đŸ’« Pontes Imortais ― CapĂ­tulo 24

Cidades flutuantes Ă s vezes se encontram

É chegada a hora, vizinhos vortexianos! Depois de oito meses de postagens e mais de 20k leituras somando as plataformas digitais, a primeira temporada de Pontes Imortais chega hoje ao fim. Este Ă© sĂł o começo da nossa viagem e sĂł tenho a agradecer a cada um de vocĂȘs pela oportunidade que me deram ao conhecer minha histĂłria. 

Pontes Imortais nasceu de sonhos individuais, ganhou forma na troca com amigos e firmou suas raĂ­zes aqui graças a vocĂȘs, que emprestaram sua atenção e tempo pra conhecer a porta do VĂłrtex que leva Ă s Cidades Flutuantes. 

Quando escrevi esse começo para a histĂłria, eu nem mesmo tinha um rostinho neste mundo. Entidades do VĂłrtex se apresentam de diversas formas. Esta, que vos fala, Ă© um amigo com quem vocĂȘs podem contar, e que vai estar aqui atĂ© que toda a histĂłria de Yan, Maali, Oz e KuĂ­ — e Shu! — seja lida. 

A temporada 2 de Pontes Imortais tem estreia prevista para 2 de agosto de 2024. Enquanto nos preparamos para ela, convido vocĂȘs a me acompanharem nas redes sociais e participarem do meu servidor no Discord, onde podemos conversar! Os links para tudo estĂŁo no meu carrd!

No capĂ­tulo anterior
 Em SĂŁo Paulo, uma tempestade trouxe consigo memĂłrias perdidas e uma voz do alĂ©m, ainda desconhecida, que parecia ansiar por esse momento. Em Farkas, o plano de Li’a para o assassinato de Oz falhou, deixando a Sereia em uma pĂ©ssima situação. Todos esses lobos sĂł esperam um comando para atacar. O que Oz vai fazer agora que os segredos foram revelados?

A trilha-sonora do capĂ­tulo Ă© Um minuto para o fim do mundo, do CPM 22!

Capítulo 24 — Cidades flutuantes às vezes se encontram

Farkas, O momento da Hecatombe

Em noites comuns, o céu de Farkas sustentava o mesmo excesso de informação da própria cidade: uma constelação de nuvens pontuada pelo voo das mariposas-de-sereno e pelas luzes que emanavam do centro. Mas naquela noite em especial, quem olhasse para cima contemplaria o vazio. Não havia nuvens ou mariposas. Não havia nada além de uma ilusão de luzes disfarçada de aurora, que refletia os tons azul-avermelhados do vórtex, como se ele resolvesse espiar, agora de cima, a confusão que se formava nas ruas.

Os lobos cercavam Li’a bem em frente Ă  casa principal. Fosse no Hall, haveria mais deles, mas o grupo que acompanhou Oz atĂ© a vila onde tiveram a reuniĂŁo mais cedo era robusto o suficiente para intimidar. 

Respeitando o sinal de silĂȘncio do Senhor dos Lobos, os animais calaram os uivos, mostrando os dentes enquanto fechavam o cĂ­rculo ao redor da diplomata. 

— VocĂȘ tem muita coragem pra voltar aqui — Oz rosnou, cerrando o punho. — E tentar me matar! 

― Chateado porque vim retribuir o favor? 

Li’a apertava o punho cerrado, escondido sob a larga manga. Preso Ă  faixa da cintura, o adorno de vidro era um detalhe delicado que contrastava com o cheiro de violĂȘncia. Era a Ășnica parte de si que ainda tinha sob controle, agora que suas orelhas de raposa branca estavam reveladas, viradas para trĂĄs numa postura alerta, e a cauda peluda se agitava, hipnotizando os lobos. 

A careta confusa de Oz durou alguns poucos segundos. Ele balançou a cabeça, bagunçando os cabelos fartos, e se permitiu uma risada seca. 

― E vocĂȘ? Chateado porque Farkas sabe o que fazer com traidores?

Aquelas palavras arrancaram de Li’a um grunhido violento. Ela deu um passo bambo para frente, com os dentes Ă  mostra. 

