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💫 Pontes Imortais ― Capítulo 19
Abestado
Boa tarde, vortexianos! Estamos prontos pra mais um capítulo? Prontos ou não, ele chegou!
No capítulo anterior… As mariposas-de-sereno estão morrendo e Yan foi averiguar a situação com Kuí, sem saber que o Instrutor tem seus segredos. Enquanto isso, Li’a usou seu carisma para conquistar a confiança de Oz. O que poderia dar errado? Em São Paulo, Vi parece ter convencido Yue a ser mais flexível e Tomás já está informado. Onde estava Yue quando recebeu a mensagem deles? Vamos espiar?
A música para este capítulo é Lenha, do Zeca Baleiro!
Capítulo 19 — Abestado
São Paulo, 2023
“Ei abestado, olha pra frente! 🌸”
Largado na comedoria do Sesc Paulista com uma xícara de cappuccino pela metade e a mochila abandonada na cadeira ao lado, Yue tinha a sensação de ter cochilado com os olhos abertos. O barulho do celular vibrando sobre a mesa não foi tão efetivo para acordá-lo quanto aquela mensagem.
Erguendo a cabeça, encontrou Lótus sentado do outro lado, respondendo com um menear de cabeça ao aceno empolgado do rapaz.
― Vou sentar aí! ― Lótus anunciou em voz alta, pendurando no ombro uma enorme mochila no formato de um morcego rosa. Depois catou o caderninho ao lado e a bandeja com o pedido recém-chegado, atravessando o pequeno corredor até onde Yue tinha sentado. ― Eita que meu filho anda se divertindo, né?
Yue tocou o lado do pescoço para onde Lótus olhava, rindo. Estava ciente da marquinha estampada na pele, cujos tons de roxo começavam a esmaecer. O calor que tomou seu rosto pouco tinha a ver com vergonha.
― Você trabalha aqui. ― Yue encarou o crachá de Lótus, com o nome dele impresso logo abaixo de uma foto sorridente do rapaz, mas sabia disso de antes.
Tinha sido uma das mil coisas não solicitadas que Lótus havia contado desde que dera um jeito de conseguir o seu número. Inicialmente, a primeira reação de Yue àquela pessoa enviando um “oiiii ✨” efusivo no telegram foi a ideia de bloqueá-la, pelo menos até reconhecer quem estava na foto. Aquele era o rapaz que encontrara na casa de Tomás dias atrás, não era? Seria mal-educado bloquear um amigo dele. Respondeu com um “oi” banal, mais do que o necessário para que Lótus engrenasse uma conversa que, na maior parte do tempo, quase não exigia a interação de Yue.
― Tu tá com cara de quem não dorme faz umas cinco vidas.
Já acomodado à mesa, Lótus pegou uma colherada generosa do pavê de cupuaçu, inclinando-se para oferecer a Yue. Ele negou com a cabeça, mas Lótus insistiu, batendo a colher de levinho em seus lábios até Yue ceder, abrindo a boca.
O pavê derreteu na língua, misturando ao ganache açucarado da cobertura o azedo violento do cupuaçu. A combinação harmonizava estranhamente com Lótus, embora Yue não soubesse nada sobre ele. Bom… Nada além das listas de coisas com que fora bombardeado, o que não dizia muito. Se Yue sabia se esconder debaixo de silêncios acumulados, Lótus parecia ocultar a si mesmo atirando sobre as pessoas coisas sobre sua vida até deixá-las atordoadas demais para que se lembrassem de perguntar o que realmente importava.
― Tá tentando ser meu amigo? ― Yue acabou perguntando. Pegou a xícara de café para mais um gole, abandonando-a quase em seguida, com uma careta. Estava gelado. Por quanto tempo tinha ficado distraído?
― Ah, não! ― Lótus se exasperou, cobrindo a boca com o dorso da mão, no meio de um riso divertido. ― Meu filho, quem que a gente precisa matar pra tu entender que a gente quer um beijo? Bom que já aviso Tomás.
Difícil dizer o que deixou Lótus mais entretido: a forma como Yue coçou o nariz com o canto da mão numa tentativa de disfarçar o rosto corado, ou o fato de que ele chamou a xícara de cappuccino em seu socorro logo em seguida, só para emendar uma nova careta.
― Amo que tu tem uma carinha de que joga a gente na parede e chama de lagartixa, mas também é um tapado. ― Ele enroscou o dedinho na alça da xícara para afastá-la de Yue antes que o sujeito decidisse se castigar com mais um gole de café gelado. ― Tu quer outro? Peço pra ti.
