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💫 Pontes Imortais ― Capítulo 20

Uma canção sobre vida e morte

Boa tarde diretamente das Cidades Flutuantes! O clima em Farkas é quente e úmido, com alta chance de morte sem explicação causada por maluco. Fiquem atentos! 

No capítulo anterior… Yue e Lótus se aproximaram depois de se encontrarem no Sesc e o coração de Yue parece cada vez mais no lugar. Nas Cidades Flutuantes, a morte súbita das mariposas-de-sereno é um problema, mas o Senhor dos Lobos parece ter encontrado uma nova aliada e conselheira (ou não?). Vamos ver como está a situação.

A trilha-sonora do capítulo é Drama, do Aespa!

Capítulo 20 — Uma canção sobre vida e morte

Farkas, Pré-Hecatombe

Toda vez que matava mais alguma criatura, Kuí sorria. 

Já tinha experimentado a sensação diversas vezes ao longo dos anos, desde bem antes de fundar a Ópera ou ser reconhecido como diplomata. Existe um momento limítrofe, em que a alma presa a um corpinho já inerte se agita na iminência de se soltar. Se alguém soubesse as perguntas certas a fazer, conseguiria tirar de Kuí que aquele era o seu favorito.  

O momento tinha uma duração diferente para cada criatura, dependendo do espírito, do apreço à vida e, é claro, da causa da morte. Quando escolheu seus venenos naquela manhã, o Instrutor fez questão que não ferissem a carcaça imóvel largada no chão e que garantisse um momento especialmente longo. 

Para que Yan tivesse tempo o suficiente para aproveitar seu presente.

Havia muito poder em ser aquele que escolhe a dedo quem vai morrer. E um poder ainda mais aterrador em decidir quem permanece vivo, ou a quem a vida deve ser devolvida como uma dádiva divina. 

— Aquele era só um filhotinho, Yan-Yan.    

A voz de Nyan soou baixa e juvenil. Ainda meio escondido atrás de um tronco, ele observava os passos incertos da criatura que Yan tinha acabado de reviver, caminhando lentamente para longe deles como se temesse um novo mal súbito. 

O garoto se parecia muito com Yan, embora fosse um pouco mais alto e de rosto visivelmente mais jovem, com olhos grandes e brilhantes em um tom castanho-claro. As mangas de suas vestes cor de palha eram longas e abertas, mas ele as prendera com um alfinete na altura dos cotovelos. O avental que vestia por cima entregava o motivo: estava assando biscoitos quando notou o primeiro animal morto.

— Igual você. Acha que a morte perdoa só por isso? — Shu resmungou. Seu estômago roncava, a vibração suave causando um leve tremor sobre o ombro de Yan, ainda abaixado. 

— Shu, sossega — Yan pediu, cutucando sua cabecinha de lagarto enquanto se levantava e batia a grama da roupa na altura dos joelhos. — Não liga pra ele, Nyan. Shu fica amargo pra ninguém ver o quanto morte deixa ele triste. 

— Não ouve o seu irmão, garoto — Shu pentelhou. — Eu só não tenho paciência pro seu chororô mesmo.

Yan suspirou, impaciente, cobrindo Shu com o cabelo e ignorando os xingos abafados pelas mechas. 

Tinha saído do Hall bem cedo pela manhã para visitar Nyan — e a mãe, por consequência. Moravam ainda na mesma pequena casa nos subúrbios de Farkas, a uma não tão curta caminhada do centro da cidade, perto de onde ficava a antiga ponte que levava a Nivaria. 

Apesar de pequena, a casa tinha seus luxos metidos a besta, garantidos pelo clã  principal como presente pela presença e trabalho de Yan. Um deles, sua mãe fazia questão de manter bem perto da porta. Era uma horrenda estátua de Ravi jovem, acompanhado de um de seus lobos. 

