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đŸ’« Pontes Imortais ― Capítulo 20

Uma canção sobre vida e morte

Boa tarde diretamente das Cidades Flutuantes! O clima em Farkas Ă© quente e Ășmido, com alta chance de morte sem explicação causada por maluco. Fiquem atentos! 

No capĂ­tulo anterior
 Yue e LĂłtus se aproximaram depois de se encontrarem no Sesc e o coração de Yue parece cada vez mais no lugar. Nas Cidades Flutuantes, a morte sĂșbita das mariposas-de-sereno Ă© um problema, mas o Senhor dos Lobos parece ter encontrado uma nova aliada e conselheira (ou nĂŁo?). Vamos ver como estĂĄ a situação.

A trilha-sonora do capĂ­tulo Ă© Drama, do Aespa!

Capítulo 20 — Uma canção sobre vida e morte

Farkas, Pré-Hecatombe

Toda vez que matava mais alguma criatura, KuĂ­ sorria. 

JĂĄ tinha experimentado a sensação diversas vezes ao longo dos anos, desde bem antes de fundar a Ópera ou ser reconhecido como diplomata. Existe um momento limĂ­trofe, em que a alma presa a um corpinho jĂĄ inerte se agita na iminĂȘncia de se soltar. Se alguĂ©m soubesse as perguntas certas a fazer, conseguiria tirar de KuĂ­ que aquele era o seu favorito.  

O momento tinha uma duração diferente para cada criatura, dependendo do espĂ­rito, do apreço Ă  vida e, Ă© claro, da causa da morte. Quando escolheu seus venenos naquela manhĂŁ, o Instrutor fez questĂŁo que nĂŁo ferissem a carcaça imĂłvel largada no chĂŁo e que garantisse um momento especialmente longo. 

Para que Yan tivesse tempo o suficiente para aproveitar seu presente.

Havia muito poder em ser aquele que escolhe a dedo quem vai morrer. E um poder ainda mais aterrador em decidir quem permanece vivo, ou a quem a vida deve ser devolvida como uma dĂĄdiva divina. 

— Aquele era sĂł um filhotinho, Yan-Yan.    

A voz de Nyan soou baixa e juvenil. Ainda meio escondido atrĂĄs de um tronco, ele observava os passos incertos da criatura que Yan tinha acabado de reviver, caminhando lentamente para longe deles como se temesse um novo mal sĂșbito. 

O garoto se parecia muito com Yan, embora fosse um pouco mais alto e de rosto visivelmente mais jovem, com olhos grandes e brilhantes em um tom castanho-claro. As mangas de suas vestes cor de palha eram longas e abertas, mas ele as prendera com um alfinete na altura dos cotovelos. O avental que vestia por cima entregava o motivo: estava assando biscoitos quando notou o primeiro animal morto.

— Igual vocĂȘ. Acha que a morte perdoa sĂł por isso? — Shu resmungou. Seu estĂŽmago roncava, a vibração suave causando um leve tremor sobre o ombro de Yan, ainda abaixado. 

— Shu, sossega — Yan pediu, cutucando sua cabecinha de lagarto enquanto se levantava e batia a grama da roupa na altura dos joelhos. — NĂŁo liga pra ele, Nyan. Shu fica amargo pra ninguĂ©m ver o quanto morte deixa ele triste. 

— NĂŁo ouve o seu irmĂŁo, garoto — Shu pentelhou. — Eu sĂł nĂŁo tenho paciĂȘncia pro seu chororĂŽ mesmo.

Yan suspirou, impaciente, cobrindo Shu com o cabelo e ignorando os xingos abafados pelas mechas. 

Tinha saĂ­do do Hall bem cedo pela manhĂŁ para visitar Nyan — e a mĂŁe, por consequĂȘncia. Moravam ainda na mesma pequena casa nos subĂșrbios de Farkas, a uma nĂŁo tĂŁo curta caminhada do centro da cidade, perto de onde ficava a antiga ponte que levava a Nivaria. 

Apesar de pequena, a casa tinha seus luxos metidos a besta, garantidos pelo clĂŁ  principal como presente pela presença e trabalho de Yan. Um deles, sua mĂŁe fazia questĂŁo de manter bem perto da porta. Era uma horrenda estĂĄtua de Ravi jovem, acompanhado de um de seus lobos. 

