💫 Pontes Imortais ― Capítulo 5

Bichinho

Mais uma sexta, mais um capítulo no Vórtex trazido diretamente por seu guia coelhudo!

No capítulo anterior… O Festival da Vitória de Farkas é uma avalanche de memórias de guerra e segredos bem guardados pelo bosque. Parece que o Senhor Instrutor da Ópera do Fim do Mundo tem um fraco por gentilezas. Será que seu alterego deste mundo tem um por… Mentiras? Vamos voltar a São Paulo para ver como ficaram Tomás e Lótus depois daquela mentirinha inofensiva que acabou em beijo na Paulista. E eu havia prometido menino dos sonhos, certo? Chegou a hora.

A música recomendada para o capítulo é Bixinho, da Duda Beat.

Pontes Imortais

Capítulo 5 — Bichinho

São Paulo, 2023

A sala de descanso da enfermaria cheirava a café e margarina, um aroma agradável que fazia Tomás lembrar-se da época pré-vestibular e de como sua avó sempre acordava ainda mais cedo para preparar seu café da manhã em uma mistura inusitada de sabores brasileiros e chineses. Houve até uma época em que sua comida predileta eram os pãezinhos cozidos a vapor, sem recheio, mas cortados ao meio e passados na chapa com margarina, como os de uma padaria de bairro.

Apesar do tecido grosso da roupa privativa, os pelos de seus braços se arrepiaram quando parou na porta. Ele olhou para o visor do ar-condicionado barulhento e amarelado, que marcava 19ºC. Espalhados entre os sofás de courino cinzento meio descascados estavam umas poucas pessoas assistindo a um programa de variedades de meio de tarde.

― Viu só, doutorzinho? ― Marieta, uma das enfermeiras mais antigas, foi a primeira a notá-lo e fez sinal para que ele entrasse. Gostava de chamá-lo daquele jeito, doutorzinho, porque era tão pequeno que às vezes desaparecia na multidão de alunos andando pelos corredores. Ela apontou a televisão. ― A gringa tá falando que sonhou com as músicas do álbum dela que estão bombando. Agora pergunta se a gente aqui sonha com os números da Mega-Sena.

― Ah, pois sempre que sonho e jogo no bicho, acerto ― completou a mulher de cabelos acaju ao lado dela. Seus lábios pintados de um rosa elétrico se rasgaram em um sorriso. ― E por falar em sonho, o nosso menino dos sonhos tá lá na pediátrica hoje, tão sabendo? ― Apesar de lançar a pergunta para os colegas, os olhos dela estavam sobre Tomás.

― Oh, glória! ― Marieta exclamou, com as mãos para o ar. ― Vai ser uma noite calma, então. O menino sempre deixa as crianças molinhas feito bonecos de pano. Tem até médico que fica mais manso…

― Você presta bastante atenção, Marieta… ― Tomás interrompeu, escondendo um sorrisinho atrás das costas da mão enquanto apertava a pasta de prontuários contra si numa tentativa de ignorar o rubor no rosto.

Nos últimos meses, um grupo de contadores de história aparecia com frequência na ala pediátrica da oncologia, e o que a princípio foi recebido com ressalvas pela equipe médica acabou virando um dos melhores momentos das crianças. Havia, no entanto, uma pessoa entre eles que parecia ter o poder de aliviar o incômodo da molecada apenas com palavras.

― Ow, é real isso aí de que o cara coloca as crianças em nirvana só contando a história dos três porquinhos? ― perguntou um jovem aprendiz com um muxoxo descrente.

― Se ele falasse com aquela vozinha no meu ouvido, eu ia ficar em nirvana também ― cabelo-acaju comentou entre risadinhas.

― Pois você tire o cavalinho da chuva, nêga, que se o moço fosse sussurrar no ouvido de alguém, ia ser no do doutorzinho. ― Marieta se inclinou sobre o braço da poltrona na direção de Tomás, de um jeito cúmplice. ― Você sabe que os dois são a novela favorita aqui da enfermagem, né? O moço já te chamou pra sair?

Tomás negou com a cabeça. O rosto queimava de vergonha agora porque aparentemente não tinha sido óbvio o suficiente para receber um convite, mas o bastante para ser alçado ao status de novela.

— Tomás está aqui? — Uma das recepcionistas apareceu à porta da sala, sorrindo ao vê-lo. — Ah, que bom. Chegou um presente pra você, meu bem. Olha.

O ramalhete era discreto, não muito cheio, mas bonito. Envoltas em papel de seda cor-de-rosa, as flores vermelhas eram decoradas com tufinhos de grama e folhagens.

— Parece que o Tomás tem outro namoradinho. — Cabelo-acaju ajeitou de volta uma mechinha caída no coque, virando-se com interesse para analisar as flores. — Não quer dividir um pouco desse mel com a gente?