― NĂŁo brotam traidores dos campos de Nivaria. 

— NĂŁo — Oz ecoou antes de mostrar os dentes num sorriso hostil. — NĂŁo mais. 

A expressĂŁo dela oscilou em uma espiral de emoçÔes. Com os punhos cerrados, Li’a feria as mĂŁos, as garras de vidro mergulhadas na pele. O cheiro do sangue deixava os lobos agitados. 

Avançando um passo, como se pretendesse atravessar a barreira de lobos como faria uma criatura efĂȘmera, ela viu as narinas de Oz se alargarem, as pupilas se retraindo no instante em que ele prĂłprio notou o aroma metalizado que atiçava seus animais. 

— Pare onde estĂĄ — ele mandou, se aproximando um passo. O cĂ­rculo de lobos se fechou um pouco mais. — Cheio de truques, como sempre. NĂŁo pode atiçar os lobos mais rĂĄpido do que eu. É isso que vocĂȘ quer? Que eu mande atacarem logo?

— NĂŁo. — Escorregadia, a voz de Li’a tinha um apelo irresistĂ­vel. — Tire-os do meu caminho.  

Incapaz de contrariar o pedido, Oz fez um gesto com a mĂŁo, forçando os lobos a abrirem caminho para ela. Ele arregalou os olhos, surpreso e irritado. O que mais nĂŁo sabia sobre Maali? 

— Obrigada pela gentileza de me lembrar o que vim fazer aqui — ela disse. A voz frĂĄgil era menos que uma brisa tĂ­mida. — Fique onde estĂĄ. TambĂ©m vou garantir que nĂŁo nasçam mais traidores em Farkas — continuou, tocando o enfeite de cabelo. 

Cada palavra vinha pontuada de dor. Em seu peito, a magia de Li’a se debatia, fragilizada. Assemelhava-se a uma mariposinha em seus Ășltimos momentos, perdendo o controle das asas antes de cair na grama, fraca demais para alcançar a luz novamente. 

Oz nĂŁo deveria ser capaz de se mexer. A forma como seus dedos se agitavam, abrindo e fechando os punhos, eram um forte indicativo do fim da magia da Sereia. Tinha que ser rĂĄpida antes que ele se libertasse de sua Ășltima ordem e antes que os discĂ­pulos recuperassem os movimentos das pernas. 

— N
 — começou Oz. 

NĂŁo chegava a ser uma sĂ­laba. Era quase um gemido frustrado. Li’a ergueu a mĂŁo trĂȘmula, apertando o vidro ainda frio. Se “nĂŁo” seria a Ășltima palavra de Oz, faria a gentileza de permitir que morresse calado.

— Te encontro um dia no vórtex — sussurrou.

— Nix! — Oz rosnou, a voz se erguendo pela vila. 

Li’a arregalou os olhos. A grande loba irrompeu pela fresta do portĂŁo, avançando no curto espaço entre os dois, com a boca aberta. Li’a jogou o corpo para trĂĄs a tempo de evitar a mordida no braço. A manga de seu vestido se rasgou no contato com os caninos afiados quando Nix a derrubou de volta entre os lobos. 

Por pouco, evitou que o adorno de vidro se quebrasse, protegendo-o com a mĂŁo. Os dedos ralaram no chĂŁo, trincando as garras tingidas de sangue. 

Em frente a Oz, Nix era uma presença intimidadora, a maior das lobas de toda a cidade. Rosnando, ela curvou as patas da frente, preparando o ataque. Às suas costas, Oz avançava um passo com os olhos em chamas. 

Encontrou os de Li’a e se atrasou um instante. As sombras acinzentadas daquele olhar eram Ăłbvias demais agora que sabia conhecĂȘ-las. Devia ter reconhecido antes os sinais de Maali. 

— Um dia — sussurrou —, no vĂłrtex. 

Respeitosos, os lobos assistiram em silĂȘncio enquanto Oz dava o comando. Nix mostrou os dentes uma Ășltima vez. Aterradores, os dentes afiados deixavam cair um fio de saliva quando a loba atacou. 

— Para — Oz interrompeu com a voz falha. A ordem era uma mera formalidade. Nix já havia se contido, a bocarra fechada e a respiração ofegante.