Yan torceu o nariz ao vĂȘ-la assim que surgiram do bosque. Era feita de um material parecido com o usado nas estĂĄtuas oficiais dentro do Hall, e garantia Ă  sua mĂŁe o status ao qual tanto tinha se apegado. 

Olhando bem, lĂĄ estava ela, encarapitada sobre uma banquetinha, limpando da cabeça de pedra do jovem Ravi um polpudo cocĂŽ de pĂĄssaro. 

— Oh, vocĂȘs voltaram, finalmente! — Jiao exclamou, entusiasmada, terminando a limpeza e lançando o pano em um balde no chĂŁo, imediatamente desinteressada por qualquer coisa que nĂŁo os filhos.

O filho, na verdade. Jiao nunca se importara com os dois na mesma proporção. Voltou a chamar Yan para perto de si enquanto enxotava Nyan com um aceno de mĂŁo de volta para a cozinha, ruminando alguma coisa sobre o forno e perda de tempo. 

— VocĂȘ ainda nĂŁo me contou, filho, como tĂȘm sido as coisas agora com o novo mestre Farkas — disse, sorrindo, enquanto encaixava uma mechinha de cabelo de Yan bem atrĂĄs da orelha, se safando por muito pouco de uma mordida de Shu. — Talvez com a morte de Ravi e Juno (e que os Imortais os tenham recebido com festa!), o jovem Oz finalmente tenha olhos maduros para a Ășnica pessoa que sempre esteve do lado dele
 Com boas intençÔes. — Ela piscou. 

 â€” As coisas nĂŁo mudaram. E Maali nĂŁo era mal-intencionado — Yan sussurrou. Sua mĂŁe ameaçou cobrir-lhe os lĂĄbios com as pontas dos dedos, movimento que Yan recebeu com um passo para trĂĄs. 

— O que está dizendo, Yan? — ela repreendeu. — Está tentando jogar fora tudo que nós conquistamos?

Nós, ela dizia. Embora Yan tivesse apenas memórias que começavam com eu.

— Eu vou ver se o Nyan precisa de mais alguma coisa — ele respondeu, em voz baixa, enquanto analisava a claridade do dia que começava a esmaecer. — Preciso voltar logo. 

Tinha saĂ­do mais uma vez sem que Oz soubesse e pedido a um leva-e-traz que transmitisse o recado de que seguiria a trilha mais segura e voltaria certamente antes do anoitecer. Com o humor cada vez mais torto que recaĂ­a sobre o Senhor dos Lobos, levĂĄ-lo junto consigo seria um atraso de viagem. E tambĂ©m representaria a certeza de ver sua mĂŁe aporrinhĂĄ-lo com as mesmas indiretas envolvendo casamento que tinha soprado em suas orelhas o dia todo. 

Jiao piscou os olhos cor-de-rosa, que contrastavam com os cabelos do mesmo tom de loiro da mecha de Yan. Ela tinha a fisionomia que se esperava de uma aruviana, com os olhos marcantes e os cabelos de fios grossos que desciam pelos ombros como uma cachoeira. Yan herdara essas duas caracterĂ­sticas. Seu irmĂŁo, apenas a segunda. 

Quando entrou na cozinha, Nyan era a perfeita imagem de um nivariano, com a expressĂŁo amena e as orelhinhas maleĂĄveis de esquilo se mexendo agitadas. Eram a Ășnica parte do irmĂŁo que denunciava algum estresse. 

— Eu juro que o Shu não faz por mal — Yan retomou, ignorando a interrupção para recuperar a conversa de onde tinham parado na saída do bosque.

— NĂŁo Ă© ele — Nyan respondeu, terminando de embrulhar parte da fornada de biscoitos em um pacote de tecido para viagem. — É a mĂŁe, ela fica uma boa dose mais intragĂĄvel quando vocĂȘ vem. Oh, Yan-Yan, isso Ă© pra vocĂȘ. E pro Oz. Diga pra ele que eu mandei um oi. — Nyan abriu um sorriso curto quando entregou o embrulho, os olhos iluminados facilmente encontrando Shu o espiando por entre os cabelos do irmĂŁo. — VocĂȘ pode comer tambĂ©m, lagartinho grosseiro.

— Eu nĂŁo preciso da sua autorização. Eu moro no Hall! — ele respondeu, mostrando a lĂ­ngua. Yan suspirou, balançando a cabeça, dando logo um pedaço de biscoito para que o lagarto matasse a fome e fosse menos desagradĂĄvel. 

