vamos.
Oz espiou o homem sendo carregado para fora da sala por dois leva-e-traz mais fortes. Não parecia bem para andar com as próprias pernas, mas a cabeça mantinha-se ereta, o que indicava consciência. E Yan tinha falado sobre uma recuperação acelerada, então nem podia ser assim tão grave. O sorriso relaxou um pouco.
― Eu tenho esperança de descansar depois do almoço pra não perder um instante do evento da noite… ― Oz tocou a mão no cabelo de Yan, desviando de Shu ainda encarapitado em seu ombro. Quando a mão pousou na nuca dele, Oz já tinha parado de tremer. ― Você devia descansar comigo… ― brincou. ― Talvez me preparar um chá, pra ser mais relaxante.
― Eu posso ― Yan respondeu, se encostando em seu peito, dando-lhe um beijo suave sobre a gola da túnica. Ali de perto, podia ouvir seu coração ainda disparado em aflição.
― Quem sabe desta vez você prepare o meu com a dose extra de mel, como faz o do meu pai ― gracejou, rodeando os ombros de Yan em um meio abraço, primeiro protetor, mas logo apertado demais para que fosse só isso.
― Não ― Yan respondeu sem voz e envolveu o corpo dele num abraço inteiro em resposta.
― Por que nunca faz o meu desse jeito? ― Ele bufou pelo nariz, contrariado. ― Meu pai sempre fala sobre os chás doces e deliciosos enquanto eu fico sentindo gosto de grama na língua.
― Porque ― Yan começou, então ponderou, acrescentando o fim da resposta com tom de segredo ― em Nivaria, essa era a forma como se preparava o chá de uma criança. E você não precisa disso.
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Sempre que Tapisa via Li’a sentada entre a pequena aglomeração de fantoches dos camarins, pensava nela como uma espécie de limiar. Tinham todos a mesma pele pálida enfermiça, os mesmos cabelos brancos, os mesmos gestos frágeis de algo prestes a quebrar ― mas os olhos dos fantoches eram um abismo de oblívio, ao passo que os de Li’a enchiam-se de uma agudeza afiada, difícil de ignorar.
― Sai pra lá ― Tapisa disse, empurrando para o lado, sem muito cuidado, o fantoche que penteava os cabelos de Li’a. A criatura deu dois passos cambaleantes, fazendo um ruído de madeira e engrenagem, parando silencioso no canto. ― Eu cuido disso, senhora.
― Seja mais cuidadosa com os seus brinquedos, pequena ― Li’a sussurrou, encarando o mar de cachos vermelhos que era Tapisa atrás de si.
― Se quebrar eu conserto, né? É pra isso que tô aqui.
― Ainda assim, o Senhor Instrutor ficaria chateado por ter o trabalho de ir buscar uma alma vadia pelas ruas de Farkas.
― Isso seria divertido. ― Tapisa fez o cabelo de Li’a deslizar entre os dedos, se inclinado para buscar sobre a penteadeira os grampos de marfim que usaria no penteado. ― Ele correndo atrás de alminhas por aí, feito o lunático que é. Com sorte, até devoraria a coitada.
― Nesse caso, seja cuidadosa com o seu futuro ― Li’a advertiu, e Tapisa fez um esforço para não se encolher diante do olhar dela.
Aquilo era o futuro: ninguém ia embora da Ópera. Fosse punição, doença ou idade, suas almas eram arrancadas do corpo e colocadas em um dos fantoches que Tapisa meticulosamente criava com sua magia, sob medida. A Ópera é uma arte para toda a existência, Kuí costumava reforçar, deixando um sorriso pirracento rastejar pelos lábios.
Quando Tapisa terminou, Li’a sustentava uma trança grossa em volta da cabeça, o resto do cabelo preso em camadas de uma forma que cascateasse, elegante, até a cintura. Se afastou um pouco, admirando os movimentos de Li’a ao recolocar na orelha os alargadores feitos de osso e cristal, para então buscar o figurino pendurado em um gancho. A certeza com que Li’a fazia as pequenas coisas quase disfarçava o tremor constante em suas mãos.
