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đ« Pontes Imortais â CapĂtulo 22
Anti-natural
AlĂŽ, vizinhos! Isso NĂO Ă um teste: este Ă© o penĂșltimo capĂtulo em Farkas nesta temporada, entĂŁo leiam com atenção! Lembram do prĂłlogo? JĂĄ sabem como Yan morreu? AlguĂ©m tem teorias? Logo teremos revelaçÔes!
No capĂtulo anterior⊠O encontro de TomĂĄs e Yue vai muito bem. Veio aĂ o beijo e logo mais teremos o Indiepira, o festival de mĂșsica junina com presença confirmada de todos os nossos protagonistas do nĂșcleo de SĂŁo Paulo! Em Farkas, fomos deixados em um momento crĂtico: Yan e Shu corriam de volta para o Hall depois que Yan percebeu que KuĂ estava tentando atrasĂĄ-lo com seus presentes. Vamos agora voltar um pouquinho no tempo e descobrir o que estava acontecendo na cidade enquanto isso.
A trilha-sonora do capĂtulo Ă© My Long Forgotten Cloistered Sleep, de Yuki Kajiura!
CapĂtulo 22 â Anti-natural
Farkas, Pré-Hecatombe
O jovem Maali teria rido de qualquer um que sugerisse colocĂĄ-lo para conduzir uma audiĂȘncia entre lĂderes. Desde cedo, esteve bastante ciente de duas coisas: a primeira delas, que nĂŁo gostava de falar. A outra, que suas palavras vinham banhadas por catĂĄstrofe.
Percebeu isso ainda criança: se usasse o tom certo, os mascates o presenteariam com grandes ameixas, os professores esqueceriam a advertĂȘncia que pretendiam lhe dar, os colegas usariam as prĂłprias garras para se machucar. Era um poder assustador que o inundava de vergonha â e que fez Maali optar por se unir aos caçadores nivarianos. A vida no mosteiro exigia poucas palavras e muita disciplina. Colocou rĂ©deas em si mesmo, conduzindo o prĂłprio carĂĄter com uma postura fĂ©rrea.
Mas a dor colocou seus dons em perspectiva.
â Veja, ela sequer presta atenção no que falamos!
â O senhor dizia que o tributo cobrado pelo clĂŁ Farkas nĂŁo Ă© proporcional ao retorno percebido pela provĂncia de MinĂ©ria, lĂder Mo.
Liâa encarou o homem sentado diante dela. Era muito alto, como costumavam ser os farkasianos. Os ombros largos davam-lhe a aparĂȘncia de um titĂŁ. Ăquela altura, o lĂder Mo parecia Ă s vias de esganĂĄ-la, os lĂĄbios finos quase desaparecendo em uma linha tensa, pouco amigĂĄvel.
â O nosso lado da fronteira conecta-se com a ponte que leva ao deserto. O vĂłrtex nĂŁo cospe muitos perigos aqui, no centro da Cidade, mas as coisas sĂŁo diferentes para nĂłs. â O lĂder Mo se permitiu olhar para Oz por um instante mais longo. Sentado ao lado de Liâa, o lĂder Farkas o encarou de volta. â Se vou gastar meu ouro com uma proteção que chega atrasada, prefiro usĂĄ-lo para preparar, eu mesmo, o meu povo.
â Perigos que chegam do deserto⊠â Oz cuspiu uma risada incrĂ©dula, cruzando os braços. A meia dĂșzia de lobos ao seu redor o acompanhou em uivos, entĂŁo os demais lĂderes, com risadas amarelas. â Seria mais honesto se dissesse que nĂŁo quer arcar com suas obrigaçÔes em lugar de inventar lorotas.
â Eu soube mesmo que qualquer coisa que nĂŁo esteja flutuando ao redor do seu umbigo Ă© classificado como lorota â o lĂder Mo atalhou.
Ao contrĂĄrio dos outros lĂderes naquele salĂŁo, o lĂder Mo nunca abaixou a cabeça. Havia sido assim com Ravi e nĂŁo faria diferente com Oz. A provĂncia de MinĂ©ria era um territĂłrio hostil formado por vales profundos e desfiladeiros, prĂłximo demais das bordas da Cidade. Por muitos anos, MinĂ©ria foi considerada terra de batedores, de gente sem raiz. O lĂder Mo tinha orgulho de ser parte do clĂŁ que havia mudado as coisas: seu avĂŽ fixou raĂzes ali feito uma planta pioneira, deixando para as geraçÔes futuras o orgulho de seu legado.