Aceitou o pacote das mĂŁos do irmĂŁo, retribuindo a gentileza com uma reverĂȘncia que fez Nyan corar com uma careta sem jeito. Limpando as mĂŁos no avental, ele espiou o cĂ©u pela mesma janelinha redonda por onde tinha visto o primeiro dos animais mortos na trilha, mais cedo naquele dia.

— VocĂȘ devia ir, Yan-Yan. Vai escurecer logo — avisou, buscando o olhar do irmĂŁo para ofertar-lhe um sorriso que o fazia parecer novamente com um garoto. — Obrigado por usar tanta energia para reviver os bichinhos do bosque. VocĂȘ Ă© incrĂ­vel!

— Não foi nada — Yan respondeu enquanto o abraçava com um sorriso.

Acenou para a mĂŁe jĂĄ da trilha para o bosque. O canto dos pĂĄssaros revelava que jĂĄ era mesmo hora de voltar. 

— NĂŁo foi nada, nĂ©? — provocou Shu, ressurgindo em seu ombro assim que ficaram sozinhos na trilha. Dali de seu ombro, nĂŁo era difĂ­cil ver como as mĂŁos de Yan tremiam discretamente.

— É claro que devolver uma vida cansa, Shu. VocĂȘ sabe que a morte cobra seu preço. Mas de mim, ela sempre cobrou sĂł energia. É um valor Ă­nfimo para trazer algo tĂŁo precioso de volta, vocĂȘ nĂŁo acha? 

Yan suspirou, farejando o ar, animado com o cheiro dos biscoitos. Oz gostava deles, como sempre tinha gostado tambĂ©m de Nyan. Seu irmĂŁo nĂŁo era mais do que um filhote quando Oz o conheceu. Ele sempre foi gentil, mesmo com as poucas vezes em que tiveram contato. Os biscoitos eram uma memĂłria doce, que lembrava a Yan dele prĂłprio, Oz e Maali, jovens, sentados em um canto de Farkas, perto do bosque, dividindo uma das primeiras fornadas que Nyan tinha assado por conta prĂłpria. 

Sem dĂșvida, poderia amaciar fosse qual fosse o humor de Oz no seu regresso. Tinha biscoitos, um sorriso e seu abraço para oferecer, e sempre foi bom em curar o mau humor mimado de Oz com essas coisas. Com as trĂȘs de uma vez sĂł, era praticamente imbatĂ­vel. 

— Yan, ali tem mais um. — Shu apontou, erguendo no ar a patinha trĂȘmula. 

O cadĂĄver era grande daquela vez. Parrudo e de pelos escuros recobrindo todo o corpo. Se aproximou, apressando o passo ao reconhecer Nix, inerte, caĂ­da no chĂŁo com a lĂ­ngua de fora, o olho orgĂąnico aberto com a pupila encarando o vazio e o outro, o mecĂąnico, apagado. 

Chegou perto, soltando no chĂŁo o pacote com biscoitos e passando as mĂŁos pelos pelos grossos do pescoço da loba. Na primeira vez em que a trouxe de volta, a situação de Nix era mais alarmante, a de um lobo de corpo mutilado, sobrevivente de uma luta. Tinha perdido um dos olhos e a orelha junto com um pedaço de pele que deixara seu crĂąnio Ă  mostra. Essa parte foi reposta usando a tecnologia dos hĂ­bridos e entĂŁo Yan pĂŽde trazĂȘ-la de volta, para deleite de Ravi.

Desta vez, a energia usada não foi tanta. Mal tinha começado a usar seu dom e Nix jå respondeu, soltando um ganido baixinho.

— Boa garota — Yan sussurrou, afagando sua cabeça, aguardando enquanto a loba recuperava os movimentos. 

— O que Nix estĂĄ fazendo aqui, hm? 

O questionamento de Shu era bem vĂĄlido. TĂŁo longe do Hall, tĂŁo perto da casa de sua famĂ­lia. Balançou as orelhas de arminho enquanto olhava ao redor em busca de qualquer sinal de Oz, que nĂŁo encontrou. 

— Ele mandou ela atrĂĄs de mim — Yan explicou, com a Ășnica teoria que fazia sentido. NĂŁo explicava, entretanto, como a grande loba tinha caĂ­do morta bem no coração do bosque.