― Eu esqueci o seu remédio, senhora. Volto rapidinho, me espera aqui!
A risada suave de Li’a acompanhou Tapisa pelos corredores estreitos que circulavam o palco. Tudo pertencia à Ópera, desde a estrutura, e havia sido construído num espaço de pouquíssimos dias, para surpresa do povo de Farkas. “Isso foi moleza”, Tapisa dissera ao garoto curioso que havia comentado para ninguém em especial sobre a velocidade da trupe. “A gente já montou palco em menos tempo, e debaixo de chuva.”
O jeito como ele havia arregalado em surpresa os grandes olhos brilhantes tinha sido adorável. Tapisa não deixou de pensar que devoraria olhos assim com um sorriso no rosto.
Quando retornou ao camarim, Li’a já estava vestida. A túnica de mangas longas e abertas costurava-se à saia ampla. Flores delicadas haviam sido bordadas nas abas das mangas e na barra da saia, distribuídas de tal forma que lembravam uma simpática nuvem de insetos. Tendo apenas o colo e as mãos expostos, e com aquela aparência refinada, Li’a lembrava as fadas das histórias infantis.
― Senhora… ― Tapisa ofereceu o copo, o riso se espalhando pelo corpo todo diante da careta dela. ― Você parece uma criançona toda vez, é sempre isso.
― E você esquece que a palmatória está logo ali ― Li’a disse, um sorriso se erguendo de canto ao ver Tapisa murchar. ― Malcriada.
A mistura de álcool de vegetais, erva-de-brejo e sangue era bastante desagradável, deixando na garganta um rastro agreste.
O sistema de suporte que a mantinha viva era feito de agonias.
Dali a pouco qualquer espaço para conversinhas foi dissipado pela proximidade do espetáculo, transformando os bastidores em uma confusão de passa-foras e gritos sob o pano de fundo que era a orquestra fazendo a passagem de som. Mas era o falatório do público, aumentando como uma onda, o que fazia Tapisa trocar o peso do corpo de um pé para o outro, ansiosa.
― Vá logo espiar antes que eu enlouqueça contigo, menina.
― É que falta uma coisa! ― Tapisa explicou, e depois de ter certeza de que Li’a estava mesmo pronta, deu uma corridinha animada até o armário privativo para buscar a cereja do bolo.
Enfileiradas nas muitas prateleiras havia um sem-fim de meias-máscaras demoníacas. As expressões eram diversas entre sorrisos sádicos e rosnados. Tapisa avaliou as cores do figurino de Li’a e fez sua escolha: com os lábios erguidos para cima numa sugestão de violência, a máscara exibia presas pontudas que combinavam com os alargadores. Também tinha o mesmo tom de azul da sua roupa.
― O velho Farkas não vai ficar puto por ver a senhora usando azul?
― Por que ele ficaria? ― Li’a se abaixou um pouco para ficar da mesma altura de Tapisa. Sabia o quanto ela gostava de colocar a máscara em si. ― Não é índigo a cor que carrego.
Mas era um tom muito, muito próximo.
Quando ela voltou a se erguer, a máscara ocultando seu rosto do nariz para baixo, Tapisa fechou os olhos para aproveitar a descarga de medo que sempre gelava seu estômago.
Aquele era seu truque favorito: ver a fada se transformar em bruxa.
― Vai! ― Li’a tangiu a menina para fora. Sua voz saía límpida como se não usasse nada no rosto.
Tapisa fez como ela pediu, correndo até a coxia para espiar por trás das cortinas pesadas o público lá fora. Chegou a tempo de ver Kuí entrar com o que imaginou ser a família do líder.
Ele havia envolvido as mãos em torno do braço de Juno. Uma das cobras parecia encarar a mulher, curiosa, do canto de seu ombro, enquanto a outra dormia enroscada ao seu pescoço, tão amolecida que poderia se passar por morta.
― Juno, querida, nossa última parada foi em Banjora e devo admitir que se um dia eu me retirar do mundo secular, é lá que pretendo fixar raízes.