â Se tem algo a me falar â Oz começou, levantando-se â pode ser mais direto que isso, lĂder Mo.
â Sem problemas, Mestre Farkas. â O homem ergueu o queixo. O rosto marcado por rugas profundas dava-lhe a aparĂȘncia de uma ĂĄrvore centenĂĄria. â NĂŁo Ă© segredo para ninguĂ©m o que aconteceu com Kriso apenas por ele ter feito uma queixa justa contra os seus lobos.
â Cuidado para que suas palavras nĂŁo ganhem as cores de um motim, lĂder Mo â Liâa sugeriu com suavidade. A atenção ficou sobre ele por tempo o bastante para que as palavras cavassem espaço na cabeça do homem como o germe de uma ideia. Motim. â Mestre Farkas, sente.
Os joelhos de Oz amoleceram, forçando-o a sentar novamente. A voz daquela mulher ainda o tiraria dos eixos, ele estava certo disso. Liâa o tocou no pulso, em um pedido de paz. Claro. Tinham falado sobre aquilo mais cedo, quando ela sugeriu uma reuniĂŁo extraordinĂĄria, aproveitando a presença do lĂder Mo na cidade. Estava na hora de provar que a era de Ravi havia acabado. Mostrar a eles que o novo Mestre Farkas era uma opção melhor do que Ravi jamais foi. Seja diplomĂĄtica por mim, Oz tinha pedido, trazendo-a para o colo. Prometo tentar aprender.
â Tenho certeza de que nĂŁo Ă© uma rebeliĂŁo o que o lĂder Mo procura. â Liâa continuou antes de algum deles tomar a palavra. â Mas sim fazer a coisa certa pelo bem de Farkas.
Salpicava sua magia nas intençÔes certas, vendo-a se espalhar pelo salĂŁo. Demoraria mais com os outros lĂderes, que temiam bater de frente com um Farkas, mas incendiar o lĂder Mo bastaria. Havia outros focos de incĂȘndio esperando por uma faĂsca, dentro e fora da Cidade. Ela e KuĂ tinham-nos espalhado por anos, aguardando o vento certo para que as brasas ganhassem a dimensĂŁo de chamas.
Para derrubar toda Farkas. Para dizimar o clĂŁ de Juno em Banjora. Para destruir qualquer um que tenha ajudado a aniquilar Nivaria.
Liâa providenciaria a Ășltima centelha de revolta naquele dia, entĂŁo sentaria na segurança de sua tenda, com KuĂ e Yan ao lado, observando enquanto as Cidades queimavam. SĂł mais um pouco⊠Em poucas horas, poderia parar de fingir que nĂŁo queria falar com Yan quando seu maior desejo nas Ășltimas semanas fora enchĂȘ-lo de beijos e perguntas, contar as verdades que talvez ele nĂŁo soubesse, ninĂĄ-lo com cançÔes e histĂłrias de Nivaria como quando eram jovens.
Ela o ajudaria a esquecer Oz. Pediria a KuĂ que o arrancasse das memĂłrias dos dois, se necessĂĄrio.
â Realmente, nĂŁo vim atrĂĄs de uma revolta, Madame â o lĂder Mo experimentou a palavra, sentindo um comichĂŁo de expectativa â, mas de uma solução. NĂŁo minto quando digo que criaturas tĂȘm atravessado a ponte para perturbar a paz de MinĂ©ria. Consegui manter meu povo tranquilo atĂ© agora, mas os sussurros alcançam atĂ© mesmo o nosso pedaço de mundo, trazendo histĂłrias.
A doença que matou os velhos lĂderes. Os lobos desgarrados. As mariposas mortas. Boatos sobre um novo degrau de tirania, que poderiam ser mentira, mas combinavam tĂŁo bem com o medo que Oz inspiravaâŠ
â E como sĂŁo essas criaturas, entĂŁo? â Relaxado, Oz se permitiu pendurar uma perna sobre o braço da cadeira, escorregando um pouco no assento. Ainda parecia mais alto que todos eles. â O que fizeram com as pessoas de MinĂ©ria? Quando começaram a aparecer?
Eram todas perguntas pertinentes. Liâa se inclinou na direção do lĂder Mo, interessada. NĂŁo soube coisa nenhuma sobre criaturas vindas do deserto, e os sussurros nunca lhe escapavam. Ou o lĂder Mo realmente estava mentindo, ou era Liâa quem tinha um problema entre seus informantes. Fez uma nota mental para confrontar Ovide depois que voltasse para a Ăpera.
