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💫 Pontes Imortais ― Capítulo 4
O segredo são duas colheres de mel
Olá, seus coelhudos! Voltei no dia prometido com mais um capítulo de Pontes Imortais.
Na semana passada, comemoramos meu aniversário com uma edição super especial da minha newsletter, a Bunny Hour (deadbunnybl.beehiiv.com). Espero que tenham gostado dos mimos!
Sem mais enrolação, vamos voltar à nossa história!
No capítulo anterior… Vi e Tomás parecem bem entrosados pra quem acabou de se conhecer, não acham? Depois daquele rolê todo pela Augusta e do beijo em plena Paulista, acho seguro dizer que o desfecho do capítulo teria sido outro se Tomás não tivesse sido pego numa mentirinha pelo Lótus. Deixemos nosso príncipe das cobrinhas remoendo um pouco mais aquela cara de pau e vamos voltar para as Cidades Flutuantes, onde Kuí e sua Ópera haviam acabado de chegar a Farkas na ocasião do Festival da Vitória. A música para este capítulo é Castle of Glass, do Linkin Park.

Capítulo 4 — O segredo são duas colheres de mel

Farkas, Pré-Hecatombe
― Oz.
Ravi estacionou ao lado do filho, a mão mecânica firmemente plantada em seu ombro em um recado velado.
― Você era muito jovem da última vez em que nos encontramos com o Senhor Instrutor, mas…
― Oh, é o seu garotinho? ― Kuí interrompeu, aproximando-se de Oz em um movimento tão fluido que foi como se deslizasse pelo chão. ― Já é um lobo e tanto, Ravi, querido. Eu ficaria de olhos abertos no seu lugar. Não dizem que lobos dessa idade estão prontos para roubar um território? ― O sorriso infantil de Kuí pareceu ficar ainda maior. ― Não faça essa careta, querido, eu estou brincando.
— Para alguém que acabou de me chamar de garotinho, você parece ter altas expectativas sobre mim. — Oz tinha os braços cruzados. O sorriso de canto era ácido e contido, o suficiente para não subir aos olhos. Era como sorria quando estava bravo.
― Ou baixíssimas sobre o seu pai, tolinho. Pense nisso. ― Kuí piscou, charmoso, envolvendo o braço de Ravi com as mãos no meio de uma gargalhada. ― Vamos, me mostre como estão as coisas, você sabe como é minha memória.
Oz revirou os olhos, olhando ao redor. À primeira vista, as cobras tinham sido um desconforto. Poucos minutos depois, aquela criatura já tinha feito seus dois répteis parecerem bem mais agradáveis.
Suas memórias sobre o Instrutor eram imprecisas, varridas para longe pelos ventos do trauma, mas a silhueta dele pontuava algumas poucas lembranças de sua juventude, como uma sombra indistinta.
— Pai, não vai esperar o Yan? Ele desceu para buscar o seu treco pra dor de cabeça.
― É um sinal de que ele ainda tem pernas para me encontrar ― Ravi grunhiu. ― Esteja pronto antes de escurecer, Oz. Te quero ao meu lado na cerimônia de abertura. Você também, Senhor Instrutor ― exigiu, recebendo de volta um sorriso aveludado.
― Eu adoro os assentos especiais, querido.
— Aposto que adora — Oz grunhiu baixo, se afastando uns passos até perto da escadaria, o olhar vigiando o caminho que levava aos aposentos comuns. — Eu vou me arrumar, então. Pra estar pronto na hora. Seria indelicado demais deixar a visita esperando. — Ameaçou mostrar os dentes, mas se conteve. O tom enfático marcava como o via: como um forasteiro. Alguém com pouquíssimo tempo em Farkas para chegar com tantas opiniões.
E, ainda assim, não seria de bom tom tratá-lo com descaso. A Ópera do Fim do Mundo não era apenas uma pomposa trupe de artistas, mas a principal comitiva de diplomatas das Cidades Flutuantes. As lideranças de todas as cidades agiam com cautela quando a Ópera chegava em seus territórios: poderia ser vantajoso; também poderia ser trágico.