Surrupiou do embrulho de Nyan um pequeno punhado de biscoitos, oferecendo-os a ela assim que Nix teve forças para se sentar. Ela os comeu da sua mĂŁo, um por um, como um animal domĂ©stico, enquanto Yan afagava sua orelha. EntĂŁo soltou um uivo baixo, indicando que estava bem para seguir caminho. 

Ela era leal, a mais fiel dentre todos os lobos de Oz. Se ele tinha dado ordens para vir atrĂĄs de Yan, Nix seguiria sua missĂŁo, a morte sendo nada mais do que um pequeno empecilho para a realização. 

— Vamos para casa, Nix — Yan chamou, se levantando depois de refazer o laço que fechava o pacote de biscoitos. 

Com olhos atentos, notou perto do rabo de Nix uma pequena mancha cor de sangue. 

— Amoras? — perguntou Shu, vendo os restos de pequenos bagos no meio da mancha. Yan assentiu. 

Amoras, certamente. Amoras com cheiro de carne, pelo que sentia, o que era peculiar. 

Ergueu as sobrancelhas, bem na hora em que Nix soltou um rosnado fraco, encarando uma ĂĄrvore de tronco grosso. A brisa que soprava daquela direção tinha o mesmo aroma. 

— VocĂȘ vai ficar se escondendo? — perguntou Yan, com a voz suave. De seu ombro, Shu pendeu a cabeça. — Por que nĂŁo me faz companhia?

KuĂ­ surgiu, saindo de seu esconderijo entre as ĂĄrvores. As cobras se enrolavam em seus cachos cor-de-rosa que exalavam o perfume de veneno. 

— VocĂȘ tem instintos impressionantes, querido — KuĂ­ disse, dedicando a Yan uma reverĂȘncia polida, tĂŁo teatral que quase o fez sorrir. 

— A loba tem mais do que eu — Yan respondeu, voltando a afagar o pelo atrĂĄs da orelha de Nix, que rosnava. — Mas Ă© bom te encontrar por aqui, KuĂ­. É uma longa caminhada de volta atĂ© Farkas e eu ficaria feliz tendo um acompanhante.

— E eu nĂŁo tĂŽ valendo nada, Ă© isso? — Shu pontuou, ofendido. Virando o rosto, ele mostrou a linguinha na direção das cobras. — Eu devia te trocar pelas moças.  

Yan balançou a cabeça, oferecendo a mĂŁo para que KuĂ­ o conduzisse de volta pela trilha. TĂȘ-lo encontrado era uma boa notĂ­cia. Se KuĂ­ estava consigo, entĂŁo nĂŁo haveria de estar em algum conflito sem propĂłsito com Oz. E ainda poderia pressionĂĄ-lo sobre seu encontro com Maali. O Instrutor sempre se portava bem consigo, como se Yan fosse capaz de entrever um pouco mais dele por baixo da carapaça misteriosa.

— VocĂȘ pode ser bem honesto comigo, pela nossa amizade? — o curandeiro perguntou, deixando que KuĂ­ trouxesse sua mĂŁo para perto e pousasse nela um beijo delicado antes de acomodĂĄ-la Ă  curva de seu cotovelo. — Por que envenenar bichinhos na floresta?

— Oh — ele entoou, com um sorriso. — Eu te vi aquela manhĂŁ com as mariposas e vocĂȘ pareceu gostar tanto de cuidar delas, meu bem. Eu os deixei como presentes — KuĂ­ segredou, em um sussurro. 

— VocĂȘ Ă© louco, moço? — Shu ergueu a voz, mas Yan o pediu para se calar antes que o rosnado de Nix atrĂĄs deles ficasse mais poderoso. 

— NĂŁo devia matar sĂł por isso — Yan repreendeu, apertando o braço de KuĂ­ com dedos suaves. — Eu jĂĄ tenho trabalho demais com as criaturas que perdem a vida por qualquer outro motivo. NĂŁo preciso que vocĂȘ fabrique mais mortes para me entreter, KuĂ­. 

— Eu achei — ele começou, um brilho de divertimento no olhar — que vocĂȘ gostasse de escolher quem merece viver, querido. 

Por um breve momento, o lampejo nos olhos de Yan foi evidente demais para que o escondesse, mesmo por trĂĄs das lentes dos Ăłculos.

— Eu revivi todas que encontrei — disse Yan, abrindo um sorriso. — Isso diz algo sobre a minha capacidade de escolher, nĂŁo diz? 