Recebendo as flores, ele sentiu primeiro o rosto ganhar um rubor diferente, culpa dos olhares sobre si. O nariz ficou vermelho em seguida, um pouco antes de soltar o primeiro espirro.

— E que contatinho é esse que não sabe que você é alérgico, hein? — Marieta se levantou, meneando a cabeça em reprovação. Tomou as flores, localizando o cartão para pousar de volta nas mãos de Tomás. — Pronto. Você fica com esse e deixamos as flores aqui. É bom ter um pouco de cor, pra variar.

— Obrigado — Tomás suspirou, trocando o peso do corpo de um pé para outro de um jeito desconfortável. — Eu devo ter me esquecido de falar pra ele…

Mas não tinha. E nem precisava abrir o cartão para saber que aquele embrulhinho rosa vinha de Lótus.

A mensagem no cartão era a cereja do bolo, cuidadosamente colocada.

“Um presentinho para te deixar pensando em mim.”

Ele os viu, então. Suspirou. E espirrou de novo, buscando na mochila o pacote de lencinhos.

Não tinha uma reação muito forte, só um incômodo chato que deixava seu nariz coçando por algum tempo, e os olhos lacrimejando. Passaria logo.

— Já deu meu horário. Eu vou me trocar pra ir. — Apoiou o lenço no canto do olho, secando uma lagriminha insistente enquanto ia até o banheiro para lavar o rosto e se arrumar.

Aquilo suavizou um pouco a reação. Quando saiu do banheiro, o vermelho na ponta do nariz se camuflava um pouco no blush suave do rosto.

— Tá melhor, doutorzinho? — Marieta perguntou, já contendo um sorriso esperto que pairava no canto da boca, esperando que ele concordasse. — Que bom. Nada que uma água na cara e um pouco de perfume não resolva, né?

— Eu vou indo — ele desconversou, escondendo o riso.

— Manda um beijo nosso pro menino dos sonhos.

— Mando, sim. Pode deixar. — Tomás riu, e deu uma corridinha para fora da sala antes que Marieta pudesse voltar a chamá-lo.

— Sem vergonha! — Ouviu, já do corredor.

Seu rosto corava por pura manha. Aquele caminho já era batido. Se havia contação de histórias, então daria pelo menos uma passada por lá. Fazia isso sempre. Não virou uma das metades da novela favorita da enfermagem à toa.

A ala pediátrica ficava no andar de baixo, e a sala onde as crianças recebiam visita dos contadores estava logo no começo do corredor decorado com cartazes, desenhos coloridos e pôsteres médicos com frases encorajadoras que serviam mais aos pais do que à molecada. Tomás saiu do elevador e ajeitou a mochila sobre os ombros. Ainda tinha alguns minutos até que Lótus chegasse para buscá-lo — e teria que conversar com ele sobre flores e mentiras ―, então sobrava um tempinho para passar por ali.

Reconheceu a voz dele na primeira das salas em meio a risadinhas infantis. Quando se aproximou, acenou para a enfermeira responsável e então se encostou no batente para não interromper. De onde estava, tinha uma boa visão do amontoado de cabecinhas atentas. E tinha o rosto de Yue bem de frente para si.

Parte do charme de Yue com sua plateia em miniatura estava no fato de que ele não contava histórias sentado. Se mexia de um lado para o outro com os movimentos vigorosos de alguém acostumado ao palco. O rosto era expressivo, como se Yue se transformasse em cada personagem da história à medida em que os citava. Não erguia muito a voz, e ainda assim conseguia atrair todos os olhares para si, como se a próxima palavra pudesse revelar algum tipo de segredo mágico.

― Qual a história da vez? ― Tomás perguntou baixinho para a enfermeira ao seu lado.

― O rei macaco, se entendi bem.

Quando tornou a encarar a cena, trombou com o olhar de Yue por um instante, ganhando um sorriso e um aceno de cumprimento.

― Sun Wokong esperava um convidado, lembram? ― Yue perguntou para as crianças. Seu timbre era suave e grave, como um abraço apertado. Ele apontou a cadeira vazia no meio do mar de crianças. ― Doutor Zhu, por favor. Não é esperto deixar o rei macaco esperando.

Tomás se adiantou a passos polidos, como o convidado de alguém importante. Se Yue falaria com ele dentro da história, então sua resposta seria dada da mesma forma. Tomou seu lugar depois de uma reverência bonita que foi imitada pelas crianças menores.

— É verdade, crianças — reafirmou em um tom cortês, lançando a Yue um olhar dedicado por trás dos óculos. — Eu não o deixaria esperando.

― O tio Yue disse que o rei macaco pode virar 72 coisas diferentes, tio Tomás! ― uma garotinha disse, tentando mostrar como fazer 72 usando as duas mãos.