― Não. ― Esfregando as mãos no rosto, Yue acabou rindo. Os olhos quase fechados formavam linhas simpáticas nos cantinhos, que faziam Lótus pensar em delicadas teias de aranha. ― Você é muito direto.
― Sou, não sou? ― Lótus se interrompeu com um suspiro, fazendo uma pausa para aproveitar o gostinho do pavê. ― Que tu tá fazendo por esses lados?
― Hoje foi dia de contação de histórias no Santa Catarina ― Yue explicou, baixando as mãos.
― Que tu acha daquelas imagens nos muros deles, menino? ― Lótus fingiu estremecer, rindo. ― Eu olho toda vez porque sou bocó, mas fico sempre aperreado.
O hospital Santa Catarina estava do outro lado da calçada ― um complexo hospitalar que chamava a atenção tanto por sua capela com belos vitrais quanto pelos vinte e quatro painéis de bronze ao longo dos muros, retratando imagens anatômicas. Era tão bonito quanto perturbador.
― Minha favorita é da pessoa com a máscara de oxigênio ― Yue revelou, sem saber bem a razão, e acabou sorrindo sem jeito.
― “Sensação de dor ausente”, coisa e tal, né? ― Lótus escancarou o sorriso diante da expressão curiosa de Yue. ― Minha memória é um espetáculo, menino. Eu gosto da placa com a cobra. A que diz “que se cure no final do veneno quem se pôs à mercê do antigo mal”.
― Parece uma maldição ― Yue ponderou.
― Não, não. ― Lótus pousou a colher sobre a bandeja, empolgado com o que interpretou como um duelo mental. ― É a antítese de uma maldição. Uma anti-maldição. Tá ali escrito pra todo mundo ver que a cura pro veneno é o próprio veneno. Como no soro antiofídico.
― O veneno não saiu da equação, ainda assim. ― Yue apoiou a mão no rosto. Ainda era como ter areia nos olhos, mas eles estavam um pouco menos pesados. ― É só uma constatação ― completou ao ver Lótus se preparar para rebater. Para Lótus, aquele era um assunto importante de verdade, percebeu. ― Uma anti-maldição ainda vem com o fardo do veneno. Ou de lidar com a criatura peçonhenta que o carrega.
― Menino, não tava querendo uma conversa profunda não! ― Lótus se exasperou, batucando as unhas bem pintadas contra a bandeja.
― Parece que estava ― Yue retrucou. Foi a vez de Lótus parecer embaraçado, embora nele a vergonha não passasse de um breve esgar de lábios. Pareceu a Yue como um folião que, pego de surpresa, vê sua máscara escorregar alguns centímetros, revelando uma cicatriz que a farra deveria esconder.
Dois adolescentes barulhentos se aproximaram para pegar a mesa ao lado. Pareciam irmãos: loiros demais, brancos demais, quase feios. Usavam o uniforme de uma escola esnobe da região. O mais alto esbarrou contra a mesa dos dois, fazendo tudo balançar e derrubando o caderninho de Lótus no chão.
― Foi mal, tias! ― Enquanto se abaixava para recuperar o caderno, Yue ouviu um dos garotos falar, seguindo-se da voz melodiosa de Lótus:
― Não tenho o menor talento para ser tio de ninguém, gracinha ― ele respondeu, dando ênfase a cada palavra ―, mas tá desculpado, viu?
― Ih… ― o outro baixou a voz, mas não tanto que não pudessem ser ouvidos ―, é mina pagando de cara.
― Lindo, olha aqui pra mim um instante. ― Lótus estalou os dedos, chamando a atenção dos garotos. ― Tá vendo esse crachá aqui? Significa que eu tenho o poder de colocar as duas gracinhas pra fora desse prédio agora mesmo, sem toddynho, sem nada. É só eu erguer a voz mais um pouquinho, querem testar?
De olhos arregalados, os garotos fizeram que não, levantando-se para buscar uma mesa mais distante dos dois, bem o tipo de moleque que não aguenta cinco segundos de confronto.
― Yue, meu filho vai ficar pra sempre debaixo dessa mesa?
O caderno tinha caído meio aberto, algumas folhas amassadas nas laterais com pancada. Yue não era o tipo de abelhudo que espiava as coisas dos outros, mas teve a atenção fisgada por um desenho em página dupla. Não era nada de mais à primeira vista, só um redemoinho de cores variadas: vermelho, azul, roxo. Se alguém fotografasse o olho de um furacão, deveria ser semelhante àquilo.