â Foram os trabalhadores das minas que trouxeram os relatos atĂ© mim. Eles dizem que as criaturas vĂȘm com a noite, brotando das sombras pouco antes de atacar. â O lĂder Mo tinha assumido o timbre grave de um contador de histĂłrias. Liâa conhecia aquela postura. Mo poderia estar falando a verdade, mas sem dĂșvida se aproveitava da atenção de uma plateia tĂŁo importante para aumentar as coisas. â Queimamos incenso e fizemos oferendas aos Imortais, Ă Grande Loba Kana, mas nĂŁo foi o suficiente para afastar as criaturas.
â Os trabalhadores das minas⊠â Oz riu, atiçando os lobos a darem latidos semelhantes a gargalhadas. â No fundo do vale, hm? Nesse caso, como eles sabem que as criaturas vieram do deserto? Quem garante que vocĂȘs nĂŁo tĂȘm bruxos vivendo na sua provĂncia, lĂder Mo?
Liâa ergueu as sobrancelhas. Era um bom argumento, e tinha esquecido como Oz sempre havia sido o melhor entre eles para escancarar as patacoadas no discurso de alguĂ©m.
â Tive a mesma dĂșvida, Mestre Farkas â o homem concedeu. â Mas alguns trabalhadores foram encontrados vagando nos arredores da ponte, machucados e confusos. Nossos curandeiros tiveram dificuldade para cuidar de seus ferimentos, ou para arrancar deles qualquer palavra. Quando finalmente eram capazes de fazer qualquer coisa alĂ©m de encararem o vazio, tudo o que faziam era apontar na direção da ponte, horrorizados.
O burburinho no salĂŁo se espalhou igualzinho a areia soprada pelo vento. Os demais lĂderes, que atĂ© entĂŁo tinham se limitado a olhar de um lado para o outro, temendo despertar a ira do Mestre Farkas ou a inimizade da Sereia, agora enchiam o lĂder Mo com perguntas.
â HĂĄ alguma chance⊠â um lĂder começou â de isso ter qualquer relação com Nivaria?
â Ah, pelo amor dos Imortais! â outra lĂder respondeu, revirando os olhos. Era bastante jovem; a ponto de fazer Liâa pensar no passado, em como era jovem assim quando conheceu Oz. â Deixe os cadĂĄveres nivarianos descansarem em paz. JĂĄ se passaram dez anos! Problemas novos podem surgir e Ă© mais inteligente estar atento a isso do que ficar cutucando fantasmas.
â A lĂder Dara tem razĂŁo. â Oz ergueu a mĂŁo, exigindo silĂȘncio. â A partir de agora, nĂŁo quero mais ouvir acusaçÔes contra nivarianos. Vamos virar essa pĂĄgina.
Sob a mesa, a mĂŁo de Liâa se fechou em garra, segurando com firmeza o tecido do vestido. Que novidade era essa? Sob o vĂ©u da magia, suas orelhas se abaixaram, virando-se para trĂĄs.
â LĂder Mo, se puder nos trazer provas⊠â Liâa recomeçou, olhando Oz de soslaio para ter certeza de que poderia seguir naquele caminho. Ele assentiu com um pequeno sorriso. â Tenho certeza de que o Mestre Farkas vai recebĂȘ-lo e analisĂĄ-las com cuidado. A Ăpera deve ficar na Cidade por mais algum tempo e o senhor pode contar com nosso compromisso em ajudĂĄ-lo.
â Provas! â o homem rosnou, incrĂ©dulo. â VocĂȘs me chamam para essa audiĂȘncia, perguntam do que precisamos e quando falo o que estĂĄ acontecendo na minha provĂncia, exigem provas!
â Foi uma gentileza do Mestre Farkas chamĂĄ-lo antes que o senhor o chamasse, lĂder Mo â Liâa retrucou, cruzando as mĂŁos sobre a mesa. As janelas do salĂŁo eram protegidas por papel de arroz muito fino, que filtrava o sol de fim de tarde. A forma como a luz incidia sobre as garras de Liâa dava-lhes a aparĂȘncia de estarem queimando. â Imagino que tenha sido por isso, afinal, a sua vinda atĂ© Farkas.