— É um número bem grande. Nós vamos precisar de oito pessoas pra mostrar. — Contou as cabecinhas ao seu redor. Ali, eram sete. Então sorriu, pedindo que todos mostrassem as duas mãos abertas. Complementou ele mesmo com os dois dedos que faltavam. — Tudo isso! — Virou o olhar de volta para o contador de histórias. — Que tipo de coisas?

― Ele não seria o mais esperto de todos se qualquer contador de histórias pudesse revelá-las ― Yue respondeu, dando uma piscadinha amistosa.

— Você não é qualquer contador, tio! Você é o melhor! — Um dos menininhos ergueu a voz, se levantando apoiado ao encosto da cadeira de Tomás. — Tio Tomás, pede pra ele contar o fim da história!

— É, ele sempre conta quando você pede. — Uma garotinha entrou para o coro de pedidos, se jogando em uma brincadeira dramática no colo de Tomás, fazendo-o rir.

— Eu não acho que um pedido meu faria diferença para o grande Sun Wokong… — Tomás fez um beicinho. — Faria? — A pergunta foi para Yue, num tom manhoso parecido com o das crianças ao seu redor.

Yue havia se ajoelhado para conter a explosão de energia de um dos garotinhos, agora agarrado em sua cintura. Embora tivesse um rosto naturalmente sério, vez ou outra seu olhar se iluminava como se às vésperas de um sorriso.

― Vamos descobrir no fim da história.

Um fim que não chegou, no fim das contas, menos pela disposição de Yue e mais pelo limite de horário. O grupinho caiu numa reclamação coletiva quando as enfermeiras avisaram que estava na hora de voltarem para os quartos, uma barulheira de que ninguém naquele hospital reclamaria: Yue parecia devolver a energia que as crianças perdiam nas longas horas de exames, procedimentos médicos e quimioterapia.

Ele recuperou a mochila assim que a sala esvaziou. Era um trambolho pesado e meio esfarrapado, coalhado com todo tipo de bottons, de desenhos de artistas indie à bandeira não binária ao lado de uma estrelinha vermelha com a sigla do PT.

— Minha avó gostaria imediatamente de você se visse — Tomás sorriu, apontando casualmente para aquele último bottom enquanto ajeitava a própria mochila nos ombros.

― Ela é sábia.

Longe do “palco” que as crianças ofereciam, Yue voltava a usar poucas palavras naquele tom sussurradinho. Tomás achava que os sussurros combinavam com ele da mesma forma como a barulheira combinava com o moço que conheceu na Roosevelt.

Colocou sua atenção naquele ali desde a primeira vez em que o viu contar histórias. Ainda assim, a conversa nunca tinha saído daquela ala do hospital. Nem mesmo quando o seguiu no Instagram algumas semanas antes. Teve esperança quando ele o seguiu de volta, mas não tinha recebido interação nenhuma além de algumas curtidas nas fotos de café que postava quase todos os dias.

— Como vão seus trabalhos? — perguntou enquanto caminhavam pelo corredor em direção ao elevador. Sem as crianças, o lugar ficava calmo e silencioso, quase mesmo como um sonho. Foi um dos motivos para o apelido dado por Marieta.

— São só bicos — ele respondeu. — Chato, chatão e pior. — Revirou os olhos, bufando pelo canto da boca em direção ao cabelo, fazendo a mechinha voar um pouco fora do lugar.

Entraram no elevador. Tomás se encostou na parede perto da quina enquanto Yue apertava o botão para o piso térreo. Viu quando ele sacou uma caneta do bolso, que girava displicentemente entre os dedos da mão quando se encostou na barra do elevador, perto o suficiente para que não parecesse só uma escolha casual.

Tomás suspirou, acompanhando os poucos números decrescendo no painel luminoso. Foi tomado dos pensamentos pelo toque de Yue, o nó de seu dedo tocando-o na pontinha do nariz.

— Você tá ok? — A voz era gentil e a forma como seus olhos encontraram os dele, sustentando um olhar atento, já começava a deixá-lo fraco. Não entendeu a pergunta súbita até sentir o nariz coçar um pouquinho e se lembrar que ainda devia estar meio vermelho.

— Sim. É só alergia — respondeu, vendo Yue afastar a mão. A pele era áspera e meio arranhada, especialmente nos nós dos dedos, e Tomás se perguntou qual seria a razão.

— De quê? ― o rapaz perguntou pouco antes de as portas do elevador se abrirem.

— Flores.

— Hm — Yue assentiu. Demorou um segundo para completar. — Vou lembrar disso.

Havia algo na forma como ele falava, fosse na economia bem pensada de palavras, no tom acolhedor e firme dos sussurros ou mesmo no jeito como seus olhos não titubeavam no contato com os dele que fazia Tomás sentir as pernas moles.