— Isso diz muito sobre a gentileza que vocĂȘ emana, meu bem. Como se ela precisasse de ainda mais evidĂȘncias. 

Yan nĂŁo podia ver, mas KuĂ­ ainda carregava na bolsinha dentro da manga o pacotinho de ervas que o curandeiro o tinha dado, como um talismĂŁ.  

— Tem mais bichinhos mortos? — ele perguntou ele, encarando KuĂ­ de perto com os grandes olhos alaranjados. Em resposta, o Instrutor desviou o olhar. — VocĂȘ me levaria atĂ© eles?

— SĂł se puder me desculpar pelo presente equivocado. 

— SĂŁo tantos assim? — Yan ergueu as sobrancelhas. 

Eram. 

Shu segurou o grito em seu ombro quando o Instrutor os levou atĂ© o pequeno descampado onde Yan e o reduzido grupo de fiĂ©is de Niva se reuniam Ă s escondidas, todos os anos, na noite de abertura do Festival da VitĂłria. 

NĂŁo havia mais qualquer sinal do culto daquele ano. Em lugar das lanternas, o amargo silĂȘncio da morte, ilustrado por uma dĂșzia de corpos de animais, caĂ­dos ao redor de um punhado de amoras envenenadas. 

— Esses são todos. Eles morreram sem dor — prometeu, sorrindo diante do olhar aguçado da loba, enquanto Yan andava ao redor da clareira, revivendo-os um por um com um toque de suas mãos.

Elas tremiam mais a cada um deles. Ofegante, sua respiração parecia um pouco mais pesada do que o normal. 

— VocĂȘ precisa fazer uma pausa! — Shu exclamou, em voz baixa, para que fosse ouvido apenas por Yan.

— Eu preciso voltar logo pro Hall — ele sussurrou de volta, enquanto afagava a orelha comprida de um coelhinho que havia acabado de voltar a respirar. 

Ao que via, os Imortais os tinham presenteado com um um anoitecer cedo demais. Em breve, se nĂŁo estivesse de volta, Oz ficaria nervoso o suficiente para comprar briga com quem quer que fosse e, naquele momento, sendo acompanhado por KuĂ­, o Instrutor de Ópera seria um alvo certo de sua agressividade. 

Confrontando KuĂ­, ele sĂł conseguiria atrair para si a fama de imaturo e isolado, que jĂĄ se arrastava em sussurros por toda a Cidade dos Lobos. E se ficasse irritado a ponto de expulsar a Ópera de Farkas, Yan nĂŁo teria a chance de voltar a ver Maali. 

— VocĂȘ tem a presença de um artista de Ăłpera, meu querido. AlguĂ©m jĂĄ te disse isso? — KuĂ­ perguntou, admirando enquanto o curandeiro ia atĂ© o prĂłximo animalzinho caĂ­do.

— Nunca. — Yan esfregou os olhos por baixo das lentes. 

Havia algo naquele veneno que fazia a vida voltar macia. Eram mesmo apenas presentes para que pudesse trazer de volta. As almas se enroscavam aos corpinhos no aguardo de encontrar de volta a porta para dentro. Tinha demonstrado tanto prazer assim ao reviver as mariposas? O bastante para que o Instrutor pensasse que gostaria de receber criaturas mortas como oferendas?

— Eu te digo, entĂŁo, agora — KuĂ­ repetiu, brincando com uma das cobrinhas. — Com essa presença e um pouco de treinamento, posso te transformar em um artista. Consegue imaginar, querido, um espetĂĄculo sĂł seu? 

— NĂŁo. — Yan se permitiu um breve riso frente ao absurdo que ouvia. 

Sempre tinha sido um curandeiro, sonhado com uma vida que conhecia, perto de Oz e de Maali. A ideia de ser um artista, estudando mĂșsica e correndo as Cidades Flutuantes com a Ópera do Fim do Mundo, nĂŁo passava de uma ilusĂŁo estranha de alguĂ©m que nem o conhecia tĂŁo a fundo. Era bonito, entretanto, que KuĂ­ visse nele o talento para a arte e a diplomacia, duas coisas que desconhecia. 

— Pois eu jĂĄ visualizo tudo — ele garantiu, com uma certeza que deixou Yan desconcertado. — Vejo um espetĂĄculo sobre a vida e a morte, sobre a dĂĄdiva e os segredos, sobre amor — enfatizou — e gentileza, que poderiam ser melhor empregados em outros ambientes. 