Farkas era uma cidade alimentada por sussurros. Anos antes, esses mesmos sussurros tinham colaborado para a destruição de Nivaria. Agora, estavam muito mais dispostos a dedicar energia a espalhar a fama do tal Instrutor. Um ser antigo e muitíssimo bem relacionado, com seu sorriso calmo e a fala doce. Uma criatura agradável aos que bem o cortejassem, mas com palavras venenosas o suficiente para causar problemas nas fronteiras.
Como líder da cidade, era esperado que seu pai dedicasse a ele não menos do que uma boa dose de atenção. Oz ainda não tinha essa obrigação. Teria no futuro, quando fosse líder. Então pensaria em como estabelecer uma relação melhor com aquela criatura e sua ópera metida. Por agora, podia apenas se afastar. E então caminhar alguns passos atrás durante a noite e aproveitar as festividades do seu próprio jeito.
*
― Eu trouxe alguns presentes, querido ― Kuí comentou depois de visitar o Salão Memorial dos Farkas e prestar suas homenagens aos Imortais e aos antepassados da família. ― Garrafas daquele rum vulcânico de que você tanto gosta, diretamente da minha terra natal. ― Uma das cobras ergueu a cabeça, a língua brincando com a lateral de seu rosto. Ele deixou o tom de voz abaixar até um doce sussurro. ― E uma aliada, com segredos de outras fronteiras.
― O rum já seria um presente incrível — Ravi entoou, a voz alta e provocativa dos lobos, o tom de alguém que não tinha inimigos por perto. Ainda assim, ele se inclinou para ouvir a segunda parte da conversa. — Quem é essa aliada e que segredos me traz?
― Você já deve ter ouvido falar sobre ela, querido, bem informado como sei que é ― Kuí cantarolou. Sua entonação era sempre musical, um dialeto macio que se misturava ao de Farkas. O brilho no olhar era como o das crianças diante de uma brincadeira nova.
― A Sereia? ― Ravi arriscou, com a voz contida, vendo Kuí concordar. ― E eu terei o prazer de conhecê-la ainda hoje, imagino.
― Ela adoraria, meu bem, mas temo informar que uma voz tão única veio aliada a uma saúde frágil. Um lobo forte como você não entenderia, mas criaturas mais delicadas costumam ficar amuadas depois de viagens longas. ― Kuí deu um passo para mais perto de Ravi, como se não o incomodasse tamanha proximidade em um espaço aberto. ― Mas pensamos em apresentá-la no último dia do festival, em um espetáculo exclusivo para a sua família. Parece a forma certa de comemorar dez anos sem aquela gente horrorosa, certo? Não é bem esse o foco desta linda festa?
Um pássaro-engrenagem os alcançou em um dos pátios internos. Fora dos portões das dependências da família, o som e os cheiros das festividades começavam a tomar as ruas. Ravi estendeu a mão para que o pássaro se aproximasse. Em suas garras, trazia uma bandejinha sustentada por quatro fios de cobre com um pequeno bule fumegante e um copo de cerâmica escura.
— Um momento, meu amigo — Ravi pediu, se interrompendo para se servir de um copo de chá, liberando o pássaro enquanto voltava a caminhar carregando ele mesmo o bule e o copo, que pareciam ainda menores e mais delicados em suas mãos. — Parece que meu curandeiro mandou um emissário para me entregar o chá. — Balançou a cabeça com humor. — É isso que dá criar alguém assim como um convidado dentro dos meus muros. Ele toma certas liberdades.
— Seu curandeiro pessoal não é de Farkas? — Kuí ergueu uma sobrancelha. — Você não cansa de me surpreender, meu bem.
— Não é, mas foi por uma boa causa. — Ele tomou o primeiro dos goles. As ervas daquele tipo de chá costumavam deixar na garganta um rastro amargo, mas Yan sempre fazia questão de adoçar seus preparos com um bom tanto de mel, de forma que Ravi nem precisasse se incomodar com sabores ruins. — Você deve tê-lo visto nos meus aposentos quando chegou, meu amigo. Uma criaturinha pequena. Com orelhas de arminho.
― Oh! ― Kuí não fez questão de esconder a surpresa. ― Então você cria mesmo um nivariano debaixo das patas?
― Mestiço. — Ravi corrigiu sem hesitar. — Um curandeiro com uma habilidade boa demais para desperdiçar com nivarianos. Tem vivido aqui desde que era adolescente. Tirando as orelhas, quase consigo me esquecer de onde veio.