Era como uma antecipação.

Parou para encher a garrafinha de água logo na saída do elevador. Yue deteve-se para esperá-lo, colocando as mãos nos bolsos.

Ele era alto. Não tanto quanto o Vi, mas, perto de Tomás, o suficiente. Sua avó iria mesmo gostar do bottom do PT, mas conseguia imaginar a careta que ela faria para aquela aura punk, para os coturnos cansados de guerra ou para a corrente presa ao cinto. Não conseguia imaginar o que pesaria mais num primeiro momento. Quase podia ouvir a voz dela fazendo algum comentário sobre como ele ficaria mais bonito com um corte de cabelo mais ajeitado ou roupas mais adultas.

Tomás tinha sua própria percepção sobre o que deixaria Yue ainda mais bonito, mas não se atreveria a vagar o pensamento naquela direção agora.

― Tom, encheu ― ele disse, apontando para o gargalo, e Tomás virou o rosto, sentindo a água vazar um pouquinho sobre seus dedos.

— Ah. — Recolheu a garrafa, os dedos pingando gotas lentas de água. Não queria secar na roupa.

— Aqui. — Yue pegou sua mão. O primeiro contato de seus dedos espalhou eletricidade em um estalo.

— Ei — Tomás chamou, dobrando os dedos num reflexo, sentindo o rosto corar um pouco. — Você deu choque.

— Desculpa — ele respondeu. E passou o polegar sobre seus dedos úmidos, eliminando os últimos rastros de água.

A forma como Yue jogava os cabelos por cima da cabeça deixava o undercut mais à mostra. Ele balançou a cabeça, bagunçando-o. Sempre que fazia isso àquela distância, Tomás sentia o cheiro dos seus cabelos. Aquele odor musgoso e fresco fazia seu coração dar uma acelerada.

— Vai pro metrô? — Yue apontou a porta.

Aquele era um pedido por companhia? Parecia um. De todos os dias, ele escolheu justo aquele para chamá-lo.

Tomás negou com a cabeça.

— Não, eu tenho carona hoje — respondeu.

— A gente se vê. — Yue esboçou um sorriso, ajeitando o cabelo atrás da orelha. — Valeu por ter passado na sala. — Ele ergueu os cantos do sorriso num movimento sutil. — As crianças gostam que você apareça.

— As crianças? — Tomás perguntou, forçando um beicinho.

— Eu também.

Tomás deixou o olhar na nuca dele por alguns passos e então suspirou, quando se convenceu de que Yue não podia mais ouvir. Tinha a estranha impressão de ser observado. Quando virou o pescoço, encontrou alguns rostos da ala de enfermagem espiando de perto das escadas, Marieta entre eles.

— Tá um dia bem tranquilo, né? — Tomás perguntou, cruzando os braços para disfarçar o rubor. Devia estar, se sobrava tanto tempo para ver novelas.

*

No metrô, Yue entrou no Instagram. O primeiro story que abriu foi uma foto que Tomás tinha postado de manhã: uma xícara de café encimada pelo trecho de uma música da Lana Del Rey: Tell me all the things you wanna do. I heard that you like the bad girls, honey. Is that true?

Clicou no coração no canto da tela, como sempre fazia.

Você gosta de café, né? A gente devia ir tomar um qualquer dia.

Não eram assim tantas palavras. E estavam bem na ponta dos dedos, o que era mais cômodo. Mesmo assim, não conseguiu se convencer de enviá-las. Desistindo, abriu o Telegram, dando de cara com uma foto enviada por Vi, fazendo graça na academia. Rolou os olhos tão discretamente que eles quase não se mexeram.

“Vai bem a vida de socialite, né?”, comentou.

A foto era de três horas antes, mas Vi começou a digitar a resposta logo depois. Sempre on-line, é claro. Sempre disponível. Devia ser mais fácil sem uma sequência de bicos todos os dias.

“Pra caralho. Trampo foi de boa?”

“Uhum”, começou. E então emendou: “Viu, como é que vc chama gente pra sair?”

“Mandando um BORA SAIR, como eu faço ctg.”

“Se pá que tem um carinha”, enviou.

“E você chamou?”

“Não.”

“Para de enrolar, caralho. Se vc tá a fim, então chama. Eu sempre meto essa se tô a fim de alguém.”

“Mais um dia na vida de Victor Lobo 🙄”, implicou, guardando o celular em seguida. Ele sempre chamava, é claro. Não era surpresa. Cansou de ouvir os casinhos do melhor amigo, tantos que chegou ao ponto de pedir pra que ele só voltasse a comentar se fosse importante.