De olhos fechados, Li’a aguardava o peso da morte, que nĂŁo chegou. Aliada Ă  respiração forte da loba, havia uma segunda, mais contida, ainda que igualmente ofegante. Mais prĂłxima. 

Incerta, voltou a abri-los, encontrando a cauda de Yan arrepiada bem Ă  sua frente. Oz o encarava com surpresa, a loba um passo Ă  sua frente. 

Quando eram bem novos, Maali ouviu muitas coisas sobre Yan em Nivaria. Sobre como ele era inapto para a caça, pequeno demais, muito esguio, pouco hĂĄbil com armas ou desprovido das qualidades de um guerreiro. 

Se Nivaria ainda estivesse de pĂ©, teriam que acrescentar um novo comentĂĄrio: sobre como Yan sozinho foi capaz de deter um ataque farkasiano apenas com o olhar.  

— Yan — Oz chamou, o olhar flutuando entre a silhueta parada na sua frente e o corpo de Li’a ainda caído no chão —, sai.

A poucos palmos de distĂąncia, o rosto de Yan se contorceu em uma caretinha. 

— NĂŁo — respondeu, balançando a cabeça. — Oz, vocĂȘ nĂŁo o reconhece? Por que o ataca? 

— Porque esse traidor tentou me matar! — rosnou. 

— Ele tentou me matar antes! — Li’a se defendeu, apoiando as palmas feridas no joelho para voltar a levantar. O sangue deixou uma mancha fresca no azul delicado das vestes. 

Era difĂ­cil ficar de pĂ© e Li’a nĂŁo saberia dizer se o motivo era sua energia espiritual sendo sugada para um redemoinho de inexistĂȘncia, fazendo bater Ă  sua porta a morte que sempre esteve Ă  espreita, ou se era a imagem: Yan e Oz na sua frente — o mais perto que esteve de ambos em anos. 

De seu lugar, Yan tentava sem sucesso manter os olhos em Oz enquanto espiava repetidas vezes os movimentos de Li’a às suas costas. Estar cercado pelos dois deixava suas mãos frias. Elas tremiam num misto de ansiedade e preocupação. Tinha sonhado por anos com o dia em que poderiam voltar a se encontrar, no vórtex, quando todos fossem embora daquele mundo. Ao encontrar Maali sob a casca de Li’a na tenda da ópera, teve o primeiro fiapo de esperança de que seria possível mais uma vez estar entre eles.

NĂŁo daquela forma, cercado de palavras sobre tentativas de assassinato e traição, sob o rosnar dos lobos e os passos dos discĂ­pulos que cercavam o quintal frontal da vila. 

Do lado de fora dos muros, farkasianos se acumulavam para espiar a origem dos gritos, alguns arriscando olhares pela abertura do portĂŁo. Fosse qual fosse o desfecho, sabia o que viam: dois nivarianos bem na frente de seu lĂ­der. Era sĂł o que a maioria tinha capacidade de ver desde a queda de Nivaria. 

— Oz — voltou a chamar, em voz baixa —, contenha os discĂ­pulos. Vamos entrar, nĂłs trĂȘs.

NĂŁo tinha qualquer pretensĂŁo de competir com uivos, mas precisava que ele olhasse para si. Precisava acalmĂĄ-lo e tirĂĄ-los dali. Ambos. Para algum lugar onde os dois fossem capazes de ouvi-lo.  

Estava perto o bastante de Nix para ouvir os sons que a loba fazia ao passar a lĂ­ngua pelos dentes pontudos, mas Oz era seu foco. Era ele o maior risco de toda aquela cena. A pessoa que comandava os lobos e os discĂ­pulos, a pessoa que comandava toda Farkas. 

Alguém que o escutaria, apesar de tudo.

— Mestre — um dos discĂ­pulos chamou. Aos poucos, cercavam os trĂȘs em um movimento sincronizado, muito parecido com o dos lobos. — Suas ordens. 

— Suas ordens, Mestre! — os outros entoaram, e do lado de fora, o populacho curioso, movido pela centelha da rivalidade, uniu Ă s vozes um canto de guerra. 