Quanto mais encarava o desenho, no entanto, mais Yue sentia o coração ser preenchido por uma percepção de perda inexorável. As cores ganhavam novas texturas, arremessando-se contra sua retina de forma dolorosa. Se tivessem som, seria o de uma colméia em polvorosa, o ruído de estática aumentando furiosamente até apagar qualquer pensamento coerente.
Ele ofegou, tentando levantar de súbito. A cabeça bateu contra a mesa, fazendo o caderno escapar de suas mãos e voltar a cair. Os garotos mais ao longe deram risadinhas.
― Que foi? ― Lótus perguntou, olhando para baixo.
Em outra página, rascunhos de mãos pareciam empurrar alguma coisa ― alguém ― contra um lago. Nos cantos das páginas, longas serpentes pareciam concentradas em admirar a cena.
Num gesto rápido, Lótus recuperou o caderno e o fechou com força. O sorriso não tinha sumido do rosto, mas encrespava-se nos cantos em uma sugestão de antipatia.
― Não te ensinaram a não bulir nas coisas dos outros?
― Desculpa… ― Yue começou, vendo o rapaz jogar o caderno dentro da mochila, levantando-se em seguida. O resto de doce e a xícara de chocolate quente ficaram largados sobre a bandeja.
Lótus foi rápido para abandonar a mesa, mas os elevadores do Sesc não eram os melhores companheiros em uma fuga. Yue o encontrou atrás de um grupo de idosos que deveria ter escapado do pilates direto para uma boquinha na Comedoria.
― Se queria me evitar era só ir para a varanda ― Yue comentou, ajeitando a mochila no ombro. Lótus poderia socar aquele sorrisinho de canto, de quem estava se divertindo. ― Tenho medo de altura.
Ele pigarreou, dividido entre achar graça de como Lótus tinha cruzado os braços e batia o pé, impaciente, encarando o visor do elevador como se pudesse invocá-lo, e ficar preocupado de ter cruzado algum limite desconhecido. No meio disso, a memória do primeiro desenho ainda rodopiava em sua cabeça, como uma galáxia se espiralando.
― Vi seus desenhos sem querer ― explicou, andando quando uma primeira leva de pessoas conseguiu entrar no elevador, deixando-os para trás, para uma próxima tentativa. ― São bonitos.
― Claro que são ― Lótus concedeu de mau gosto, espiando Yue por cima do ombro.
Os desenhos eram uma coisa pessoal. O que ficara aberto à vista de todos, ainda mais. Lótus gostava de andar para cima e para baixo com um sketchbook porque o fazia parecer misterioso, mas odiava que vissem seus desenhos.
― Acho que sonhei com um deles ― Yue continuou. Lótus apertou os braços contra o peito, ignorando a onda gelada no estômago. ― Aquele de página dupla. O que parece um redemoinho.
O som do elevador chegando ao andar os distraiu pelo tempo de serem arrastados pela massa de pessoas, empurrados para um cantinho no fundo. Yue virou de frente para Lótus, servindo de barreira entre ele e os outros, abrindo um espaço que quase poderia ser confortável, em termos de elevador lotado. Lótus não estava acostumado a muitas gentilezas. Aquilo foi doce.
― É uma ilustração abstrata, vai parecer com qualquer coisa. ― Lótus revirou os olhos, puxando Yue para mais perto pela camisa. Já que estavam ali, não custava tirar uma casquinha.
Aquele sujeito tinha olhos sérios. Qualquer um ficaria intimidado, mas Lótus estava procurando outra coisa. A fagulha. Aquela promessa de tempestade que achou entrever quando o viu pela primeira vez, na casa de Tomás. Lótus sempre foi como o vento incitando o fogo. Gostava de estimular as chamas, de transformar um foco controlado em um incêndio. Até agora, sua melhor parceria tinha sido com Tomás, mas…
Pelo canto do olho, viu que estavam a três andares do térreo. Com um riso preso nos lábios, enroscou as mãos na camisa de Yue, ficando na ponta dos pés para alcançar a boca dele. Não foi um beijo, mas uma mordida. Lótus prendeu o lábio inferior dele entre os dentes numa mordida que tirou de Yue um suspiro.