Ele sempre chamava se estava a fim. Não era tão simples quanto Vi fazia parecer. Yue acompanhou o sinal luminoso do metrô, guardando celular para fazer a baldeação. O misto de pequenos incômodos rodando sua cabeça era incompreensível e não tinha tempo para isso.

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Sentado na ponta do sofá, Lótus terminou de calçar as alpercatas amarelas e esticou um dos pés para analisar. Os dedos eram meio tortinhos, com unhas curtas pintadas de preto para disfarçar os hematomas debaixo delas. Sapatilhas estavam entre suas coisas favoritas, mas deixavam machucados tenebrosos, como todo comprometimento verdadeiro deveria deixar.

― Você vai calçar isso? ― sua mãe questionou, erguendo os olhos da pasta de croquis sobre o colo, incapaz de esconder a expressão contrariada.

― A botinha da Miu Miu que quase arranca o chaboque do meu dedo é que eu não vou ― ele respondeu, o olhar cândido indo dela para a mulher ao seu lado. ― Não é bonita, tia Elaine?

― Certamente é… Exótica. ― Ela abriu um sorriso meio nervoso, desviando o olhar de Lótus logo em seguida. Alguma coisa na expressão do rapaz sempre conseguia deixá-la desconfortável. ― Eu ouvi falar que virou acessório it por esses tempos, não foi? Rococó nordestino ou algo do tipo. Até considerei aderir.

― Viu, mãezinha? Eu continuo sendo o it boy de sempre. ― Lótus se levantou com a fluidez de um bailarino, ajustando as alças do macaquinho marrom, e logo depois o pesado colar bronze em forma de cobra. ― Mas toma cuidado, tia Elaine, que precisa de bastante tutano pra sustentar um rococó assim.

Ele ouviu a mãe suspirar, as mãos se fechando sobre a pasta de desenhos. Lótus tinha certeza de que, nessas horas, ela estava resgatando toda a força de vontade que a impedia de rachar contra a parede a cabeça do único filho que lhe restara. Em resposta, o rapaz saltitou até a mesa de centro, onde trufas licorosas descansavam, e roubou três delas. Duas foram para o bolso da frente do macaquinho, a terceira, levou à boca, mordendo com satisfação. Eram as favoritas dela, os únicos doces que Sônia se permitia comer ― e Lótus tinha quase certeza de que era menos pelo açúcar e mais por cada trufa praticamente equivaler a um shot.

― Eu sei que digo isso toda vez, mas é tão bonitinho o jeito que ele fala, Sônia ― Elaine emendou, achando que isso poderia amenizar a tensão que ganhava escala naquela troca de olhares.

― Valha, e tu acha bonito só porque eu falo com palavras, é? Se eu me comunicar por sinais tu vai achar bonito também?

Sabia que era: o sotaque que se recusou a perder, com as vogais abertas, os “os” virando “us” e toda a musicalidade. Ele e a mãe tinham se mudado de Sobral para São Paulo há quase dez anos, logo depois do divórcio. Em favor de Sônia, ela havia feito milagre em uma cidade inóspita, erguendo seu pequeno império em torno de vestidos exclusivos para noivas, mas ao preço de uma naturalização forçada que também tinha tentado impor a Lótus: ela não podia parecer cearense, falar como uma cearense, se expressar como uma cearense, e abandonara tudo ― ritmo e sotaque ― com o intuito de parecer paulista. Tinha dado certo, e suas clientes mais importantes costumavam falar, cheias de um orgulho condescendente, que Sônia nem parecia do Ceará.

Lótus não havia comprado aquele descabimento. Sobral era uma lembrança distante agora, mas lá estavam algumas de suas melhores memórias.

― Não foi o que eu quis dizer… ― Elaine começou.

― Então nem diga ― Lótus cortou, o sorriso fazendo seus olhos se fecharem.

― E onde nós pretendemos comemorar seu aniversário? ― Sônia interrompeu com a voz monótona que assumia quando estava às vésperas de gritar.

Nós não vamos para lugar nenhum, mãezinha, mas eu vou encontrar um amigo.

― É o seu aniversário…! ― ela meio sussurrou, meio exclamou.

― E justo por isso eu não vou te querer de mutuca até no jeito que eu respiro.

― Pelo amor de Deus! ― Sônia explodiu, levantando numa bagunça de papéis, as mãos se agarrando aos cabelos, em fúria. Aquela criatura tinha o condão de tirá-la do sério, e sempre fazia isso na frente das clientes. ― Quando você vai parar de falar assim?

― Assim como? ― ele questionou, inspecionando as unhas curtinhas, esmaltadas com um rosa suave. Depois ergueu os olhos para a mãe, abrindo seu sorriso de socialite. ― Sério, eu não entendi.

Ele roubou mais uma trufa diante do olhar escandalizado de Elaine. A pirraça definitivamente lhe caía bem.