Yan torceu o nariz ao vê-la assim que surgiram do bosque. Era feita de um material parecido com o usado nas estátuas oficiais dentro do Hall, e garantia à sua mãe o status ao qual tanto tinha se apegado. 

Olhando bem, lá estava ela, encarapitada sobre uma banquetinha, limpando da cabeça de pedra do jovem Ravi um polpudo cocô de pássaro. 

— Oh, vocês voltaram, finalmente! — Jiao exclamou, entusiasmada, terminando a limpeza e lançando o pano em um balde no chão, imediatamente desinteressada por qualquer coisa que não os filhos.

O filho, na verdade. Jiao nunca se importara com os dois na mesma proporção. Voltou a chamar Yan para perto de si enquanto enxotava Nyan com um aceno de mão de volta para a cozinha, ruminando alguma coisa sobre o forno e perda de tempo. 

— Você ainda não me contou, filho, como têm sido as coisas agora com o novo mestre Farkas — disse, sorrindo, enquanto encaixava uma mechinha de cabelo de Yan bem atrás da orelha, se safando por muito pouco de uma mordida de Shu. — Talvez com a morte de Ravi e Juno (e que os Imortais os tenham recebido com festa!), o jovem Oz finalmente tenha olhos maduros para a única pessoa que sempre esteve do lado dele… Com boas intenções. — Ela piscou. 

 â€” As coisas não mudaram. E Maali não era mal-intencionado — Yan sussurrou. Sua mãe ameaçou cobrir-lhe os lábios com as pontas dos dedos, movimento que Yan recebeu com um passo para trás. 

— O que está dizendo, Yan? — ela repreendeu. — Está tentando jogar fora tudo que nós conquistamos?

Nós, ela dizia. Embora Yan tivesse apenas memórias que começavam com eu.

— Eu vou ver se o Nyan precisa de mais alguma coisa — ele respondeu, em voz baixa, enquanto analisava a claridade do dia que começava a esmaecer. — Preciso voltar logo. 

Tinha saído mais uma vez sem que Oz soubesse e pedido a um leva-e-traz que transmitisse o recado de que seguiria a trilha mais segura e voltaria certamente antes do anoitecer. Com o humor cada vez mais torto que recaía sobre o Senhor dos Lobos, levá-lo junto consigo seria um atraso de viagem. E também representaria a certeza de ver sua mãe aporrinhá-lo com as mesmas indiretas envolvendo casamento que tinha soprado em suas orelhas o dia todo. 

Jiao piscou os olhos cor-de-rosa, que contrastavam com os cabelos do mesmo tom de loiro da mecha de Yan. Ela tinha a fisionomia que se esperava de uma aruviana, com os olhos marcantes e os cabelos de fios grossos que desciam pelos ombros como uma cachoeira. Yan herdara essas duas características. Seu irmão, apenas a segunda. 

Quando entrou na cozinha, Nyan era a perfeita imagem de um nivariano, com a expressão amena e as orelhinhas maleáveis de esquilo se mexendo agitadas. Eram a única parte do irmão que denunciava algum estresse. 

— Eu juro que o Shu não faz por mal — Yan retomou, ignorando a interrupção para recuperar a conversa de onde tinham parado na saída do bosque.

— Não é ele — Nyan respondeu, terminando de embrulhar parte da fornada de biscoitos em um pacote de tecido para viagem. — É a mãe, ela fica uma boa dose mais intragável quando você vem. Oh, Yan-Yan, isso é pra você. E pro Oz. Diga pra ele que eu mandei um oi. — Nyan abriu um sorriso curto quando entregou o embrulho, os olhos iluminados facilmente encontrando Shu o espiando por entre os cabelos do irmão. — Você pode comer também, lagartinho grosseiro.

— Eu não preciso da sua autorização. Eu moro no Hall! — ele respondeu, mostrando a língua. Yan suspirou, balançando a cabeça, dando logo um pedaço de biscoito para que o lagarto matasse a fome e fosse menos desagradável. 