— E esse chá aromático é o remédio que ele preparou? Deve ser mesmo especial, se supera o talento de todos os curandeiros da sua bela cidade.
— Não se faça de rogado. — Ravi abriu o sorriso, orgulhoso, oferecendo-lhe o copo de cerâmica. — Tome um gole você mesmo. Nem vai sentir como se fosse um remédio. Ainda assim, basta um pequeno bule e minhas dores sempre se vão.
Kuí tomou o copo nas mãos, bebericando o que havia restado do chá ― apenas o bastante para uma breve degustação do sabor de ervas e mel.
― É certamente muito agradável, querido. ― Kuí tocou a cabeça de sua cobra ao vê-la armar o bote contra o passarinho-engrenagem que havia se aproximado para recolher a louça. Erguendo a mão, devolveu o copo vazio. ― Mais uma vez você mostra o quanto é sábio nas decisões. Ah, meu bem, mas chega de conversa. O som da música lá fora está me deixando ansioso. Ainda vamos demorar a sair?
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— Você ainda vai ter muitos dias pra fazer isso — Yan cantarolou, o rosto apoiado nas mãos enquanto observava Oz do canto da barraca.
Ravi tinha ordenado que Yan cobrisse as orelhas. De fato, ele tinha escolhido um chapéu para usar naquela noite, feito de palha clarinha, com abas largas em formato circular, que se prendia ao seu pescoço por um belo laço de fita lilás.
Não o usava na cabeça, entretanto, mas caído para trás, cobrindo a nuca e os ombros. As orelhinhas arredondadas continuavam à mostra, vítimas de um ou outro olhar, mas não de comentários. Yan sorriu em silêncio, vendo Oz testar o peso da machadinha na mão com um sorriso largo no rosto. Alguém teria que ser mesmo muito burro para falar qualquer coisa enquanto andasse por aí exibindo suas perigosas orelhas nivarianas ao lado do herdeiro de Farkas.
— Mas eu quero hoje! Você tá com pressa? — Oz perguntou animado.
Tinha todo o espaço da barraca para si e um pequeno aglomerado de pessoas ao redor, assistindo suas tentativas enquanto davam gritos de suporte. Ele girou a machadinha na mão uma última vez antes de arremessá-la contra o boneco de madeira no centro do alvo. A arma passou tinindo ao lado da cabeça, arrancando uma lasca gorda de madeira de onde estaria uma orelha, mas se fincando atrás, no cenário.
Oz soltou um rosnado irritado, acertando um soco tão potente no tampo de madeira que a estrutura toda da barraca balançou.
— Quantas chances ainda tenho? — perguntou alto para o vendedor. Tinha substituído o sorriso por um olhar ameaçador, o que costumava significar que estava começando a perder a paciência.
— Quantas precisar, jovem mestre. — O vendedor respondeu de prontidão com a voz abobalhada. — Um herdeiro Farkas já nasce um herói. Nem precisa perder mais do seu tempo se não quiser. Só me diga qual prêmio deseja.
— Está insinuando que não posso ganhá-lo por mim mesmo? — Ele mostrou os dentes.
Yan cobriu o rosto com as mãos, escondendo um sorrisinho. Se continuassem assim, talvez passassem a noite toda em uma barraca só.
“Não acerta um mamute se estiver morto na frente dele”. A voz em sua memória pareceu de súbito tão clara que Yan quase olhou para os lados, esperando encontrar por ali um par de olhos da cor da geada.
— Oz — ele chamou baixo. Se levantou, indo até ele e tocando seu braço num gesto afetuoso. — Eu tô com fome. Podemos fazer uma pausa?
O céu começava a ganhar os tons de bronze que adquiria quando a capa escura dos Imortais começava a cair, anunciando o fim das horas claras. Não havia sol, lua ou estrelas no céu das Cidades Flutuantes, mas aquelas criaturas conheciam o conceito de dia e noite ainda assim, dado que os Imortais mantinham um fluxo quase constante de luz e trevas no mundo. Nos numerosos templos e pequenos oratórios espalhados pelas quatro Cidades, sacerdotes cuidavam para manter velas, incensos e oferendas sempre frescas nos altares, o que era sensato. Brincar com o humor dos Imortais sempre poderia significar longos períodos de escuridão, o que arruinaria as prósperas colheitas de Farkas.