GlĂłria a Farkas! Morte aos nivarianos! GlĂłria a Farkas! Morte aos nivarianos! 

Com os dedos em garra, Li’a segurou o enfeite de cabelo, puxando-o contra o peito. As memĂłrias de uma noite longa, pontuada por aquele mesmo grito de guerra, terminaram de abrir todas as feridas antigas. Ela riu com tristeza e tossiu, sentindo um filete de sangue manchar seus lĂĄbios novamente, buscando os olhos de Oz. 

— Termine com isso por mim — sussurrou. — Eu não vou conseguir.

Por um momento, Oz teve certeza de que era com ele que Li’a falava. A mĂŁo voltou a se erguer num quase comando aos lobos, que morreu em seguida, pontuado pelo grito irritado de Oz. 

Uma cobra roliça despencara do telhado, enroscando-se aos ombros dele quase no mesmo momento em que deu o bote. 

— Cuidado, jovem Mestre! — a voz cantada de KuĂ­ avisou, vinda de algum ponto atrĂĄs de Li’a, musical demais para soar verdadeiramente preocupada. 

Douradas e com o corpo liso coberto de manchas alaranjadas, as cobras de KuĂ­ eram facilmente reconhecĂ­veis — um espĂ©cime raro do deserto, tĂŁo mortal que os viajantes mais experientes preferiam desviar suas caravanas, ao custo de alguns dias de atraso, a atravessar o territĂłrio onde eram mais comuns. VĂȘ-las tranquilas ao redor dos ombros de KuĂ­ daria Ă s criaturas comuns a sensação de que eram animais dĂłceis, mas aquela mensagem sempre tinha ficado clara para Yan: eram mais um sĂ­mbolo de poder do que um atestado de comportamento.

A cobra cravando as presas no ombro de Oz bem Ă  sua frente fizeram seu peito doer e os olhos se acenderem de imediato com o brilho alaranjado. Era um detalhe interessante — para o qual apenas KuĂ­ teria Ăąnimo de se atentar — que seus olhos tivessem a mesma coloração da pele das cobras, e o mesmo potencial de influenciar a vida. 

A morte pelo bote de uma daquelas dissipava o espĂ­rito com tamanha eficiĂȘncia que Yan nunca tinha tido a chance de salvar alguĂ©m que fora mordido. Quando o corpo de um viajante desavisado era trazido de volta da regiĂŁo desĂ©rtica, sua alma jĂĄ havia hĂĄ muito mergulhado no vĂłrtex. 

Ainda assim, pensou que se fosse rĂĄpido, poderia curĂĄ-lo. E avançou na direção de Oz no instante em que a mĂŁo do farkasiano se apertou ao redor do corpo do animal, o rosto tomado por uma careta surpresa. 

— NĂŁo! — Tomada por um ĂĄtimo de força e fĂșria, Li’a se adiantou para segurĂĄ-lo com a mĂŁo livre, puxando-o contra si em um movimento descontrolado. As costas de Yan bateram contra seu peito. — Isso acaba hoje

Yan arregalou os olhos, um suspiro surpreso escapando dos lĂĄbios como um gemido dolorido. Li’a precisou de alguns segundos para perceber a umidade morna pincelando seus dedos. Baixou a cabeça e Yan imitou seu movimento, os dois encarando a imagem ao mesmo tempo. 

Enterrado atĂ© a base no peito de Yan, o enfeite de cabelo tingia-se lentamente de vermelho, colorindo de escarlate as flores de amora que pendulavam no topo, como se o objeto pudesse sugar para dentro o sangue. 

— NĂŁo
 — Li’a repetiu, a voz quebrando-se em pedacinhos. 

O adereço de vidro havia sido embebido no veneno da mesma serpente que Oz arremessava com força ao chĂŁo. Uma gentileza do plano de Li’a para proporcionĂĄ-lo uma morte rĂĄpida. 

Ela amparou Yan contra si, impedindo-o de cair. 