Aceitou o pacote das mãos do irmão, retribuindo a gentileza com uma reverência que fez Nyan corar com uma careta sem jeito. Limpando as mãos no avental, ele espiou o céu pela mesma janelinha redonda por onde tinha visto o primeiro dos animais mortos na trilha, mais cedo naquele dia.

— Você devia ir, Yan-Yan. Vai escurecer logo — avisou, buscando o olhar do irmão para ofertar-lhe um sorriso que o fazia parecer novamente com um garoto. — Obrigado por usar tanta energia para reviver os bichinhos do bosque. Você é incrível!

— Não foi nada — Yan respondeu enquanto o abraçava com um sorriso.

Acenou para a mãe já da trilha para o bosque. O canto dos pássaros revelava que já era mesmo hora de voltar. 

— Não foi nada, né? — provocou Shu, ressurgindo em seu ombro assim que ficaram sozinhos na trilha. Dali de seu ombro, não era difícil ver como as mãos de Yan tremiam discretamente.

— É claro que devolver uma vida cansa, Shu. Você sabe que a morte cobra seu preço. Mas de mim, ela sempre cobrou só energia. É um valor ínfimo para trazer algo tão precioso de volta, você não acha? 

Yan suspirou, farejando o ar, animado com o cheiro dos biscoitos. Oz gostava deles, como sempre tinha gostado também de Nyan. Seu irmão não era mais do que um filhote quando Oz o conheceu. Ele sempre foi gentil, mesmo com as poucas vezes em que tiveram contato. Os biscoitos eram uma memória doce, que lembrava a Yan dele próprio, Oz e Maali, jovens, sentados em um canto de Farkas, perto do bosque, dividindo uma das primeiras fornadas que Nyan tinha assado por conta própria. 

Sem dúvida, poderia amaciar fosse qual fosse o humor de Oz no seu regresso. Tinha biscoitos, um sorriso e seu abraço para oferecer, e sempre foi bom em curar o mau humor mimado de Oz com essas coisas. Com as três de uma vez só, era praticamente imbatível. 

— Yan, ali tem mais um. — Shu apontou, erguendo no ar a patinha trêmula. 

O cadáver era grande daquela vez. Parrudo e de pelos escuros recobrindo todo o corpo. Se aproximou, apressando o passo ao reconhecer Nix, inerte, caída no chão com a língua de fora, o olho orgânico aberto com a pupila encarando o vazio e o outro, o mecânico, apagado. 

Chegou perto, soltando no chão o pacote com biscoitos e passando as mãos pelos pelos grossos do pescoço da loba. Na primeira vez em que a trouxe de volta, a situação de Nix era mais alarmante, a de um lobo de corpo mutilado, sobrevivente de uma luta. Tinha perdido um dos olhos e a orelha junto com um pedaço de pele que deixara seu crânio à mostra. Essa parte foi reposta usando a tecnologia dos híbridos e então Yan pôde trazê-la de volta, para deleite de Ravi.

Desta vez, a energia usada não foi tanta. Mal tinha começado a usar seu dom e Nix já respondeu, soltando um ganido baixinho.

— Boa garota — Yan sussurrou, afagando sua cabeça, aguardando enquanto a loba recuperava os movimentos. 

— O que Nix está fazendo aqui, hm? 

O questionamento de Shu era bem válido. Tão longe do Hall, tão perto da casa de sua família. Balançou as orelhas de arminho enquanto olhava ao redor em busca de qualquer sinal de Oz, que não encontrou. 

— Ele mandou ela atrás de mim — Yan explicou, com a única teoria que fazia sentido. Não explicava, entretanto, como a grande loba tinha caído morta bem no coração do bosque.