De longe, o som dos sinos marciais anunciava que novas oferendas acabavam de ser feitas. Durante o Festival, Ravi era ainda mais generoso com seus templos. A vitória contra Nivaria havia sido uma grande prova de que tinha os Imortais ao seu lado.
— Fome? Nós acabamos de chegar… — Oz ergueu o olhar no meio do resmungo. Pela cor do céu, estava errado, mas não diria em voz alta. — Tudo bem. Eu não quero ser conhecido como o lobo que deixa seu acompanhante com fome. Minha última tentativa, e vamos te comprar comida.
— Tá bem — Yan arriscou outro sorrisinho, ameaçando um passo para se afastar quando Oz o segurou pelo pulso.
— Não, fica aqui. Fica pra me dar sorte — demandou, em um tom que era muito mais de ordem do que de pedido.
Yan ficou, apoiando novamente o rosto na mão enquanto esperava pela jogada. Oz testou a machadinha na mão pela centésima vez, deu dois passos para a direita e então de volta para o centro, fechou e voltou a abrir um dos olhos. Enfim, ergueu a machadinha, mirando-a na cabeça do boneco e…
— Cuidado, cachorro fedido! — Shu Lan gritou. Tinha se esgueirado para fora do cabelo de Yan e se esticado sobre seu chapéu.
Pego pelo susto no meio do movimento, Oz lançou a machadinha em diagonal, fazendo-a passar voando sobre a cabeça do vendedor e se fincar na viga que sustentava o toldo.
Yan arregalou os olhos. Ao redor da barraca, ninguém ousou se manifestar. Ninguém, além de Shu, que soltou um sonoro “he-he” antes de voltar a se esconder, o rabinho branco coberto de manchinhas chacoalhando na lateral do chapéu.
— Eu vou… — Oz respirou fundo, fechando os olhos e a mão em um punho. — Eu vou cortar esse bicho em três algum dia, Yan. Fazer espeto de lagarto e dar de comer pros lobos!
— Até os lobos vão ganhar comida antes de mim? — Yan fez um biquinho, se aproximando e beijando sua mão. Os ombros dele perderam um pouco de tensão.
— Foi um bom arremesso, jovem mestre! — O vendedor aplaudiu, enquanto o sangue voltava ao rosto depois do susto. E apontou para a machadinha fincada no fundo da barraca. — Vejam quão poderoso é o herdeiro Farkas! Ninguém nunca acertou uma machadinha tão… longe! Foi essa força que dizimou centenas de nivarianos!
— Chega — Oz não ergueu a voz. Pelo contrário. Soou assustadoramente sério, enquanto a mão se fechava ao redor do pulso de Yan. — Vamos. Esta barraca é um saco.
Os dois se viraram para sair em meio a uma pequena plateia que se dispersava. Da aba do chapéu de Yan, Shu mostrou a língua para o vendedor ainda calado.
Por onde passavam, eram seguidos por uma multidão de olhares. Não só porque Oz tinha a estatura do clã principal da cidade e uma onda farta de cabelos negros a se espalharem pelas costas, mas também porque suas vestes — trespassadas na altura do peito, em um tom de índigo destinado apenas àquela família — chamavam atenção em meio à decoração laranja.
Yan, ao seu lado, não usava aquelas cores, mas uma túnica simples e branca, com bordados delicados em fio cor de ouro.
— Aqui — Oz chamou sua atenção, exibindo sobre a palma da mão um pequeno bolinho de gemas doces que havia acabado de comprar de uma vendedora ambulante. — Pra você.
Os olhos de Yan se ergueram até os dele. O sorriso que ofereceu foi gentil e íntimo, mas não muito animado, nem mesmo enquanto comia o doce aos bocadinhos e o oferecia a Shu, em seu ombro.
— Foi o que ele falou, não foi? — Oz perguntou, mostrando o canino afiado numa careta torta. — Sei que essa festa é pesada pra você. Se quiser ir pra casa, digo ao meu pai que você estava cansado da viagem.
— Eu quero ficar mais um pouco, mas talvez aceite a ideia de perder a cerimônia — respondeu, se encostando no peito de Oz para comer o último pedaço de doce. — Mas ainda tem um tempo, não é? Nós podemos comer aquele pão de carne no vapor. Eu senti o cheiro do preparo enquanto chegava hoje cedo.