— Olha pra mim, meu amor — ela sussurrou, tentando manter os olhos de Yan abertos. — KuĂ­! — gritou em seguida. As pernas falharam, trĂȘmulas demais, e os joelhos bateram com força contra o chĂŁo. Li’a nĂŁo soltou Yan mesmo assim, apertando-o nos braços. — Faz alguma coisa! 

— Yan! — O grito de Oz cobriu a voz trĂȘmula de Li’a. Abaixada, a diplomata apertou o corpo de Yan nos braços como se receasse que alguĂ©m o arrancasse de si antes que pudesse corrigir seu erro. 

Um erro que nĂŁo poderia corrigir, mesmo que seu coração gritasse por qualquer tipo de redenção. 

Oz localizou a cobra dourada no chĂŁo perto de seus pĂ©s. Com um rosnado, atingiu-a na cabeça com o solado grosso das botas, esmigalhando os ossinhos de sua cabeça contra o chĂŁo de terra antes que ela pudesse arriscar um novo bote. 

Levou, instintivamente, a mĂŁo ao ombro, sentindo os furos feitos pelas presas na camada de couro que o revestia. Aquela peça de roupa era quente e incĂŽmoda no clima farkasiano, mas naquele momento, se mostrava Ăștil, alĂ©m de imponente. O bote da cobra por pouco nĂŁo atingiu sua pele.

— O que vocĂȘ fez? — Oz voltou a erguer a voz, os olhos se enchendo de lĂĄgrimas enquanto encarava o corpo sem vida de Yan, os olhos eternamente encarando o nada entre ele e Li’a. — O que vocĂȘ fez? — repetiu, aos berros, cercado pelo uivo de dezenas de lobos.

Congelado pela surpresa, KuĂ­ demorou a reagir. O coro de guerra das pessoas lĂĄ fora tinha parado. Apenas o uivo dos lobos impediu a noite de mergulhar em um silĂȘncio agourento. A risada brotou de algum lugar obscuro em seu peito, desprovida de felicidade, sĂł para se transformar em um grito colĂ©rico. Como se respondesse Ă quele chamado, um vento gelado forçou passagem, ululando pelas frestas dos telhados, levantando folhas secas, carregando para aquele campo de batalha um sem fim de almas ominosas. 

A raiva de Kuí não era focada como a de Li’a. Era desordenada a ponto de transformar tudo em um alvo. Todos

— Mestre
 suas ordens
 — novamente um dos discĂ­pulos arriscou, o olhar erguido para o cĂ©u, aterrorizado pelas sombras que voavam sobre a vila. — Mestre! — voltou a tentar quando os primeiros gritos surgiram pela fresta do portĂŁo, vindos de onde se amontoavam os farkasianos do lado de fora. — Suas ordens!

A resposta de Oz foi um rosnado feroz. Com olhos vermelhos banhados por lĂĄgrimas, ele gritou, erguendo o rosto. O som de seu berro atiçou os lobos. O primeiro deles avançou sobre aquele discĂ­pulo, rasgando-lhe a garganta sem piedade, calando a voz que insistia em chamar por um mestre que Oz nĂŁo queria ser. 

— Acabem com tudo — ele ordenou aos lobos sedentos. E mostrou o canino afiado pelo canto da boca. O olhar buscou os demais discĂ­pulos, que recuavam a passos incertos. — Fujam se puderem — avisou, sentindo o peito em brasa. 

NĂŁo tinham mais um curandeiro e nĂŁo tinham mais um mestre. A Ășnica imagem para onde Oz se importava de olhar era a de Maali agarrado ao corpo inerte de Yan, rasgado em prantos. 

Mataria aquele com suas prĂłprias mĂŁos. E quem mais entrasse em seu caminho.

— Acabem com tudo — ecoou KuĂ­ quase ao mesmo tempo, sem perceber, sentindo as almas mergulharem na cidade. 

Seus gemidos, doloridos e insanos, jĂĄ bastariam para rasgar a sanidade de alguĂ©m, mas aqueles espĂ­ritos estiveram esperando tempo demais por uma criatura capaz de lhes oferecer as ordens e a energia certa. Invadiam casas e corpos, massacravam de dentro para fora e pareciam ficar mais fortes a cada cadĂĄver. 

Yan estava morto e Li’a estava morrendo. 