O homem tomou alguns segundos antes de responder, os lĂĄbios se enrugando atĂ© quase sumirem. NĂŁo tinha sido essa a razĂŁo, claro, e Liâa sabia. O lĂder Mo viera atĂ© Farkas para ver Kriso e o pequeno grupo de rebeldes que o açougueiro estimulara depois de contar o que Oz fizera a ele durante uma audiĂȘncia. O plano do lĂder Mo era arrefecer os Ăąnimos daquela gente, convencĂȘ-los a nĂŁo cometerem a tolice de começar uma revolta contra os Farkas, em especial durante a transição de liderança â um momento tĂŁo frĂĄgil.
Talvez agora ele estivesse um pouco mais inclinado a ouvir os apelos daqueles insurgentes.
â Ă claro â ele respondeu a contragosto, ciente de que qualquer outra resposta o colocaria contra a parede.
â E veio sem trazer nada que corroborasse com sua histĂłria? â Oz balançou a cabeça. A curva debochada de seu sorriso era um convite Ă briga. â Parece que voltamos ao começo dessa conversa, lĂder Mo, e o senhor sĂł estĂĄ usando a sua provĂncia para tirar vantagem em cima de Farkas.
â O que me pede Ă© que retorne a MinĂ©ria, que fica hĂĄ dias de viagem, procure por uma criatura que ninguĂ©m jamais viu e a arraste todo o caminho de volta atĂ© Farkas para que me ouça?
â De preferĂȘncia morta â Oz acrescentou â para que nĂŁo nos cause problemas. Por hoje â ele continuou, interrompendo um começo de rebuliço â declaro esta audiĂȘncia encerrada. Podemos retomĂĄ-la amanhĂŁ.
Um a um, os lĂderes foram saindo da sala. A lĂder Dara aproveitou o momento para sentar mais perto de Oz, emendando uma conversa em voz baixa que veio no momento certo. Liâa se aproveitou da distração para alcançar o lĂder Mo ao final do corredor.
â Senhor â chamou, apressando o passo quando ele parou. â Vamos voltar a vĂȘ-lo amanhĂŁ?
â E ser chamado de mentiroso com novas palavras, Madame? â O homem riu com amargura, cruzando os braços. â Prefiro gastar o meu tempo com assuntos mais importantes.
â Sobre isso, senhorâŠ
Liâa deu mais um passo. O lĂder Mo estava parado alguns degraus para baixo, de modo que ela parecia mais alta assim. O homem teve tempo de dar uma boa olhada em sua figura: os boatos sobre a Sereia eram inĂșmeros, mas a imagem que tinha feito dela nĂŁo correspondia com a realidade. O que tinha imaginado era uma mulher madura de rosto saudĂĄvel, repleta de uma aura libidinosa. A criatura na sua frente era etĂ©rea demais, como alguĂ©m prestes a desaparecer. Liâa era mais belicosa que sensual â e talvez essa fosse toda a graça da coisa, o lĂder pensou, porque agora que a encarava no topo da escada como um fantasma prestes a voar, nĂŁo conseguia tirar os olhos dela.
â Os acordos diplomĂĄticos me impedem de contrariar os mestres das Cidades quando estou abrigada sob seus cuidados, mas eu nĂŁo posso me opor ao livre pensamento das demais lideranças, concorda? â Ela tirou da manga um cartĂŁo em branco, oferecendo-o a ele. O lĂder Mo pareceu hesitar, e Liâa o estimulou com um gesto. â Pegue. Ă uma oferta de ajuda. HĂĄ muitas criaturas que pensam como o senhor, lĂder Mo, e como os amigos que pretende visitar.
â NĂŁo sei do que estĂĄ falando, Madame.
â LĂder Mo, eu o escolhi para criar um novo destino, entĂŁo nĂŁo pense que nĂŁo conheço seus passos. â Com o rosto ligeiramente inclinado, ela sorriu. A gentileza das palavras vinha misturada a uma praticidade fria feito neve. â Pegue. Se ignorar minha oferta, o conteĂșdo desse cartĂŁo nunca serĂĄ revelado. Para todos os fins e efeitos, jamais tivemos essa conversa.
â Do contrĂĄrioâŠ? â ele estimulou. Liâa conseguia ver o efeito de suas palavras sobre ele, a forma como o lĂder Mo abaixava as muralhas um pouco, disposto a recebĂȘ-las como se fossem uma ideia sua.
â Uma gota de sangue basta para revelar o conteĂșdo. Pode me agradecer com uma garrafa de vinho no futuro, quando nos encontrarmos novamente.