— VocĂȘ tem uma versĂŁo muito bonita sobre mim, KuĂ­ — Yan agradeceu, se abaixando ao lado de um gatinho do mato para afagar-lhe o pescoço atĂ© que se mexesse. — Mas eu sou muito mais simplĂłrio do que se esperaria de um artista da sua Ópera. 

— Porque quer? — o Instrutor questionou, apoiando o rosto na palma da mão. — Ou porque nunca teve oportunidade de ser mais do que isso? — Não esperou resposta, emendando logo em seguida outra pergunta, que declarou o primeiro assunto como encerrado. — Eu comentei que convenci a sua amiga a te ver de novo?

Yan se desarmou. DistraĂ­do, deixou que o gato selvagem lambesse seus dedos enquanto encarava KuĂ­ com a expressĂŁo surpresa. Seu coração batia acelerado. Teria a chance de ver Li’a novamente, de falar com ela, talvez de convencĂȘ-la de que a ruptura entre eles nĂŁo fazia mais sentido agora que Ravi nĂŁo era mais do que uma memĂłria. 

Podia convencĂȘ-la a ficar com ele e Oz. KuĂ­ teria que perdoĂĄ-lo por nĂŁo sĂł recusar suas ideias mirabolantes de transformĂĄ-lo em um artista, mas por tambĂ©m pegar de volta sua Sereia. O lugar de Maali sempre fora com ele e Oz e, depois de ver o estado de sua saĂșde, nĂŁo desistiria da ideia atĂ© convencer Li’a a ficar. 

— Quando? — perguntou, a voz se erguendo um pouco mais em empolgação. 

— AmanhĂŁ, querido. Te parece bom? — KuĂ­ sorriu, mantendo o olhar sobre uma das cobrinhas. — AmanhĂŁ, vocĂȘs dois estarĂŁo juntos outra vez. 

Yan sorriu. O gato recĂ©m trazido de volta aproveitava-se de sua distração para se esfregar em sua mĂŁo erguida no ar. Do canto da clareira, Nix os observava, sentada. Seus olhos nunca perdiam Yan e KuĂ­ de vista, por motivos diferentes. 

Faltavam apenas trĂȘs bichinhos e poderia seguir seu caminho. O cĂ©u de Farkas, pontuado por nuvens e, vez ou outra, pela sombra de uma mariposa-de-sereno migratĂłria, reforçava o inĂ­cio da noite em tons de anil e pĂșrpura.

Estava atrasado. 

Apressou-se em se ajoelhar no chĂŁo perto de um esquilo-voador. As orelhas flexĂ­veis e molinhas o faziam lembrar do irmĂŁo. Respirou fundo, contendo a tremedeira de cansaço que ficava mais forte, tocando a mĂŁo no peito do animal. 

Ele mal tinha voltado a se mexer quando Nix virou o focinho na direção da cidade. Estavam embrenhados no bosque, seguros de olhares, mas perto o suficiente da cidade para que suas luzes começassem a ficar visĂ­veis contra o breu que se instaurava. 

Ouviu passos vindos daquela direção. E risinhos infantis. Um grupo de crianças brincando, logo percebeu. JĂĄ ia retomar a atenção aos dois bichinhos faltantes quando elas começaram a cantar. 

— Vejam o fantasma que anda como gente. VocĂȘ pisca e ele aparece de volta na sua frente. SaĂșdem o fantasma que veio para exigir: sua honra de volta, o rumo da histĂłria, a vida de quem o quis trair.

Por si só, a letra era divertida. Uma das crianças a entoava em voz gutural meio esganiçada, na tentativa de personificar o fantasma assassino. As outras riam, fugindo enquanto cantavam.

No entanto, a melodia da qual viera acompanhada tinha deixado Yan imĂłvel na clareira. 

— Eu jĂĄ ouvi isso em algum lugar — Shu confessou. Yan assentiu. Ele tambĂ©m. Em algum lugar que nĂŁo era Farkas. 

— Tudo bem, querido? — Kuí perguntou, com a voz transbordando preocupação. Yan não respondeu.

Seu cérebro revirava memórias antigas com um furor doloroso. Se lembrava do inverno de Nivaria, do frio dos campos cobertos de neve, do centro da cidade tingido de branco pelo gelo e de um grupo de crianças, abrigadas em uma construção de vidro transparente, quentinha como uma sala com lareira, iluminada apenas por um cristal flamejante flutuando bem ao centro.