― Sem falar que tu tá toda alterada, mãezinha. Eu te vi bicando aquele rosê desde o começo da tarde. Pega mal sair trocando as pernas por aí.

Deixou para trás um cenário de guerra, com a mãe gritando que ele já era adulto e iria expulsá-lo de casa, e Elaine aos murmurinhos tentando acalmá-la. Por sorte a porta do quarto estava trancada, então não havia chance de ela ir descontar a fúria em Cremilda e Clotilde, as suas cobrinhas. Mais tarde, quando voltasse, encontraria Sônia mergulhada em um sono embriagado e teria mais algumas horinhas de paz.

Moravam em Higienópolis, e o elevador era praticamente privativo, sendo um apartamento por andar. Lótus se encarou no espelho, apertando as pontas dos cabelos para definir um pouco mais as poucas ondas que se formavam. Passou os dedos pela franja curta e bicolor ― metade preta e metade rosa ― e limpou o cantinho de um dos olhos para corrigir uma pequena falha no delineado.

― Você gosta de cobras? ― o taxista perguntou depois de ser informado sobre para onde iriam. Olhava o colar de Lótus com interesse.

― Eu amo! Tenho duas cobras-de-milho, o senhor conhece? Elas são inteligentes que só. ― O sorriso se alargou, cheio de uma energia juvenil. Sabia como parecer mais novo e mais bobo. ― Quer que eu conte um pouquinho sobre?

Era tudo parte do charme: o jeito como o sotaque caía bem em seu rosto redondo, o sorriso que revelava os dentes da frente, meio grandinhos, e como cada frase sempre terminava num bico.

― É aqui. O senhor espera um pouquinho? ― Lótus pediu quando estacionaram, tocando o homem no ombro com a intimidade de um velho amigo. ― Meu amigo chega já, já.

“tô te esperando, bichinho 🌸”, informou a Tomás.

Ainda estava chateado, mas se a alternativa era comemorar o aniversário naquela casa sufocante, preferia gastar seu tempo com alguém que lhe desse atenção, com ou sem mentiras.

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― Feliz aniversário ― Tomás disse assim que entrou no táxi parado na saída lateral do hospital. E deu uma fungadinha com o nariz ainda meio afetado antes de envolver Lótus em um abraço doce. A voz saiu manhosa quando voltou a falar. ― Desculpa não ter trazido as suas flores lindas. Eu tenho um pouco de alergia. Acho que esqueci de te contar… Mas eu guardei o cartãozinho.

― Oh! ― Lótus levou as duas mãos à boca, os olhos se arregalando um pouco. ― Bichinho, é verdade. Eu fiquei tão empolgado por te comprar flores bonitas que simplesmente me esqueci desse detalhe.

Só que não. Por tudo o que conhecia de Lótus, era muito mais a cara dele dar flores como uma mensagem do que se esquecer de sua única alergia. Mas, se ele sabia ser vingativo, então Tomás sabia ser dissimulado. Combinavam bastante, achava. Lótus teria que concordar.

― Lindo, eu preciso te contar um negócio… ― começou a dizer enquanto o táxi fazia a curva para fora do estacionamento.

― Olha, bichinho! ― Lótus o interrompeu, mostrando um feed do Instagram. ― É onde nós vamos, um lugarzinho massa que só. Eles fazem tortinhas e cupcakes, eu recomendo o de cerveja preta.

Se Tomás queria tirar qualquer peso de culpa dos ombros, faria isso depois de seu aniversário ser devidamente comemorado. Tinha planos!

― Que lindo… ― Ajeitou o cabelo antes de tocar o braço dele com as mãos, segurando um sorriso divertido. ― Vou deixar pra entregar seu presente mais tarde já que você tá tão empolgado pra comer!

Os dois desceram diante de uma lojinha estreita na Vila Olímpia, com paredes em tons pastel e um pequeno quadro negro estilizado bem na porta, anunciando os sabores especiais do dia. Passaram por um balancinho enfeitado com flores ao entrarem e Lótus tocou o braço de Tomás no meio de uma risada empolgada.

― Tira uma foto minha aqui?

― Estamos com tempo? Seus convidados não estão esperando? ― perguntou, enquanto já sacava o celular. O enquadramento que conseguia com aquele balanço e as flores combinando com a franja meio rosa era perfeito. ― Você vai amar essa foto…

― É claro que eu vou, você quem tirou! ― Lótus disse, fazendo uma pose natural, a de alguém acostumado com lentes. ― Você é meu único convidado, bichinho ― completou, esticando a mão para espiar a foto no celular.

― Só eu? ― A informação o pegou de surpresa. ― Mas é seu aniversário. Não quis chamar mais ninguém? ― Acompanhou seu movimento quando ele espiou a foto. Tinha mesmo ficado uma graça. Todo aquele lugar exalava a mesma energia de Lótus. Só seria perfeito se tivessem drinks coloridos e cheios de álcool, como uma coisa bonita que esconde um lado perigoso.