― É uma escolha adequada, Senhor Instrutor, mas torço para que sua Ópera continue cruzando as pontes ainda por muito tempo.
― Eu aposto que a minha mãe prefere enfrentar um exército de Fronteiriços a ver essa coisa na cidade-natal dela ― Oz comentou a meia-voz para Yan ao seu lado. O atordoamento que o tomara ao longo da tarde parecia ter se dissipado em partes, soprado para longe pelos beijos de Yan, abrindo espaço para sua indisposição com Kuí. ― Vocês pareceram bem íntimos quando ele chegou ― continuou, olhando-o de canto. ― Perdi alguma coisa?
― Nada ― Yan afirmou, tocando-o no cotovelo em um carinho discreto. ― Ele é gentil, e eu sou gentil de volta.
― Ele é intragável ― Oz grunhiu, alto o bastante para que Kuí os olhasse por cima do ombro com um sorriso afrontoso que murchou até formar uma linha mais suave quando migrou de Oz para Yan.
― Quem quer que o esteja desagradando na minha Ópera, jovem mestre, me diga para que eu puna o quanto antes ― ele cantarolou, rindo diante do sorriso de muitos dentes que Oz lhe ofereceu. ― A cria de vocês é adorável, Ravi, querido!
― Eu duvido que qualquer pessoa no seu espetáculo esteja incomodando o meu filho, Senhor Instrutor ― Ravi interviu, lançando a Oz um olhar de advertência. ― Mas se vamos falar de incômodos, já passou da hora de esta criatura arranjar um casamento ― ele continuou, deixando no ar uma insinuação que Kuí captou.
― Vocês terão as melhores companhias da minha Ópera esta noite, querido. Com sorte a sua cria se engraça por um artista ou dois.
Aquela era uma apresentação exclusiva para o clã Farkas e ainda assim a plateia estava lotada por uma comitiva tão grande quanto a de uma pequena cidade. Os melhores lugares foram reservados aos membros mais importantes do clã, entre familiares mais próximos e aquelas pessoas cujas funções eram vitais para Ravi. Os assentos do fundo estavam ocupados pelos discípulos externos e por serviçais. Seu próprio núcleo familiar tinha um camarote cativo cuja vista do palco era extraordinária. Eram uma massa homogênea de vestes índigo bordadas com fio de ouro, marcando sua diferença da mesma forma que marcavam seus telhados e seus cavalos. Não havia nada que pertencesse aos Farkas que não estivesse sinalizado bem à vista de todos. Mesmo as vestes de Yan, tipicamente em tecidos brancos, tinham faixas azuis bordadas às mangas, indicando que aquele era um curandeiro a serviço de líderes.
Ao lado deles, Kuí era uma distorção com sua roupa de muitas camadas cor de laranja. Ele sentou ao lado de Juno, reservando a Ravi o assento do meio. Yan e Oz sentaram-se atrás, o que Yan achou excelente porque assim poderia manter a mão de Oz entre as suas e acalmá-lo. Também era gostoso ficar logo atrás de Kuí. Aquele perfume salgado pinicava seu nariz e sua pele no que poderiam ser beliscões ou arrepios. Era agradável, de toda forma.
Com os libretos da ópera em mãos, Ravi, Juno e Kuí trocavam cortesias. Aproveitando-se daquela distração, a mão de Oz escorregou, pesada, até a coxa de Yan, tomando um caminho perigoso em direção à sua virilha.
― Aqui não ― Yan o deteve. O sussurro era tão firme quanto a mão sobre a dele, mas os olhos faziam promessas.
― Mais tarde? ― Oz questionou, afastando a mão e virando-a de palma para cima em um convite.
A resposta de Yan foi roubada pelo primeiro aviso de que o espetáculo iria começar. Todos se posicionaram, empertigados.
― Sobre o que será a ópera, Senhor Instrutor? ― Ravi questionou, sem se dar ao trabalho de abrir o libreto.
― Sobre um fantasma, querido. O fantasma que assombra um teatro abandonado, e o infortúnio de sua história. ― Ele fez um carinho no corpo escamoso de uma das cobras. ― É mais pitoresco do que o meu resumo sugere.