VocĂȘs conhecem a Canção do Fantasma de NĂ©voa?, perguntara Maali, ajeitando ao redor do corpo a cobertinha felpuda que dividia com Yan.

NĂŁo!, responderam em coro as crianças menores. E foi o suficiente para que ele cantasse. 

Naquela ocasiĂŁo, a letra era diferente. Tratava-se de um fantasma que surgia nos dias de nĂ©voa para visitar aqueles que tinha amado em vida. Ele tinha explicado mais tarde — para um Yan sonolento e um Shu facilmente impressionĂĄvel — que se tratava de uma antiga canção nivariana sobre como lidar com a perda. 

Nunca tinha ouvido aquela canção em qualquer lugar prĂłximo a Farkas e a letra estava tĂŁo diferente. Conhecendo a histĂłria da mĂșsica, diria que atĂ© mesmo


Ameaçadora. 

— Meu bem? — KuĂ­ chamou. Yan sĂł reagiu ao sentir as mĂŁos dele em seus ombros, apertando-o de leve num carinho sutil. — Se gosta tanto de mĂșsicas infantis, posso te cantar algumas da minha terra assim que vocĂȘ terminar de reviver seus animaizinhos. 

Movimentando sĂł o pescoço, Yan olhou ao redor. Faltavam apenas dois, mas quantos tinham sido, no total? Dez agora, Nix e mais outra meia dĂșzia perto de sua casa. Por mais rĂĄpido que fosse o processo, por mais macio que fosse o retorno daquelas vidas, quanto tempo perdeu com isso?

E KuĂ­ ainda o ocupava com conversas sobre a Ăłpera e espetĂĄculos, com promessas de encontros, tudo ao mesmo tempo, como se, naquela noite, nĂŁo pudesse voltar logo para casa. Como se aquela noite fosse a Ășltima. 

— VocĂȘ estĂĄ me atrasando
 — Yan acusou, se afastando das mĂŁos de KuĂ­. A mĂșsica repetia-se em sua cabeça, espiralando como se ele prĂłprio rodasse dentro do vĂłrtex. 

O fantasma que volta para retomar sua honra, a histĂłria
 A vida de um traidor. 

Se ocupou tanto em manter Oz longe de KuĂ­ para evitar problemas, mas e se o problema viesse de outro lugar? E se o perigo fosse alguĂ©m que nunca tinha visto como uma ameaça? 

E Oz nem mesmo sabia que ele estava de volta. 

Poucas vezes na vida, Yan tinha sentido uma fĂșria gritante como aquela, que o fez correr para fora da clareira, para longe de KuĂ­. A Ășltima vez em que tinha se sentido assim tinha sido na queda de Nivaria, quando Maali foi grosseiramente arrancado dele. Naquele momento, as memĂłrias eram tĂŁo fortes que lhe davam Ăąnsia. Podia perder Oz do mesmo jeito. 

— Qual Ă© o plano, Yan? — Shu perguntou em voz alta, agarrado Ă s suas vestes com força. 

— Voltar para a cidade o mais rĂĄpido possĂ­vel — respondeu sem pensar. — Se esconde atĂ© eu dizer que Ă© seguro. 

— Esse Ă© o tipo de coisa que vocĂȘ nĂŁo precisa pedir duas vezes — o lagarto sibilou, se enfiando na gola da roupa, perto de sua nuca. 

Ravi estava morto. Maali e Oz estavam ambos ao seu alcance. Não permitiria que nada e nem ninguém fizesse mal a um deles novamente. Nem mesmo se o perigo viesse de onde jamais tinha imaginado.

Continua


No prĂłximo capĂ­tulo
 No prĂłximo capĂ­tulo
 É a noite do Indiepira, o festival de rock junino na Praça Roosevelt. E tambĂ©m Ă© o esperado dia do primeiro encontro de verdade de Yue e TomĂĄs. O que esperar desse date que nem conheço e jĂĄ amo?

ATENÇÃO! 🚹 Na semana que vem, nĂŁo teremos capĂ­tulo novo, mas a edição mensal da newsletter do VĂłrtex, a Bunny Hour!

O CapĂ­tulo 21 — Em casa chega no dia 1Âș de março Ă s 12h! 

Nos vemos na semana que vem!

Ei, vizinho! NĂŁo esquece de me acompanhar nas outras redes! đŸ’«

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