Liâa cruzou com a lĂder Dara no caminho de volta, saudando-a com um aceno suave. Encontrou Oz de pĂ© no salĂŁo, de braços cruzados e cercado por seus lobos. Ele virou o rosto ao ouvi-la chegar, franzindo o cenho.
â Onde foi?
â Refrescar meu rosto um pouco depois de tantas horas trancada. â Ela riu diante da careta irritada dele. â O que te incomoda?
â Foi ideia sua essa reuniĂŁo. Por mim teria passado a tarde aproveitando sua companhia â ele grunhiu.
â E nĂŁo foi uma ideia excelente? â Liâa chegou mais perto, tocando-o no ombro em um pedido para que Oz se virasse. â Obrigada por ter me ouvido, querido. Sei que nosso tempo Ă© curto agora, mas nĂŁo quer aproveitĂĄ-lo comigo em seu colo em vez de fazendo birra?
Com um rosnado, ele se abaixou para pegå-la nos braços, apertando-a contra si. Os lobos dançaram ao redor deles, animados.
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Os Farkas costumavam realizar todas as reuniĂ”es e audiĂȘncias no Hall da Conflagração. O lugar receberia, com conforto, em torno de duzentos convidados. Fincado no centro da provĂncia, o Hall era o maior sĂmbolo dos Farkas â rodeado por muralhas de tijolo vermelho, marcado por seus telhados azuis de quatro ĂĄguas, os portĂ”es principais ladeados pelas estĂĄtuas de dois lobos gigantescos.
A reuniĂŁo daquela tarde teria acontecido no Hall, nĂŁo fosse um agravante: Yan. Oz ainda nĂŁo falara com ele sobre Liâa. Achava que Yan andava bastante sensĂvel com a ideia de dividi-lo com outras pessoas, arisco a ponto de ficar ciumento. Talvez tivesse medo que Oz nĂŁo cumprisse com sua promessa e evitasse o casamento dos dois por mais anos; Oz sequer tinha o direito de julgĂĄ-lo por um medo assim. Nunca confrontou o pai sobre o assunto, deixando que o tema se arrastasse sem nenhuma resolução, mesmo que tivesse prometido a Yan, tantos anos antes, que iriam casar.
Era Maali quem comprava esses confrontos: as explosĂ”es de Ravi nunca o assustaram, ele sempre permaneceu firme na convicção de que se casariam os trĂȘs, ou nunca se casariam. Oz sempre admirou o sangue quente de alguĂ©m como ele, que tinha crescido entre monges, no olho de uma eterna tempestade de neve.
Agora Oz sabia que fugia de novo, desta vez de um confronto com Yan. Preferia rodeĂĄ-lo devagarinho com a ideia de existir mais alguĂ©m dividindo sua atenção. Contaria aos poucos. Estava quase certo de que Yan e Liâa se entenderiam mais para frente.
AlĂ©m do Hall, os Farkas eram donos de muitos lugares, dentro e fora da provĂncia. Aquela vila cravada quase no centro da cidade era uma delas. Costumavam usĂĄ-la como moradia provisĂłria para fornecedores especiais que estivessem visitando a cidade, mas a maior das casas tambĂ©m era boa o bastante para receber os lĂderes. Nos Ășltimos dias, tambĂ©m tinha sido seu ponto de encontro com Liâa.
TĂȘ-la nos braços daquele jeito era uma novidade. Liâa era toda promessas, sem que nunca tivessem trocado nada alĂ©m de toques leves: abraços gentis, sugestĂ”es de uma proximidade que nunca se completava. Os nĂŁos dela o travavam no lugar.
O lusco-fusco, escoando pela janela do quarto, emprestava à pele dela o brilho do bronze. Com as mãos afundadas sob sua nuca, as garras presas ao seu cabelo, Oz a ouvia suspirar com os beijos no pescoço.
â NĂŁo â Liâa sussurrou diante da sugestĂŁo de suas mĂŁos sobre a faixa do vestido. â Ainda nĂŁo.
Encaixada em seu colo, ela rebolava com uma lentidĂŁo angustiante. Era difĂcil dizer o que o excitava mais: a provocação ou o perfume. NĂŁo conseguia afastar o nariz do cheiro fresco da pele de Liâa, atraĂdo por algo muito prĂłximo de uma memĂłria, mas que lhe escapava das mĂŁos sempre que se aproximava demais.
â Se me fizer queimar mais, vamos ter um incĂȘndio â Oz murmurou, divertido, mordendo-a na altura das clavĂculas.