Surrupiou do embrulho de Nyan um pequeno punhado de biscoitos, oferecendo-os a ela assim que Nix teve forças para se sentar. Ela os comeu da sua mão, um por um, como um animal doméstico, enquanto Yan afagava sua orelha. Então soltou um uivo baixo, indicando que estava bem para seguir caminho. 

Ela era leal, a mais fiel dentre todos os lobos de Oz. Se ele tinha dado ordens para vir atrás de Yan, Nix seguiria sua missão, a morte sendo nada mais do que um pequeno empecilho para a realização. 

— Vamos para casa, Nix — Yan chamou, se levantando depois de refazer o laço que fechava o pacote de biscoitos. 

Com olhos atentos, notou perto do rabo de Nix uma pequena mancha cor de sangue. 

— Amoras? — perguntou Shu, vendo os restos de pequenos bagos no meio da mancha. Yan assentiu. 

Amoras, certamente. Amoras com cheiro de carne, pelo que sentia, o que era peculiar. 

Ergueu as sobrancelhas, bem na hora em que Nix soltou um rosnado fraco, encarando uma árvore de tronco grosso. A brisa que soprava daquela direção tinha o mesmo aroma. 

— Você vai ficar se escondendo? — perguntou Yan, com a voz suave. De seu ombro, Shu pendeu a cabeça. — Por que não me faz companhia?

Kuí surgiu, saindo de seu esconderijo entre as árvores. As cobras se enrolavam em seus cachos cor-de-rosa que exalavam o perfume de veneno. 

— Você tem instintos impressionantes, querido — Kuí disse, dedicando a Yan uma reverência polida, tão teatral que quase o fez sorrir. 

— A loba tem mais do que eu — Yan respondeu, voltando a afagar o pelo atrás da orelha de Nix, que rosnava. — Mas é bom te encontrar por aqui, Kuí. É uma longa caminhada de volta até Farkas e eu ficaria feliz tendo um acompanhante.

— E eu não tô valendo nada, é isso? — Shu pontuou, ofendido. Virando o rosto, ele mostrou a linguinha na direção das cobras. — Eu devia te trocar pelas moças.  

Yan balançou a cabeça, oferecendo a mão para que Kuí o conduzisse de volta pela trilha. Tê-lo encontrado era uma boa notícia. Se Kuí estava consigo, então não haveria de estar em algum conflito sem propósito com Oz. E ainda poderia pressioná-lo sobre seu encontro com Maali. O Instrutor sempre se portava bem consigo, como se Yan fosse capaz de entrever um pouco mais dele por baixo da carapaça misteriosa.

— Você pode ser bem honesto comigo, pela nossa amizade? — o curandeiro perguntou, deixando que Kuí trouxesse sua mão para perto e pousasse nela um beijo delicado antes de acomodá-la à curva de seu cotovelo. — Por que envenenar bichinhos na floresta?

— Oh — ele entoou, com um sorriso. — Eu te vi aquela manhã com as mariposas e você pareceu gostar tanto de cuidar delas, meu bem. Eu os deixei como presentes — Kuí segredou, em um sussurro. 

— Você é louco, moço? — Shu ergueu a voz, mas Yan o pediu para se calar antes que o rosnado de Nix atrás deles ficasse mais poderoso. 

— Não devia matar só por isso — Yan repreendeu, apertando o braço de Kuí com dedos suaves. — Eu já tenho trabalho demais com as criaturas que perdem a vida por qualquer outro motivo. Não preciso que você fabrique mais mortes para me entreter, Kuí. 

— Eu achei — ele começou, um brilho de divertimento no olhar — que você gostasse de escolher quem merece viver, querido. 

Por um breve momento, o lampejo nos olhos de Yan foi evidente demais para que o escondesse, mesmo por trás das lentes dos óculos.

— Eu revivi todas que encontrei — disse Yan, abrindo um sorriso. — Isso diz algo sobre a minha capacidade de escolher, não diz? 

— Isso diz muito sobre a gentileza que você emana, meu bem. Como se ela precisasse de ainda mais evidências. 