Em KuĂ­, a imagem de ambos pesava bem na altura do peito, prĂłximo ao pequeno bolso por dentro da tĂșnica — o mesmo que Li’a costurava em todas as suas vestes com um sĂ­mbolo de proteção, e onde KuĂ­ guardava o envelope com folhas para chĂĄ que Yan lhe dera. 

— Shu
 — cercada pelo mar de gritos em que a noite tinha se transformado, Li’a teve a presença de espĂ­rito de lembrar-se daquele detalhe. A pequena pata do lagarto era visĂ­vel apenas de perto, agarrada com força ao cabelo de Yan perto da nuca. — Foge. 

Antes que ouvisse uma resposta, Li’a emendou seu prĂłprio grito. Mais alto que os uivos, mais tenebroso que a cantiga das almas. Sob os pĂ©s de todos, o chĂŁo estremeceu antes de rachar em vĂĄrios pontos, forçando os lobos a recuarem para longe de si. 

Sua magia jĂĄ havia se partido momentos antes, durante o confronto. Naquele momento, era sua alma que se dilacerava, levando consigo tudo o que ainda pudesse destruir.

Interrompido pelo grito de Li’a e por uma fenda que se abrira no chĂŁo entre eles, Oz a encarava com a expressĂŁo furiosa, enquanto tentava encontrar uma forma de alcançå-la. 

— Ele vem comigo, Oz — sussurrou, e o timbre baixinho, quase sĂ©rio, era muito mais prĂłximo daquele que Maali tivera na juventude. 

— NĂŁo! — ele gritou, acompanhado pelo potente rosnado de Nix. — VocĂȘ nĂŁo pode tirar ele de mim! 

Li’a sorriu, cansada. Seu tempo para as disputas tinha acabado. Com cuidado, aconchegou o corpo de Yan contra o peito. Acima deles, o cĂ©u luminoso conseguira ficar ainda mais parecido com o de Nivaria. Eram os barulhos que nĂŁo combinavam: aquela mistura de gritos e choro, o som deslizante do chĂŁo que nĂŁo havia parado de partir no delicado padrĂŁo de uma teia. 

Entre Oz e Li’a uma rachadura abria-se como a bocarra de um monstro, numa sugestĂŁo de abismo. Molhados, os olhos dela encontraram os dele e Li’a finalmente os fechou, a tempo de ver o movimento de Nix, prestes a saltar sobre ela. 

— Isso nunca vai acabar
 — a diplomata sussurrou apenas para si, como uma prece ou como uma maldição. 

Um fantasma lançou-se sobre a loba, potente como um projĂ©til, jogando-a para o lado oposto do pĂĄtio, sobre um amontado de discĂ­pulos mortos. Parado no mesmo lugar em que estivera desde entĂŁo, KuĂ­ mostrou os dentes para Oz. 

Aqueles olhos de cobra atiçavam todo o Ăłdio de seu espĂ­rito. Com um grito alto, parecido com um uivo, Oz convocou os lobos da vila para que avançassem sobre o Instrutor. 

Os hĂ­bridos vieram em bando, se lançando sobre KuĂ­ de todas as direçÔes, seguidos de perto pelo exĂ©rcito de fantasmas, destruindo os portĂ”es, cavando rombos no muro fino. 

Oz viu a preocupação nos olhos de KuĂ­ durante o ataque, que ele evitou por pouco. E fechou a cara. Se nĂŁo fosse pelo veneno da cobra de KuĂ­, Yan estaria vivo. 

Teria que acertar as contas com ele com as prĂłprias mĂŁos, ao que parecia. 

Farkas ruĂ­a, a estrutura poderosa da cidade abalada pelo festim violento dos lobos, pela dança enraivecida das almas, pelas fendas que continuavam a cavar a terra, criando rachaduras que pareciam capazes de levar diretamente ao vĂłrtex. 

Sob o poder dolorido dos trĂȘs, a cidade chacoalhou, tomada por um terremoto. De algum lugar mais Ă  frente, o cheiro da fumaça escura de um foco de incĂȘndio começava a chegar atĂ© a vila. 