â A coisa que mais quero Ă© te ver queimar, querido â ela provocou de volta, puxando os cabelos de Oz atĂ© fazĂȘ-lo suspirar. Afrouxou o toque, deixando que uma das mĂŁos passeasse pelo rosto dele, a unha se enroscando no brinco em sua orelha. â Nunca te vi sem isso. O que Ă©? Presente de sua mĂŁe ou presente de um amante?
Oz afastou a mĂŁo dela, arrancando o brinco com um gesto rude. Com Liâa no colo, aquele adorno parecia tĂŁo sem sentido que nĂŁo entendia como nunca o tinha destroçado antes disso. O cristal verde-ĂĄgua se partiu em pedacinhos quando ele o arremessou contra a parede.
â Sempre digo que vou queimar essa porcaria e nunca faço. Resolvido. â Oz trouxe para si o olhar de Liâa, que encarava o brinco destruĂdo. â NĂŁo era importante.
Liâa voltou a buscar a imagem do brinco em pedaços. Tinha sido seu primeiro presente para Oz, para que ele carregasse consigo parte de Nivaria mesmo quando estivesse longe. Para que nunca esquecesse onde era sua casa de verdade. Naquele pedacinho do coração onde ainda permitia que os restos de Maali vivessem, sentiu vontade de chorar.
NĂŁo hĂĄ mais lĂĄgrimas, disse a si mesma, forçando-se a ficar firme. Chorou todas nos dois anos em que esteve presa Ă cama, depois do ataque a Nivaria. Elas secaram no dia em que encontrou Liâa nos escombros de Maali, no dia em que entendeu quem deveria ser se quisesse se vingar.
â Para algo tĂŁo irrelevante, vocĂȘ parece se importar demais â ela sussurrou, procurando o olhar de Oz. As palavras queimaram-lhe a garganta, fazendo Liâa apertar os lĂĄbios.
NĂŁo eram comparĂĄveis. Nunca seriam comparĂĄveis, porque o amou de verdade quando tudo o que ele lhe ofereceu foram mentiras.
â Tenho tentado aprender a enterrar os meus mortos â ele respondeu, sombrio. â Podemos nĂŁo falar sobre isso hoje?
O olhar de Oz se desviou por um breve instante para o canto do quarto, repleto de uma onda dolorida de arrependimento. Maali estava morto. Estava morto e era um traidor. Por que ainda se importava tanto?
â Podemos. â A voz de Liâa o trouxe de volta. Oz tocou a mĂĄscara no rosto dela, forçando um sorriso:
â Quando vou te ver sem isso?
â Hoje â ela prometeu, puxando-o para si novamente. â Depois que eu receber mais beijos.
Oz deu risada, beliscando o mamilo dela sobre o tecido do vestido atĂ© arrancar de Liâa um gritinho.
â JĂĄ te disseram que vocĂȘ Ă© muito mandona?
â VocĂȘ nĂŁo gosta? â Havia naquele olhar uma sugestĂŁo de sorriso que fez Oz derreter.
Escondendo a risada travessa contra o pescoço de Liâa, Oz a presenteou com mordidinhas. A pele dela parecia mais quente que o normal contra seus lĂĄbios.
â EstĂĄ com febre? â questionou, erguendo os olhos para ela. â Devo te arranjar um curandeiro?
â NĂŁo Ă© culpa de uma febre, Ă© culpa sua â Liâa retrucou, voltando a rebolar.
Tinha se encaixado bem o bastante para pressionar o quadril contra o pau de Oz. Ele soltou um gemido grave, apertando-a na cintura. O quarto começava a cair na penumbra do anoitecer e as Ășnicas luzes vinham do pĂĄtio da vila. Os lobos estavam lĂĄ embaixo, junto com alguns discĂpulos que cuidavam da segurança de Oz. A voz deles chegava abafada ao quarto.
Liâa recebeu os novos beijos de olhos fechados. Sob a manga, o enfeite de cabelo parecia ganhar um peso novo. A ponta longa e afiada tinha sido injetada com o veneno das cobras de KuĂ. Seria uma morte rĂĄpida â ao menos teria essa decĂȘncia, mesmo que Oz nĂŁo a merecesse.
Eu, vocĂȘ e o Yan. Pra sempre.
Os beijos de Oz causavam repulsa, mas também traziam velhas memórias à tona. Memórias de uma cabana quente, do corpo de Oz protegido pelas longas caudas de Yan e Maali, do som da neve caindo sobre o telhado, tão suave quanto os gemidos que conseguia arrancar dos dois, tão bonito quanto o olhar deles quando diziam amå-lo.