— É verdade, você sempre gostou desses — Oz voltou a sorrir. Pousou a mão sobre a orelha de Yan em um afago suave. — Vamos. Vamos lá pegar os seus pães. Você acha que uma dúzia daria conta?
— Eu como dois, no máximo… — Yan sorriu, deixando que ele o puxasse novamente pelo pulso em direção às barracas centrais, de onde emanava o vapor cheiroso de comida de festa.
— Uma dúzia, então. Parece perfeito.
*
Uma dúzia de pães depois, Oz estava entretido em uma barulhenta queda de braço. Ao seu lado, Yan admirava as luminosas dobraduras de papel que flutuavam sobre as barracas, entre pássaros, insetos e mesmo objetos inusitados, como pequenos bules. Aquilo havia aparecido de última hora, depois de saberem que a Ópera do Fim do Mundo estava na cidade. A trupe era conhecida por suas monstruosas dobraduras que distraíam o público tanto, ou mais, do que o talento de seus artistas ― e é claro que o povo de Farkas criaria sua versão menos glamurosa da coisa, apenas por farra.
― Rendam-se, nivarianos! Ou é aqui que nossas pontes se rompem para sempre!
― Nós preferimos nos lançar no olho do vórtex!
O olhar de Yan deslizou até um grupinho de crianças não muito longe dali. Aquelas palavras, conhecidas por qualquer pessoa em Farkas, eram o bordão atribuído a Ravi no cerco à Nivaria. O garotinho que fazia as vezes de Ravi usava um surrado colete de pele. Uma máscara de papel meio amassada, presa à cabeça, mimetizava o crânio de lobo do líder Farkas. Na frente dele, um outro tinha duas cascas de limão amarradas por barbante ao topo da cabeça no que deveriam ser orelhas nivarianas.
Avançando com um grito que lembrava um rosnado de filhotinho, o Ravi de brincadeira bateu em seu rival com uma espada de madeira, arrancando do menino um chororô sentido.
― Por que você me bateu? ― ele questionou, fazendo um bico.
― Porque você é o nivariano! ― seu companheiro rebateu, pondo as mãos na cintura.
― E por que eu sempre sou o nivariano? Você é um chato!
— Porque eu sou maior e mais forte! Eu tenho que ser o mestre Farkas! Ou você acha que os nivarianos eram fortões também? — Ele mostrou a língua.
O menorzinho continuava esfregando a cabeça, com os olhos cheios de água. Um dos limões tinha se soltado e pendia da cabeça como uma orelha decepada.
— Ei, cuidado — Yan os interrompeu com a voz suave. — Vocês podem se machucar assim.
O nivariano de mentirinha se virou em busca da voz e seus olhos se arregalaram, mirando as orelhas arredondadas no topo da cabeça daquela criatura.
Ele deu um passo para trás, sussurrando o nome do amiguinho, para que ele viesse para perto.
— O que você está fazendo, seu tonto? — O maior sussurrou ao seu lado. — É o curandeiro do mestre Farkas!
O menino franziu a testa e abriu a boca. Parecia pronto para fazer um comentário. Yan, à sua frente, já preparava um suspiro.
— Ei! — A voz alta de Oz chamou atenção não só dos meninos, mas de todas as mesas à sua volta, quando se levantou. — Ouvi dizer que tem alguém aqui se achando o farkasiano mais forte! Cadê? — Ele mirou o garotinho com a espada e abriu o sorriso, os dois caninos expostos. Em sua cabeça, o crânio de lobo era só parcialmente iluminado pelas luzes do festival. — É um desafio?
O garotinho arregalou os olhos. Como numa zombaria, a máscara que tinha imitando o adereço de crânio dos Farkas se soltou de sua cabeça e caiu lentamente para o chão.
— Eu vou contar até três e então vai ser um desafio! — Oz continuou. — Um…
Nem precisou continuar. Com um grito de medo e divertimento, as crianças correram entre as mesas em direção ao corredor de barracas, berrando que não tinham intenção de desafiar o jovem mestre.