Yan não podia ver, mas Kuí ainda carregava na bolsinha dentro da manga o pacotinho de ervas que o curandeiro o tinha dado, como um talismã.  

— Tem mais bichinhos mortos? — ele perguntou ele, encarando Kuí de perto com os grandes olhos alaranjados. Em resposta, o Instrutor desviou o olhar. — Você me levaria até eles?

— Só se puder me desculpar pelo presente equivocado. 

— São tantos assim? — Yan ergueu as sobrancelhas. 

Eram. 

Shu segurou o grito em seu ombro quando o Instrutor os levou até o pequeno descampado onde Yan e o reduzido grupo de fiéis de Niva se reuniam às escondidas, todos os anos, na noite de abertura do Festival da Vitória. 

Não havia mais qualquer sinal do culto daquele ano. Em lugar das lanternas, o amargo silêncio da morte, ilustrado por uma dúzia de corpos de animais, caídos ao redor de um punhado de amoras envenenadas. 

— Esses são todos. Eles morreram sem dor — prometeu, sorrindo diante do olhar aguçado da loba, enquanto Yan andava ao redor da clareira, revivendo-os um por um com um toque de suas mãos.

Elas tremiam mais a cada um deles. Ofegante, sua respiração parecia um pouco mais pesada do que o normal. 

— Você precisa fazer uma pausa! — Shu exclamou, em voz baixa, para que fosse ouvido apenas por Yan.

— Eu preciso voltar logo pro Hall — ele sussurrou de volta, enquanto afagava a orelha comprida de um coelhinho que havia acabado de voltar a respirar. 

Ao que via, os Imortais os tinham presenteado com um um anoitecer cedo demais. Em breve, se não estivesse de volta, Oz ficaria nervoso o suficiente para comprar briga com quem quer que fosse e, naquele momento, sendo acompanhado por Kuí, o Instrutor de Ópera seria um alvo certo de sua agressividade. 

Confrontando Kuí, ele só conseguiria atrair para si a fama de imaturo e isolado, que já se arrastava em sussurros por toda a Cidade dos Lobos. E se ficasse irritado a ponto de expulsar a Ópera de Farkas, Yan não teria a chance de voltar a ver Maali. 

— Você tem a presença de um artista de ópera, meu querido. Alguém já te disse isso? — Kuí perguntou, admirando enquanto o curandeiro ia até o próximo animalzinho caído.

— Nunca. — Yan esfregou os olhos por baixo das lentes. 

Havia algo naquele veneno que fazia a vida voltar macia. Eram mesmo apenas presentes para que pudesse trazer de volta. As almas se enroscavam aos corpinhos no aguardo de encontrar de volta a porta para dentro. Tinha demonstrado tanto prazer assim ao reviver as mariposas? O bastante para que o Instrutor pensasse que gostaria de receber criaturas mortas como oferendas?

— Eu te digo, então, agora — Kuí repetiu, brincando com uma das cobrinhas. — Com essa presença e um pouco de treinamento, posso te transformar em um artista. Consegue imaginar, querido, um espetáculo só seu? 

— Não. — Yan se permitiu um breve riso frente ao absurdo que ouvia. 

Sempre tinha sido um curandeiro, sonhado com uma vida que conhecia, perto de Oz e de Maali. A ideia de ser um artista, estudando música e correndo as Cidades Flutuantes com a Ópera do Fim do Mundo, não passava de uma ilusão estranha de alguém que nem o conhecia tão a fundo. Era bonito, entretanto, que Kuí visse nele o talento para a arte e a diplomacia, duas coisas que desconhecia. 

— Pois eu já visualizo tudo — ele garantiu, com uma certeza que deixou Yan desconcertado. — Vejo um espetáculo sobre a vida e a morte, sobre a dádiva e os segredos, sobre amor — enfatizou — e gentileza, que poderiam ser melhor empregados em outros ambientes. 