― Por ter espiado minhas coisas sem eu deixar ― Lótus sussurrou, empurrando-o de levinho para longe na direção das portas abertas do elevador.
A pressão dos dentes de Lótus em seus lábios deixou uma dorzinha residual que Yue não soube definir se era boa ou ruim. Certamente era o tipo de impressão que perduraria, o que também combinava com o rapaz.
― Vai pro metrô? ― Yue perguntou, caminhando ao lado dele.
― Agora não ― Lótus respondeu depois de checar as horas e decidir que era cedo demais para voltar pra casa. ― Vou descer até a Augusta e dar uma olhada nas lojinhas.
Do lado de fora, foram recebidos por um vento constante e frio. Lótus se encolheu com um resmungo, resgatando de dentro da mochila uma parka igualmente cor de rosa, que logo tratou de vestir e apertar ao redor de si.
― Tu não sente frio não? ― questionou, de olho em Yue, que caminhava naquela friaca sem uma jaquetinha sequer.
― Raramente.
Mas bem que deveria estar usando alguma coisa quente, Victor diria. Desde o começo da semana, Yue sentia uma dorzinha fina e constante nas articulações, um prenúncio de resfriado. Em algum momento da vida, só começou a ignorar os sinais do corpo, tão constantes eram os momentos em que adoecia.
― Viu… ― Lótus começou. ― Eu também sonhei com aquilo lá, sabia? O desenho. É desde que me entendo por gente, isso. Os sonhos. Sonhos nada…
― Mais pra um pesadelo ― Yue completou, vendo Lótus concordar com olhos sombrios.
As cores, os sons, a desesperança. Pensando em retrospecto, Yue também sonhava com esses elementos há bastante tempo, mas quando acordava tudo o que sobravam eram vestígios, nada que fosse palpável. Lótus era um artista. Conseguiu capturar melhor o que para Yue não passava de um mistério.
― A gente é o quê então, menino? Almas gêmeas? ― Lótus brincou.
― Na minha cultura, Yue Lao une as pessoas destinadas usando um fio de seda vermelha ― Yue se pegou comentando.
― O Yue que eu conheço não consegue nem falar que tá a fim do carinha que tá a fim. ― Lótus ria, mas havia um quê de interesse em sua expressão, na forma como seu corpo se voltava na direção dele. ― Isso aí é tipo o akai ito dos japoneses?
― Tipo isso.
― E as pessoas destinadas têm pesadelos gêmeos também ou você só quis se exibir um pouquinho? ― A provocação fez Yue rir. Lótus bateu o ombro de levinho contra ele, sorrindo.
― Me exibir um pouquinho também ― Yue admitiu ―, mas lembrei que Yue Lao vive no lado escuro da lua, perto do submundo. Observando os humanos. Decidindo quais casais vão se formar, quais não. O pesadelo te faz pensar nisso?
Não em casais e romance, mas em uma verdade obscura, em decisões tomadas contra a vontade alheia. Em deuses rigorosos.
Inevitável.
Yue tornou a pensar sobre aquilo.
― Olha, se algum deus estiver querendo me mandar algum recado ― Lótus virou-se para andar de frente para Yue, sorrindo quando ele o tocou de leve na cintura para evitar que tropeçasse ou esbarrasse em alguém ―, vai precisar ser um pouco mais direto.
Com um giro, Lótus os levou para o canto da calçada, envolvendo o pescoço de Yue com os antebraços. Gostava de como ele era mais alto, e do cheiro suave de sua pele sob uma leve camada de suor. De perto, Yue tinha olheiras visíveis e uma expressão cansada. A gola da camisa estava um pouco esgarçada e o cabelo, meio grudado atrás das orelhas, sugeria um dia cheio. Os olhos continuavam afiados, contudo.
Lótus sabia pouquinho sobre aquele cara, mas já poderia afirmar que sua coisa favorita sobre Yue era o quanto ele era humano.
― Me beija? ― pediu, manhoso, passando as unhas no pescoço de Yue.
― O Tomás… ― ele começou, confuso.
E nem entendia muito bem a própria confusão, agora. Ao longo da semana, escreveu e apagou uma mensagem para ele várias vezes. Sempre que pensava em enviar, achava que as palavras estavam erradas, ou simplesmente era atropelado pela rotina. Vi tinha sido claro sobre poderem ficar juntos, e Yue gostava da ideia. Gostava demais. Isso não tornava mais fácil dar o primeiro passo.