As luzes das pequenas lanternas flutuantes que iluminavam o lugar foram baixando até mergulhá-los em uma penumbra insinuante. Ao contrário do padrão, a orquestra da Ópera do Fim do Mundo não ficava sob o palco, mas ao redor dele, como parte da cena. As cordas deram o tom ao início do espetáculo, seguidas por flautas e pela percussão. Em seu lugar, Oz revirou os olhos. Era só mais uma ópera como outra qualquer e talvez pudesse escapar de fininho para fora do camarote.
Um erhu solitário o impediu de levantar. Aquele era um instrumento muito raro de se encontrar em qualquer uma das Cidades, mas os que o seguiram eram ainda mais. Guitarras.
Então veio a voz.
― É ela? ― Ravi sussurrou, vendo Kuí concordar. ― Onde? Onde ela está?
Li’a não surgiu no centro do palco, mas ao fundo do auditório, obrigando todos a se inclinarem para trás para que pudessem vê-la enquanto descia em direção à orquestra. Com as mãos sobre a bancada do camarote, Ravi sequer ousou reclamar das vestes azuis que ela exibia.
Deveria ser só a acústica do lugar, mas a voz parecia grudar na cabeça, abria rasgos na realidade como os dentes de um tubarão-dos-céus. Era toda feita de farpas, áspera e quente.
Não há nada nos céus ou entre os Imortais que eu deseje mais do que me pertencer novamente, dizia a canção numa tristeza que beirava a ameaça. Os olhos eram todos de Li’a da mesma forma que costumava acontecer às mariposas diante de uma fonte de luz.
Oz foi pego de surpresa pela maneira como seu coração retumbava. Teve a impressão de que se aquela voz o mandasse se jogar no vórtex, ele não pensaria duas vezes. Assim como seu pai, tinha se inclinado para frente. Achou que encontraria uma deusa, mas o que viu foi um demônio ― e nada poderia ser mais cativante.
E se tudo que toco é o vazio, me bastaria incendiá-lo para destruir a realidade.
― Como ela canta tão bem apesar da máscara? ― Yan perguntou baixo, para que apenas Kuí pudesse ouvi-lo. A mão agarrava a de Oz, quase parecendo vibrar. ― É algum tipo de amplificador?
O diplomata o olhou sobre o ombro, sussurrando:
― É apenas como a voz dela é, docinho. Espere mais um pouco, e… ― Ele ergueu o dedo no ar, contando o tempo até que a voz de Li’a se transformasse do timbre lírico para um gutural majestoso que fez Juno estremecer na cadeira. ― Ah, meu adorável serzinho musical, ela é perfeita!
Porque viver em um mundo como este não é um exercício de virtude, Li’a afirmou em sua música como faria um monstro noturno coletando criancinhas por diversão.
Desde que Maali se fora, Oz não se sentia capaz de desejar de verdade outro alguém além de Yan. Maali havia sido parte de seu tudo por anos o suficiente para que a traição de Nivaria tivesse dilacerado seu coração, transformando as memórias dele em um mar de repulsa. Pensar em Maali era uma corda-bamba sobre a qual Oz fingia não se equilibrar — assim como fingia as ameaças que esbravejava sempre que tocava o brinco em sua orelha, uma lembrança do noivo perdido.
Aquela voz era como uma cura, como os toques de Yan no meio da noite ― quando ele fingia não estar chorando e Yan fingia não secar suas lágrimas.
Era como esperança.
Continua…
No próximo capítulo… Lótus estimulou Tomás a stalkear Yue (ele não disse com essas palavras, mas o conselho não foi muito diferente, foi?). Que lugares são esses e o que podemos descobrir sobre Yue? Espero que ele consiga falar um pouco mais, mas pelo nome do capítulo, não sei se boto a mão no fogo pelo nosso travadinho.
O Capítulo 7 — Comunicação não é o meu forte chega no dia 22 de setembro às 12h!
Nos vemos antes que você possa dizer Fronteiriço!
Ei, vizinho! Não esquece de me acompanhar nas outras redes! 💫
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