— Você tem uma versão muito bonita sobre mim, Kuí — Yan agradeceu, se abaixando ao lado de um gatinho do mato para afagar-lhe o pescoço até que se mexesse. — Mas eu sou muito mais simplório do que se esperaria de um artista da sua Ópera. 

— Porque quer? — o Instrutor questionou, apoiando o rosto na palma da mão. — Ou porque nunca teve oportunidade de ser mais do que isso? — Não esperou resposta, emendando logo em seguida outra pergunta, que declarou o primeiro assunto como encerrado. — Eu comentei que convenci a sua amiga a te ver de novo?

Yan se desarmou. Distraído, deixou que o gato selvagem lambesse seus dedos enquanto encarava Kuí com a expressão surpresa. Seu coração batia acelerado. Teria a chance de ver Li’a novamente, de falar com ela, talvez de convencê-la de que a ruptura entre eles não fazia mais sentido agora que Ravi não era mais do que uma memória. 

Podia convencê-la a ficar com ele e Oz. Kuí teria que perdoá-lo por não só recusar suas ideias mirabolantes de transformá-lo em um artista, mas por também pegar de volta sua Sereia. O lugar de Maali sempre fora com ele e Oz e, depois de ver o estado de sua saúde, não desistiria da ideia até convencer Li’a a ficar. 

— Quando? — perguntou, a voz se erguendo um pouco mais em empolgação. 

— Amanhã, querido. Te parece bom? — Kuí sorriu, mantendo o olhar sobre uma das cobrinhas. — Amanhã, vocês dois estarão juntos outra vez. 

Yan sorriu. O gato recém trazido de volta aproveitava-se de sua distração para se esfregar em sua mão erguida no ar. Do canto da clareira, Nix os observava, sentada. Seus olhos nunca perdiam Yan e Kuí de vista, por motivos diferentes. 

Faltavam apenas três bichinhos e poderia seguir seu caminho. O céu de Farkas, pontuado por nuvens e, vez ou outra, pela sombra de uma mariposa-de-sereno migratória, reforçava o início da noite em tons de anil e púrpura.

Estava atrasado. 

Apressou-se em se ajoelhar no chão perto de um esquilo-voador. As orelhas flexíveis e molinhas o faziam lembrar do irmão. Respirou fundo, contendo a tremedeira de cansaço que ficava mais forte, tocando a mão no peito do animal. 

Ele mal tinha voltado a se mexer quando Nix virou o focinho na direção da cidade. Estavam embrenhados no bosque, seguros de olhares, mas perto o suficiente da cidade para que suas luzes começassem a ficar visíveis contra o breu que se instaurava. 

Ouviu passos vindos daquela direção. E risinhos infantis. Um grupo de crianças brincando, logo percebeu. Já ia retomar a atenção aos dois bichinhos faltantes quando elas começaram a cantar. 

— Vejam o fantasma que anda como gente. Você pisca e ele aparece de volta na sua frente. Saúdem o fantasma que veio para exigir: sua honra de volta, o rumo da história, a vida de quem o quis trair.

Por si só, a letra era divertida. Uma das crianças a entoava em voz gutural meio esganiçada, na tentativa de personificar o fantasma assassino. As outras riam, fugindo enquanto cantavam.

No entanto, a melodia da qual viera acompanhada tinha deixado Yan imóvel na clareira. 

— Eu já ouvi isso em algum lugar — Shu confessou. Yan assentiu. Ele também. Em algum lugar que não era Farkas. 

— Tudo bem, querido? — Kuí perguntou, com a voz transbordando preocupação. Yan não respondeu.

Seu cérebro revirava memórias antigas com um furor doloroso. Se lembrava do inverno de Nivaria, do frio dos campos cobertos de neve, do centro da cidade tingido de branco pelo gelo e de um grupo de crianças, abrigadas em uma construção de vidro transparente, quentinha como uma sala com lareira, iluminada apenas por um cristal flamejante flutuando bem ao centro.