Oz caiu na gargalhada, deixando o corpo descer de volta para a cadeira. Ao seu redor, as pessoas entoavam risos mais discretos. Mas ninguém ousou encarar as orelhas de Yan de novo.
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A desculpa que o próprio Oz o tinha dado mais cedo era perfeita. Yan não precisou alterar uma única palavra. Assim que as palmas começaram a anunciar a presença de Ravi no palco montado no centro do descampado, só precisou dizer que iria descansar. E que ele deveria estar na festa, onde era seu lugar de direito, como herdeiro do clã.
De trás de um tronco, na entrada do bosque, ainda pôde vê-lo ao lado do pai antes de se afastar um pouco mais, carregando uma lâmpada de papel. A voz alta de Ravi era repetida por uma enxurrada de pequenos autômatos, para que se espalhasse pelo território de Farkas como se vinda diretamente do vazio, como a voz de um Imortal deveria ser.
— Meus caros, bem-vindos ao décimo Festival da Vitória!
O som de mãos batendo em mesas de madeira por toda a festa fazia os passos de Yan na floresta serem ainda mais silenciosos. Erguendo a lanterna à frente do rosto, ele encontrou a trilha que levava ao miolo do bosque.
Para andar por aquelas bandas, era a noite perfeita. Não apenas porque a cidade parecia se concentrar ao redor do palco e entre as barracas iluminadas, mas porque até mesmo os lobos dos Farkas ficavam longe dos bosques em noites importantes, atraídos pela festa.
— É um imenso prazer tê-los aqui esta noite, para celebrar mais um aniversário da nossa maior glória.
Yan enrolou a cauda felpuda ao redor da bolsa que trazia trespassada ao corpo, evitando que pequenas folhas e cascas de árvore se prendessem ao seu pêlo clarinho. A trilha não era muito longa. Levava até uma pequena área, entre as árvores, dedicada antigamente à contação de histórias sobre todos os clãs.
Farkas fora, há não muito tempo, o centro comercial e cultural das Cidades Flutuantes, o polo que conectava todas as cidades, o elo entre culturas diferentes. Yan tinha vivido aquilo, quando mais jovem. Não havia uma noite em que suas memórias não o buscassem durante o sono, entoando antigos cânticos agora esquecidos.
— Nesta mesma noite, uma década atrás, liderei um grande grupo, formado por rostos que vejo agora entre vocês, para retomar a paz e a promessa de prosperidade entre as Cidades Flutuantes.
O grupo que Yan buscava era formado por não mais do que duas dúzias de pessoas. Pôde encontrá-las sem muita demora, pelo brilho das lanternas. Eram todas iguais, de um papel branco bastante raro, que lembrava a cor da neve no começo do dia, e que queimava sem deixar vestígios.
Não reconhecia todos os rostos. A maioria pertencia a pessoas cujos nomes nunca memorizara. Naquela noite, entretanto, não precisava ser reconhecido, apenas estar lá.
Pousou a lanterna no chão à sua frente e juntou as palmas das mãos diante dos olhos. Era um dos poucos ali com orelhas nivarianas — certamente, o único que não precisava escondê-las. Não que isso fizesse qualquer diferença para a intenção. Poderia não ser um fiel de Niva, mas certamente era um fiel das memórias de Nivaria.
Das suas memórias de Nivaria. E da memória daqueles que não sobreviveram ao que Ravi chamava de noite gloriosa.
— Estejam certos de que Farkas continuará soberana na luta pela igualdade dos povos. E pelo direito daquilo que pertence a todos nós.
Uma senhora ao seu lado deixou escapar um suspiro dolorido. Yan a olhou de canto. Ofereceu um sorriso discreto e então um gesto, com o indicador sobre os lábios, em um pedido por silêncio. Ela acenou com a cabeça, voltando a abaixar os olhos em suas próprias orações aos Imortais.
— Eu e meu clã sempre nos colocaremos à frente quando for necessário. Nas batalhas ou nos dias de dificuldade. Pois enquanto Farkas prosperar, prosperarão em conjunto todas as cidades.
Em Farkas, não era comum pensar sobre o vórtex. Aquela era uma anomalia que quase não os incomodava, um pequeno detalhe sobre a forma como seu mundo funcionava. Para Yan, no entanto, era impossível não pensar sobre o vórtex durante o Festival. Nivaria teria sido sugada por ele quando a ponte que a conectava a Farkas ― a única ponte que a conectava a qualquer coisa ― tinha sido rompida? Ou vagava no vazio escuro para além das Cidades, impossível de se alcançar?