― Não ― ele respondeu com simplicidade e um sorriso gigante, sinalizando para irem pegar uma mesa. ― Eu poderia ter chamado mãezinha, mas se ela quis perder minhas primeiras palavras, minha primeira menstruação, minhas formaturas, ela sobrevive sem um aniversário ou dois.

Ou todos.

Tomás ocupou seu lugar à mesa, numa cadeira de encosto rosa-bebê, perto do parapeito da janela. A mesa era decorada com um vaso de flores de plástico no formato de uma câmera analógica.

― Eu não vou conseguir esperar pra te entregar ― falou. E esfregou os resquícios de alergia do nariz vermelhinho antes de pegar o embrulho na mochila e apoiá-lo sobre o tampo da mesa. ― Pra você. ― E então emendou, antes que ele pudesse interromper: ― Lótus, eu menti no outro dia, quando disse que estava com a minha vó. Mas não foi pra te chatear. E eu sei que você sabe. Desculpa.

Lótus tamborilou as unhas sobre o embrulho, encarando o padrão de flores. A expressão sorridente tinha sumido, embora ele não parecesse irritado ou chateado agora, apenas um pouco triste.

― Você pode só me falar quando não quiser companhia, sabe? Não vou arengar com isso. Mesmo que seja pra me trocar por um alfa de omegaverso do tamanho duma porta.

Não resistiu. Aquilo fez Tomás soltar uma gargalhada tão gostosa que precisou afastar os óculos para secar uma lagrimazinha no canto de um dos olhos.

― Ele é enorme mesmo, então? Não era só impressão de bêbado… ― balançou a cabeça antes de deitar o queixo sobre as mãos. ― Eu nem conhecia ele antes. Saí pra beber sozinho.

― E claramente não ouviu os conselhos da tua vozinha sobre lobo mau e companhias ― Lótus implicou.

― Você nem vai acreditar se eu disser que é esse o nome dele, né? Mas ele parece bonzinho.

― Ele se chama Lobo? ― Lótus falou alto, chamando a atenção da mesa vizinha. ― Só piora.

― É um sobrenome! ― Tomás corrigiu, escondendo o rosto nas costas da mão. Então voltou a apontar o embrulhinho. ― Não quer ver o que é? Passei horas escolhendo ― dramatizou.

― É bom que tenha passado mesmo, pra compensar que me trocou pelo Mogli. ― Lótus franziu o nariz, dando pulinhos empolgados na cadeira.

Abriu o embrulho com cuidado para não estragar aquela embalagem bonitinha, que iria guardar junto com o presente.

Tomás tinha valorizado sua própria busca ao dizer que foram horas, mas a verdade é que passou mesmo um bom tempo dentro daquela papelaria enfeitada, vasculhando prateleira por prateleira em busca de algo que fizesse sentido. Até encontrar aquilo, um scrapbook de folhas largas e grossas, com a capa cor de rosa num padrão de escaminhas e um marcador de páginas acoplado no formato de uma pequena cobra prateada.

― Eu posso escolher um drink pra você? ― Tomás perguntou numa voz arrastada, recostando o corpo contra a cadeira enquanto o rosto quase sumia atrás do cardápio colorido. ― Você gostou?

― É a coisinha mais fofa desse mundo! ― Lótus exclamou em uma alegria genuína, apertando o scrapbook contra o peito. ― Nós vamos precisar de muitas fotos pra preencher todas as páginas ― continuou, se inclinando na direção dele. Lótus tinha dois tipos de sorriso: o social, amplo e assustador, o sorriso de alguém que não admitia ser contrariado; e aquele, que era pequeno e quase inocente, mais erguido nos cantinhos do que outra coisa. ― Escolhe, mas lembra da regra da dose dupla de álcool!

― Eu nunca esqueço uma regra que é minha também… ― respondeu enquanto passava o olho pela página de bebidas. Na noite em que conheceu Vi, o drink que ele tinha comprado fora o seu mais sutil em tempos. Sempre achavam que não aguentaria algo mais forte. Lótus, ao menos, nunca o subestimou com isso.

Quase como se adivinhasse aqueles pensamentos, Lótus assumiu um tom confidente.

― Viu… E tu sentou naquele alfinha de dois metros, no fim das contas?

― Lótus! ― Tomás arregalou os olhos, a expressão perdida por um instante antes de retomar o sorriso. ― Eu preciso do meu drink antes de falar dessas coisas… ― Suspirou, chamando a garçonete para poder pedir, completando antes que ela chegasse. ― Mas não, ainda.