E agora estava ali, travado novamente, encarando um Lótus risonho. O Tomás… Ele e Lótus também tinham alguma coisa, certo? E todo mundo parecia confortável com aquilo, só esperando que Yue desse mais um passo e se juntasse ao círculo. Ninguém o esperaria pra sempre.
― Me beija, abestado ― Lótus exigiu entre risadas. ― Eu faço o Tomás te desculpar por me beijar antes dele.
Meio rindo, Yue encaixou a mão na nuca de Lótus, trazendo-o para perto. Havia um conforto na presença de Lótus que era diferente: ele não era o cara por quem estava apaixonado desde a adolescência, tampouco o carinha que havia parecido inalcançável por meses. Era só… Um rolo normal. Alguém que queria um beijo seu e pedia por isso. Alguém que o deixava confortável.
Lótus roçou os lábios contra os dele, ameaçando-o com uma nova mordida. Yue se afastou, sorrindo de ladinho, desviando quando Lótus tentou buscar sua boca novamente.
― Sem morder ― sussurrou, correndo os dedos pela nuca de Lótus. ― Bonzinho.
O pedido pareceu girar alguma chavinha dentro do rapaz. Lótus se encostou em seu peito, mais molinho, fazendo que sim com a cabeça. Aceitou com um suspiro o toque gentil da boca de Yue e o outro, mais malcriado, quando a língua dele procurou pela sua. Sequer reclamou quando Yue girou os dois, pressionando seu corpo contra o muro do prédio.
O cheiro de gengibre do perfume de Lótus queimou as narinas de Yue, lembrando-o do inverno em Yunnan. Lótus não se parecia nadinha com algo nascido durante o inverno, no entanto. Era uma criatura solar, cuja presença se expandia feito as raízes de uma planta invasora. Ele suspirava durante o beijo, agarrando-se à nuca de Yue como um náufrago, impedindo-o de se afastar. Por sorte, seu beijo era gostoso o bastante para que a ideia sequer passasse pela cabeça de Yue.
Os termômetros na avenida indicavam que estavam chegando aos dez graus. Os dois não tinham ideia disso, unidos em uma bolha de calor com cheiro de gengibre e cappuccino.
― Não… ― Lótus resmungou, tentando puxá-lo para perto novamente. Yue tinha quebrado o contato depois de um tempo que parecia infinito, mas não o suficiente. ― Larga o celular…
― Pode ser meu pai ― Yue explicou baixinho, calando as reclamações com um beijo suave. ― Espera.
Sempre olhava as notificações assim que o celular vibrava, mesmo que as chances de a tia enviar uma mensagem fossem pequenas. Em caso de problemas, ela ligaria, mas Yue preferia pecar pelo excesso de zelo.
― O que é? ― Lótus tentou espiar a tela, curioso, ao ver Yue explodir em uma risada.
Ele ergueu o celular, mostrando a selfie que Tomás tinha mandado, e a legenda logo embaixo. Depois de revirar os olhos para aquele galalau de omegaverso com quem Tomás insistia em sair, Lótus acabou rindo também.
― Responde ele ― disse, trazendo Yue de volta para perto. Lótus riu com o rosnadinho de Yue ao ganhar uma mordida breve no pescoço. ― Vai, resolve isso.
Assentindo, Yue começou a digitar uma mensagem. E desistiu no meio, voltando a guardar o celular.
― Ah, não! ― Lótus protestou. ― O que foi agora, meu deus?
― Tive uma ideia melhor. Mas preciso ir pra casa. Tudo bem?
Fazendo bico, Lótus concordou, não sem antes erguer o dedo para pedir só mais um beijo.
― Tu não vai ficar me enrolando assim, né? ― questionou, a boca pressionada na de Yue. ― Vai me chamar sair, e logo.
Yue lembrou de si mesmo poucos dias atrás, falando alguma coisa parecida para Vi. Ele riu, prometendo num sussurro que não, não enrolaria, pouco antes de mergulhar em mais um beijo.
━━━━━━ • ✿ • ━━━━━━
O balanço do metrô trouxe de volta o sono acumulado de Yue. Tinha uma cartela de Zolpidem intacta na gaveta. O remédio funcionava, e bem. Era por isso que evitava usá-lo. Yue apagava sempre que se medicava, e nunca poderia ter certeza de que a madrugada seria tranquila, sem nenhuma emergência do pai. Já tinha passado por duas situações desconfortáveis assim, de modo que preferia sofrer com as crises de insônia a resolver com medicação.