Maali tinha hesitado em amå-los de volta, e então se entregado com todo o seu coração. Estar apaixonado por Oz e Yan tinha sido como deitar na tundra à luz do entardecer, quando os påssaros começavam a se recolher em uma revoada estrondosa. Trazia a mesma sensação elétrica de preparar a flecha segundos antes de disparå-la, segurando o fÎlego até acertar o alvo. Amå-los foi como se sentar diante do forno de casa para ouvir as histórias dos anciãos, as pupilas dilatadas com a expectativa de viver uma aventura como aquelas.
Eles tinham sido a sua melhor aventura.
Se pudesse sĂł mergulhar nos sonhos e nas memĂłrias, morar nelas pelo resto da vidaâŠ
Ei, senhor raposo, se continuar encarando minha boca assim eu vou achar que quer um beijo!
Odiava estar nos braços dele de novo, a raiva fazia sua pele ferver, era amarga a ponto de tomar toda a sua boca, mas a proximidade de Oz puxou um arrepio, desses que nascem na ponta dos pĂ©s, se espiralam para a boca do estĂŽmago e explodem num suspiro nĂŁo planejado. Liâa o odiava, mas seu corpo nĂŁo tinha apenas memĂłrias de dor.
â Eu gosto do seu cheiro â Oz sussurrou de olhos fechados. A pontinha descascada do nariz passeava pelo pescoço dela, por seus ombros, num carinho tĂŁo gentil que chegava a doer. â Faz eu me sentir em casa.
Liâa ofegou.
Deslizara para fora da manga o enfeite de cabelo e o segurava com firmeza, pronta para o bote. Um movimento e estaria feito. Avisaria aos guardas para que nĂŁo perturbassem o sono do Mestre Farkas, arrastaria Yan para fora da cidade, junto com a Ăpera, e nunca mais precisaria se preocupar com o assunto. Para todos os efeitos, Oz teria morrido de causas naturais â provavelmente levado pela mesma doença que levou seus pais â, e Farkas teria problemas mais importantes com que se preocupar.
A primeira lĂĄgrima molhou sua bochecha. A segunda caiu sobre a testa de Oz, espalhando-se em sua pele feito aquarela sobre o papel. Liâa ainda estava absorvendo o impacto de se perceber chorando depois de tantos anos quando Oz ergueu o rosto, preocupado.
A inquietação converteu-se em fĂșria.
Oz notou antes dela: lĂĄ estavam as orelhas de raposa, ligeiramente abaixadas. Os pelos brancos eram novidade, mas Oz reconheceria o padrĂŁo de mordida em uma delas mesmo depois de anos. A sugestĂŁo de uma cauda sob o vestido dava conta do resto da cena.
â VocĂȘ â ele rosnou, acertando o rosto de Liâa com um golpe violento.
Liâa foi arremessada do colo dele. O enfeite de cabelo escapou de seus dedos e a mĂĄscara voou para longe, quebrando-se com o som de porcelana partida. Um filete de sangue desceu de suas narinas, acumulando-se na curva dos lĂĄbios.
â Seu filho da puta traidor â Oz rosnou, jĂĄ de pĂ©. Um frio implacĂĄvel substituiu a sensação acolhedora que tinha experimentado atĂ© entĂŁo.
Sem a mĂĄscara, era tĂŁo Ăłbvio. Os olhos cor de geada, o rosto anguloso, a boca pequena e cheia⊠Oz sabia o que encontraria debaixo das mangas longas, sob as camadas de tecido do vestido: escarificaçÔes de proteção, sĂmbolos da elite de guerreiros nivarianos.
NĂŁo entendia como era possĂvel estar diante de Maali, mas lidaria com a informação quando o transformasse novamente em um fantasma.
â O sujo falando do mal-lavado â Liâa cuspiu em resposta, arrastando-se para resgatar o enfeite de cabelo e prendĂȘ-lo na faixa do vestido. Oz fez uma careta ao bater os olhos no objeto. â Do meu ponto de vista, vocĂȘ Ă© o traidor.
â O que pretendia fazer? â Oz caminhava na direção dela, acuando-a contra a parede. â Me matar pelas costas? Feito um covarde? â Ele mostrou os dentes em um prenĂșncio de rosnado, balançando a cabeça. â O que mais poderia vir de alguĂ©m da sua laia?