— E se ainda há em nosso mundo qualquer inimigo da prosperidade, o forçaremos a se revelar. E romperemos, para todo o sempre, as pontes que nos ligam a ele. Por Farkas, e pelas Cidades Flutuantes!
Yan ergueu o olhar. A onda barulhenta dos farkasianos em festa voltou a irromper até o bosque. Precisavam voltar. Concentrou o espírito na palma da mão, sentindo seus dedos formigarem sobre a lanterna acesa. O brilho do fogo se refletia em seus olhos dourados, quente e desafiador.
— Por Niva — sussurrou. E não desviou os olhos enquanto a lanterna se incendiava espontaneamente perto de seus pés.
Deixou escapar um suspiro quando a chama se apagou, mergulhando o bosque de volta no vazio. Os Imortais os tinham ouvido. Niva tinha recebido sua oferenda. Em seu coração, restava a esperança, ainda quente como o fogo, de que Nivaria um dia seguisse a luz das lanternas queimadas e encontrasse seu caminho de volta até as Cidades.
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Yan tomou seu caminho de volta para o Hall da Conflagração. Na cidade, o som da música enchia o festival de vida. Do portão do Hall, podia ouvir tudo, ver as luzes se espalhando pelo céu da cidade, até sentir o cheiro dos pães recheados. Mas já não tinha fome.
Alguns lobos guardavam os portões, rodeados de pequenos autômatos voadores. Yan abriu um sorriso discreto, fazendo uma reverência em agradecimento quando os pássaros abriram o portão para que passasse.
Então ouviu passos vindos de fora, virando o olhar por sobre o ombro.
Ele caminhava a passos lentos. Soltos ao vento forte, e sob as luzes do festival, seus cabelos eram como uma fogueira. Seria imponente, não fosse a suave contração em suas feições, como se estivesse sentindo dor, um detalhezinho de nada, que o sorriso amplo quase escondia.
— Boa noite, companheiras — Shu Lan sibilou por cima do ombro de Yan, os olhos pousados sobre as cobras gêmeas enroladas no pescoço do convidado de Ravi.
— Que criaturinha mais bem-educada — Kuí respondeu, assim que chegou perto o suficiente para que não precisasse erguer a voz.
— É, ele não é sempre assim — Yan sorriu, levando a mão para afagar a cabeça do lagartinho. — Não vai ficar para as festividades, Senhor Instrutor? O mestre Farkas tem muito orgulho dela.
― Tanto que faz questão de comemorar por muitos dias, certo, benzinho? Não é como se eu fosse perder algum detalhe de verdade. Além do mais, não sou o único a sair de fininho esta noite. Estou errado?
Yan sentiu o rosto corar. Ele chegava perto, falava devagar, com uma voz luminosa e musical. Era diferente das companhias farkasianas com as quais tinha se habituado ao longo dos anos. O rosto do Senhor Instrutor não lhe era um completo estranho, mas o tinha encontrado quando era jovem demais. Quando sua cabeça estava cheia demais para fabricar muitas memórias sobre ele.
— Minha família mora um pouco afastada da cidade — explicou, o tom de voz gentil combinando com um sorriso calmo. — Cheguei de viagem hoje cedo e não tive tempo de descansar. Acho que minha energia para festas está meio baixa.
— Você é o curandeiro especial sobre quem Ravi tanto me falou, não é? ― Os olhos reptilianos subiram até as orelhas macias de Yan, sem qualquer pudor, mas ele não teceu qualquer comentário sobre elas. ― Achei que teria o prazer de te encontrar na cerimônia de abertura. Deve estar mesmo muito cansado, benzinho, se só chegou agora ao Hall. Eu não vou ser o responsável por te segurar longe da cama por nem mais um segundo.
— Eu estava lá — Yan respondeu com um sorriso fácil. Tinha para mentir o mesmo dom que tinha para curar. — Fora dos focos de luz. Eu imagino que o senhor entenda os meus motivos. — As orelhinhas se mexeram suavemente quando Yan desviou o olhar, fingindo respeito.