― Valha, e agora tu deu pra ser pudico, foi? ― ele brincou, dando risada, a bochecha gordinha apoiada contra a mão. ― Vou esperar a bebida pra fazer a próxima pergunta, então.

― Não pudico, só sóbrio.

No tempo em que as bebidas levaram para chegar, Tomás já tinha trocado de cadeira para uma ao lado dele, aproveitando a nova posição para deitar a cabeça em seu ombro de um jeito mimado.

― A faculdade tá me cansando tanto… Eu só queria beber até esquecer meu nome ― sussurrou, bebendo o primeiro gole de um drink chamado Xamego. Basicamente um sex on the beach, com bordinha açucarada e uma cerejinha. ― O que você queria perguntar? Eu aguento agora.

― Ia falar que se tu continuar frequentando o canil ― Lótus começou, puxando o próprio drink para perto: um exagero de rosa feito com gin, tônica e suco de laranja, e enfeitado com um pedaço de algodão doce que também dava nome à bebida ―, se o bonitinho não for arregão que dá pra trás com mais de uma pessoa na cena, tu bem que podia me deixar assistir a brincadeira.

Era uma relação que combinava com eles: Lótus não gostava tanto de toques alheios ― embora os de Tomás pudessem deixá-lo ávido ―, mas compensava em brincadeiras divertidas que sempre poderiam incluir tantas pessoas quanto Tomás quisesse. E Tomás era como um enfeite brilhante, um imã que atraía pessoas interessantes.

― Eu pergunto pra ele ― Tomás franziu a testa, como se aquilo fosse bem simples. ― Só me deixa conhecer o carinha um pouco melhor. Eu não acho que ele vá achar ruim. ― Bufou, meio frustrado, antes de emendar um gole mais longo de bebida e a caretinha que veio em seguida. ― Sabe o contador de histórias bonito que te falei?

― Quê que tem?

― Ele tava lá hoje. ― O olhar de Tomás desceu até a bebida colorida, que ele agitava casualmente com o canudo de papel. ― Não me chamou pra sair de novo. E eu encarei de verdade dessa vez.

Com cuidado, Lótus desfiou o pedaço de algodão doce, que começava a derreter dentro do drink, e colocou na boca. Depois se inclinou, apoiando uma mão na coxa de Tomás antes de pousar um beijo em sua boca.

― Mostra pra mim como que tu encarou.

― Assim… ― Tomás se afastou para olhá-lo de um jeito confortável. As sobrancelhas suavemente erguidas enfatizavam o brilho dos olhos dourados. ― Não é bom o suficiente pra alguém querer sair comigo?

― Bichinho, tu tem certeza de que o marmanjo não é hétero? ― Lótus ergueu a mão, apertando a parte de baixo dos lábios dele com o polegar. ― Porque só isso.

Tomás mordeu seu dedo e então voltou a gargalhar, segurando a mão de Lótus na sua. Ele conseguia fazê-lo rir muito fácil todas as vezes. Fez um bico manhoso logo depois, trazendo a mão de Lótus para cima, roçando o rosto contra a palma.

― Isso ia ser muito injusto ― reclamou.

― E tu tem contato com ele fora do hospital? ― perguntou, já prevendo que Tomás pegaria o celular, o que ele fez. Analisou as primeiras fotos do feed daquele cara. Ele aparecia em uma só, em meio a imagens de divulgação de eventos e fotos conceituais de murais grafitados. ― Tão expressivo quanto uma natureza morta, mas eu sentava.

― É, né? ― Tomás ampliou a foto em que ele aparecia, mordendo o cantinho do lábio. ― Quando ele conta as histórias, parece tão animado. Eu queria entender… ― E então deu de ombros, desistindo do celular. ― Mas sei lá, acho que ele nunca vai me chamar.

Lótus deu uma risadinha malvada no meio de um novo gole de drink, aproveitando os lábios geladinhos para beijar o pescoço de Tomás, erguendo a boca até a altura de seu ouvido.

― Nesse caso, bichinho ― ele sussurrou ―, por que tu não decide aparecer onde ele tá?

Continua…

No próximo capítulo… Sabemos que o futuro Senhor dos Lobos sabe ser bagunceiro, mimado e protetor e que sua mira não é muito digna de louros, mas o que seus punhos podem fazer? E o que faz de Yan um curandeiro tão valioso? Fiquem a postos porque também teremos ela, nossa Sereia, Li’a, debutando na história. O próximo capítulo vem cheio de emoções. Preparem um chazinho para acalmar o coração.

O Capítulo 6 — A Bela e a Fera chega no dia 15 de setembro às 12h! Quem é a Bela e quem é a Fera é uma decisão que deixo pros corações de vocês.

Nos vemos em muito breve!

Ei, vizinho! Não esquece de me acompanhar nas outras redes! 💫

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