Oz nĂŁo esperava que o soco acertasse Maali. Achou que ele o seguraria no Ășltimo instante, rĂĄpido como o demĂŽnio que sempre foi. Em vez disso, seu punho afundou no estĂŽmago dele e Maali cuspiu sangue, emitindo um grunhido dolorido, buscando apoio no batente da parede mais prĂłxima para nĂŁo desmoronar.
â Eu nĂŁo acredito⊠â Liâa disse num fio de voz. Com a respiração ruidosa, buscava fĂŽlego em arquejos dolorosos. â VocĂȘ me chamando de covarde por algo assim⊠VocĂȘ!
O grito fez as janelas tremerem nas molduras e atiçou os latidos dos lobos no pĂĄtio. A silhueta de Oz cobriu a visĂŁo de Liâa antes que ela pudesse medir o quĂŁo longe estava da porta. Com uma mĂŁo, ele a tirou do chĂŁo, apertando os dedos ao redor de seu pescoço. Oz poderia esmagar sua traqueia fĂĄcil assim, mas nĂŁo foi o aperto o que roubou o fĂŽlego de Liâa. Foram as lembranças.
Aquelas mĂŁos acertando-o nas costas quando jĂĄ estava caĂdo e sangrando â cada soco roubando-lhe qualquer esperança de sobreviver. Os socos destruĂram suas costelas, machucaram seus pulmĂ”es, fizeram Maali implorar para morrer logo.
NĂŁo podia morrer agora. Era o legado de Nivaria.
â Solta⊠â Liâa disse, primeiro baixo demais, as palavras nĂŁo saindo como nada alĂ©m de um sopro entre os lĂĄbios manchados de sangue. â Solta! â ela voltou a comandar.
Os dedos de Oz se afrouxaram contra sua vontade e Liâa caiu, mole, no chĂŁo.
â Parado â ela ordenou, fazendo Oz congelar no lugar. Ele rosnou, tentando fazer as pernas o obedecerem.
Ela gostaria de ter mais tempo para se recuperar, mas todo o seu plano agora escorria por entre os dedos. Liâa jĂĄ nĂŁo sabia se a coisa molhada no rosto eram lĂĄgrimas ou sangue, nem se importava. PĂŽde ver uma sombra de movimento no corpo de Oz, e foi como entendeu que, de qualquer forma, ela estava morrendo. Tinha queimado a si prĂłpria, e Ă sua magia, no caminho atĂ© Farkas, enquanto montava armadilhas contra Oz e todos que a machucaram.
TrĂȘmula, se forçou a levantar, avançando para fora do quarto. Ouviu passos na escada e, na curva, encarou um grupo de discĂpulos que entenderam a cena assim que a viram, coberta de sangue.
â Fiquem onde estĂŁo, todos! â Liâa gritou. A estrutura da casa pareceu tremer sob a força do comando e os discĂpulos estacaram, seguindo-a com o olhar, mas incapazes de se mover.
Alastrando-se rapidamente pelo corpo de Liâa, a febre era uma cobra de fogo impiedosa. Pareceu levar uma vida atĂ© chegar Ă porta de entrada, cada osso do corpo gritando de dor. Ela voltou a tossir sangue, agarrando-se Ă maçaneta que derrapou algumas vezes sob suas mĂŁos suadas atĂ© finalmente ceder.
Lobos esperavam por ela lĂĄ fora. Acima deles, o cĂ©u noturno estava pincelado com grandes manchas vermelho-azuladas que emprestavam ao mundo uma luz anti-natural, apocalĂptica.
As cores do vĂłrtex.
Liâa pensou que estava delirando. Pelo menos estaria sob um cĂ©u parecido com o de Nivaria quando fosse devorada por lobos.
Quando o primeiro animal ameaçou avançar, a voz poderosa de Oz atravessou o breu da casa.
â Quietos.
ContinuaâŠ
No prĂłximo capĂtulo⊠Essa tempestade nĂŁo estava prevista. Nem a chuva forte que assola a Praça Roosevelt e muito menos a tempestade de emoçÔes que invade o peito de um grupo de garotos no coração de SĂŁo Paulo. VocĂȘ aĂ⊠Por acaso teria um guarda-chuva emocional?
O CapĂtulo 23 â Finalmente vocĂȘs acordaram! chega no dia 15 de março Ă s 12h!
Nos vemos em breve!
Ei, vizinho! NĂŁo esquece de me acompanhar nas outras redes! đ«
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