— Sua bela cidade estĂĄ morrendo, lobinho — KuĂ­ provocou, com um sorriso ferido. 

— E vocĂȘ estĂĄ dentro dela — Oz avisou com uma voz gutural.

Qualquer criança das Cidades jĂĄ ficou com as orelhas em brasa de tanto ouvir os mais velhos cacarejarem sobre a importĂąncia de terem objetivos claros e uma vontade de ferro. É assim que se trilha o caminho dos Imortais. Oz ouviu aquelas palavras cuspidas pelos gritos de Ravi; Maali, nos mantras do monastĂ©rio em que tinha crescido; Yan, com o matraquear incessante de sua mĂŁe. KuĂ­ nunca precisou ouvir algo do tipo. Estavam perto demais dos Imortais para que MĂŁe sentisse necessidade de romantizĂĄ-los. 

Eles vĂŁo destruĂ­-lo ao primeiro sinal de que vocĂȘ pareça um perigo, MĂŁe o avisou uma Ășnica vez, enquanto roĂ­a satisfeita os ossos de um de seus irmĂŁozinhos. KuĂ­ era incapaz de saber o que o irmĂŁo tinha feito de errado. Por isso fale pouco, criança, e sorria bastante, para que nunca vejam de onde vem a ameaça. NĂŁo que vocĂȘ vĂĄ durar esse tanto de tempo. 

Quando a primeira luz rasgou o cĂ©u farkasiano, KuĂ­ soube que estavam condenados. E isso o fez rir ainda mais, o barulho insano de alguĂ©m perdido demais para compreender a prĂłpria dor. 

— NĂŁo achem que vĂŁo se livrar tĂŁo fĂĄcil de mim, seus velhos — ele cuspiu para os cĂ©us, vendo-o ficar coalhado daquilo: aquelas luzes gordas que deixavam em seu rastro uma lĂ­ngua de fogo. 

Um olho pareceu se abrir acima de Farkas, ou talvez a cidade estivesse de cabeça para baixo, e o que encaravam era o prĂłprio vĂłrtex, expandindo seu centro em uma ameaça clara. 

Basta! VocĂȘs nĂŁo podem sair por aĂ­ destruindo o que nĂŁo lhes pertence, ecoou uma voz potente que vinha de todos os lados e de dentro deles. Pelo risco que representam Ă  integridade das Cidades Flutuantes, eu, a Grande Loba Kana, em nome de todos os Imortais, os condeno ao exĂ­lio. Confisco tambĂ©m as memĂłrias de suas vidas nas Cidades. Que vocĂȘs se percam no vĂłrtex por toda a eternidade.

Quando o chĂŁo faltou sob os pĂ©s dos quatro, foi em definitivo. Com um grito afogado, Oz se sentiu ser dragado para baixo, na direção da fenda cruel que era o vĂłrtex. 

A Ășltima coisa que teve tempo de ver foram as silhuetas de Li’a e Yan: mesmo sem vida, os braços dela ainda o sustentavam em um abraço protetor. Oz esticou o braço como se pudesse alcançå-los e entĂŁo tudo se apagou.

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SĂŁo Paulo, 2023

EstĂĄtico sob a marquise do prĂ©dio antigo perto da Praça Roosevelt, TomĂĄs sentia as memĂłrias invadirem sua cabeça como um filme. Levou a mĂŁo ao peito, sentindo os dedos Ășmidos pela ĂĄgua da chuva que ensopara sua blusa e, por um instante, teve a impressĂŁo de que ainda podia ver a sombra do sangue. 

Quando ergueu de volta o olhar atĂ© Yue, viu que os olhos dele se arregalavam pouco a pouco na iminĂȘncia de um movimento. 

Engoliu em seco, apertando os låbios até que se crispassem em uma careta, refletindo a dor que sentia se alastrar pelo espírito.

— VocĂȘ me matou — TomĂĄs sussurrou.

Continua
 Na temporada 2! Estreia em 2 de agosto Ă s 12h! đŸ’«

Nos vemos em breve, em algum lugar das Cidades Flutuantes. Quem sabe
 Nivaria?

Ei, vizinho! NĂŁo esquece de me acompanhar nas outras redes! đŸ’«

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