― Não faço ideia da razão ― Kuí respondeu numa brincadeira amistosa, as sobrancelhas franzidas por um segundo breve.
— Por mais grato que eu seja ao mestre Farkas pela hospitalidade… — Yan recomeçou, andando pelo Hall silencioso até o corredor de seus próprios aposentos. — Entendo que esta festa não é sobre mim. Oz faz o possível para que eu me sinta bem-vindo, mas não gosto de ser um estorvo, senhor. — Mordeu o canto do lábio, a voz ficando apenas levemente mais baixa. — Por favor, não conte meu segredo.
― Cobras não têm boa audição, benzinho. Se você me disse algo, morreu com o vento.
— Por essa lógica, lagartos também não. Mas eu ouço muito bem — Shu Lan comentou, em um tom espirituoso que fez Yan rir.
— Acho que Shu está tão cansado quanto eu, por isso soa tão amigável. — Meneou a cabeça, abrindo a bolsa em busca da chave de seu quarto. — Não se espante, senhor. Ele sabe ser bem mais ácido quando está descansado. Mas não é por mal.
— Eu não interpretaria dessa forma. — Kuí franziu o nariz em um sorrisinho.
Seus aposentos, destinados aos convidados ilustres do mestre Farkas, ficavam um pouco mais acima, perto de sua escadaria particular. Com um aceno gracioso, Kuí fez menção de se despedir e seguir adiante.
— Senhor Instrutor — a voz do curandeiro o manteve no lugar ―, um momento. ― Yan tinha a porta de seus aposentos aberta e buscava algo na bolsa à meia luz. — Ah, aqui. Para você.
O pacotinho que tinha em mãos era pequeno, de papel translúcido fino. Yan o fechou graciosamente com um lacinho de fita antes de entregar.
— São as ervas que uso no remédio do senhor Farkas. Vão ajudar com a sua dor de cabeça. O segredo são duas colheres de mel, para acobertar o sabor amargo. Basta infusionar por cinco minutos em água quente e beber como chá. — Yan ofereceu um sorriso ao fim da explicação. — Boa noite.
Entre diplomatas, as relações costumavam ser ásperas, acres, cozidas lentamente. Exigiam tamanha fibra emocional que quase sempre eram forçados a se fechar em copas. Os muros de Kuí eram seus sorrisos, e ele não teve nenhum para oferecer àquele pequeno curandeiro, observando o pacote em suas mãos.
Era bem pouco acostumado com gentileza e atenção genuínas, das quais nunca desgostaria.
Estava mesmo com dor há várias horas, culpa do clima inconstante e desconfortável de Farkas, incômodo mesmo para uma cria do deserto como ele. Ficar de pé ao lado de Ravi enquanto ele gritava a plenos pulmões não contribuíra muito.
― Eu não gosto de dever gentilezas, benzinho ― Kuí disse antes que a porta de Yan se fechasse, voltando a sorrir. ― Posso ter o prazer de levá-lo a um ensaio da Ópera nos próximos dias?
— Um ensaio? — Yan deixou a expressão se perder no convite, os olhos postos em Kuí sustentando a mais pura surpresa. E então ele sorriu, iluminando o olhar com as maçãs do rosto coradas. — Eu não poderia, Senhor Instrutor. Não com o tanto de trabalho que devo ter para manter a… Sobriedade dos farkasianos durante o festival. Mas estou certo de que o senhor vai encontrar uma companhia à altura dos seus artistas. Não pense que me deve nada pelo chá, por favor. Veja como um presente. Eu espero que tenha uma boa noite de descanso.
Enquanto encarava a porta agora fechada, a muralha de Kuí esculpida em sorriso voltou a demonstrar pequenos sinais de erosão.

Continua…
No próximo capítulo… Tomás foi visto se agarrando com um gostoso na Avenida Paulista bem quando disse que ia ficar com a vovó. Que cobrinha! Mas disso você entende, né, Lótus? E sua resposta são essas flores? Que tipo de relação vocês dois têm, afinal? E o que você acha daquele moço bonito que conta histórias pras crianças? Boatos de que o pessoal do hospital chama ele de “menino dos sonhos”. Dá uma espiadinha!
O Capítulo 5 — Bichinho chega no dia 8 de setembro às 12h!
Até a próxima!

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