Mas se tudo parecesse certo em casa, quando chegasse, iria do banho direto para o sono pegajoso dos hipnóticos.
“Vou me dopar pra dormir”, avisou ao Vi por mensagem. “A tia pode te ligar se der merda?”
“Pode!”, Victor respondeu em minutos. “Quer que eu vá dormir aí?”
“Se você vier, eu não durmo.”
“Quem é você, seu ET safado, e pra onde levou meu Yue?”
Yue riu. Gostava de meu usado naquele contexto e gostava de Vi evitando comentar sobre a selfie, aguardando seu sinal. Na mão, carregava a sacolinha de uma padaria simpática onde Lótus o levou depois que Yue contou sua ideia.
Não passava das nove, mas ele quase reconsiderou seu plano depois de tocar a campainha da sobreloja. Na luz mortiça da rua, a placa da Pedacinho de Céu mais parecia um aviso triste.
Foi Tomás quem apareceu, depois de Annchi espiar pela janela e avisá-lo que “o seu amigo caladão tá lá embaixo com cara de filhote”.
― Oi… ― Yue esboçou um sorriso. ― Desculpa o horário. E aparecer sem avisar. É rápido.
Apertando as laterais da porta, Tomás procurou por uma resposta que não veio antes de Yue oferecer a sacolinha em sua direção.
― O que é? ― acabou perguntando, dando um passo para a rua.
O cheiro doce o atingiu primeiro. Abrindo a sacola, Tomás encontrou uma caixinha e, dentro dela, vários pãezinhos açucarados, pequenos e redondos, cobertos por uma camada de mel e amêndoas.
― Eu adoro esses! ― Tomás riu, buscando os olhos de Yue. ― Como sabia?
― Pareceu certo… ― Yue ergueu os ombros. Achava que Lótus não tinha escolhido aquela padaria por acaso, mas a escolha dos pãezinhos foi sua. Lótus não tinha discordado. ― Gostei da foto ― completou.
Apertando a sacola contra o peito, Tomás esperou pelo resto. Queria esconder a ansiedade, mas não achou que conseguiria. Já tinha dado mais um passo na direção de Yue, surpreendendo-se quando ele o tocou nos cabelos, deslizando um carinho ao redor de sua orelha.
― Agora tô no limite da insônia, mas quero conversar com calma. Depois. Você quer?
― Sim… ― Tomás concedeu. ― Quando?
― Na próxima semana rola o Indiepira. Conhece?
Tomás fez que sim, segurando o riso ao ver a surpresa nos olhos de Yue por ele conhecer algo do tipo. Nos dois últimos anos, o Indiepira tinha virado uma das tradições de São Paulo, misturando as melhores coisas que aquela época do ano poderia oferecer: música caipira, bebidas quentes e comida de festa junina. Naquele festival de rua, tudo aquilo vinha misturado com a música alternativa de bandas indie da cidade. Ele e Lótus já estavam se preparando para ir, de qualquer jeito.
― Devo encontrar com o Vi mais pra noite, mas queria te ver antes. Só nós dois. E aí, mais tarde ― ele sorriu, tão honesto e aberto, que Tomás acabou por acompanhá-lo ―, nós três?
― Nós quatro? ― Tomás sugeriu, aos risos. ― Lótus deve ir também. Tudo bem?
― Nós quatro ― Yue concordou. ― Se eu desmarcar, me expõe como tóxico no Instagram.
― Eu vou mesmo. ― Matando a distância entre os dois, Tomás o beijou no rosto. Convenceria Yue a subir e ficar com ele pelo resto da noite se não fosse tão óbvio o quanto o rapaz parecia exausto. ― Obrigado pelos pães.
Depois que ele se afastou, Tomás voltou para perto da porta, mas só entrou depois que a silhueta de Yue sumiu na esquina. Seu celular vibrou na mesma hora, com uma mensagem de Lótus:
“Beijei seu boyzinho antes de você, mas levei ele pra te comprar doce na sua padaria favorita, tá? 🌸”
Continua…
No próximo capítulo… Kuí tem jeitos peculiares de flertar. Alguns deles envolvem morte mais do que deveriam. Prontos pra conhecer alguns personagens novos? Porque Yan precisa dar um pulinho em casa para visitar a família.
O Capítulo 20 — Uma canção sobre vida e morte chega no dia 16 de fevereiro às 12h!
Ei, vizinho! Não esquece de me acompanhar nas outras redes! 💫
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