Vocês conhecem a Canção do Fantasma de Névoa?, perguntara Maali, ajeitando ao redor do corpo a cobertinha felpuda que dividia com Yan.

Não!, responderam em coro as crianças menores. E foi o suficiente para que ele cantasse. 

Naquela ocasião, a letra era diferente. Tratava-se de um fantasma que surgia nos dias de névoa para visitar aqueles que tinha amado em vida. Ele tinha explicado mais tarde — para um Yan sonolento e um Shu facilmente impressionável — que se tratava de uma antiga canção nivariana sobre como lidar com a perda. 

Nunca tinha ouvido aquela canção em qualquer lugar próximo a Farkas e a letra estava tão diferente. Conhecendo a história da música, diria que até mesmo…

Ameaçadora. 

— Meu bem? — Kuí chamou. Yan só reagiu ao sentir as mãos dele em seus ombros, apertando-o de leve num carinho sutil. — Se gosta tanto de músicas infantis, posso te cantar algumas da minha terra assim que você terminar de reviver seus animaizinhos. 

Movimentando só o pescoço, Yan olhou ao redor. Faltavam apenas dois, mas quantos tinham sido, no total? Dez agora, Nix e mais outra meia dúzia perto de sua casa. Por mais rápido que fosse o processo, por mais macio que fosse o retorno daquelas vidas, quanto tempo perdeu com isso?

E Kuí ainda o ocupava com conversas sobre a ópera e espetáculos, com promessas de encontros, tudo ao mesmo tempo, como se, naquela noite, não pudesse voltar logo para casa. Como se aquela noite fosse a última. 

— Você está me atrasando… — Yan acusou, se afastando das mãos de Kuí. A música repetia-se em sua cabeça, espiralando como se ele próprio rodasse dentro do vórtex. 

O fantasma que volta para retomar sua honra, a história… A vida de um traidor. 

Se ocupou tanto em manter Oz longe de Kuí para evitar problemas, mas e se o problema viesse de outro lugar? E se o perigo fosse alguém que nunca tinha visto como uma ameaça? 

E Oz nem mesmo sabia que ele estava de volta. 

Poucas vezes na vida, Yan tinha sentido uma fúria gritante como aquela, que o fez correr para fora da clareira, para longe de Kuí. A última vez em que tinha se sentido assim tinha sido na queda de Nivaria, quando Maali foi grosseiramente arrancado dele. Naquele momento, as memórias eram tão fortes que lhe davam ânsia. Podia perder Oz do mesmo jeito. 

— Qual é o plano, Yan? — Shu perguntou em voz alta, agarrado às suas vestes com força. 

— Voltar para a cidade o mais rápido possível — respondeu sem pensar. — Se esconde até eu dizer que é seguro. 

— Esse é o tipo de coisa que você não precisa pedir duas vezes — o lagarto sibilou, se enfiando na gola da roupa, perto de sua nuca. 

Ravi estava morto. Maali e Oz estavam ambos ao seu alcance. Não permitiria que nada e nem ninguém fizesse mal a um deles novamente. Nem mesmo se o perigo viesse de onde jamais tinha imaginado.

Continua…

No próximo capítulo… No próximo capítulo… É a noite do Indiepira, o festival de rock junino na Praça Roosevelt. E também é o esperado dia do primeiro encontro de verdade de Yue e Tomás. O que esperar desse date que nem conheço e já amo?

ATENÇÃO! 🚨 Na semana que vem, não teremos capítulo novo, mas a edição mensal da newsletter do Vórtex, a Bunny Hour!

O Capítulo 21 — Em casa chega no dia 1º de março às 12h! 

Nos vemos na semana que vem!

Ei, vizinho! Não esquece de me acompanhar nas outras redes! 💫

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