💫 Pontes Imortais ― Capítulo 18

Eu fabrico destinos

Boa tarde, Vórtex! Já tô tão acostumado a chegar aqui nas sextas com o capítulo fresquinho de vocês. Uma pena que entramos em fevereiro, o que quer dizer que… O capítulo final da primeira temporada já chega no mês que vem! Aff, estamos tão perto de descobrir o que aconteceu lá naquela cena do prólogo. Vamos ver um pouquinho mais da treta em Farkas?

No capítulo anterior… Victor parece ter sido eleito o alfa lúpus de… uma gangue de cachorros de rua. Enquanto isso, Tomás estava frustrado por ter falado de mariposas-do-sereno numa aula de faculdade – uma “memória” que ele nem mesmo sabia que tinha. Lembram que no fim da última cena hot, entre Yan e Oz, um leva-e-traz tinha justamente vindo falar sobre um problema envolvendo elas? Vamos ver do que se trata.

A trilha-sonora de hoje é Beautiful Hell, de Adna!

Capítulo 18 — Eu fabrico destinos

Farkas, Pré-Hecatombe

― Estavam assim quando acordei, senhor. Mortas. 

O jovem agricultor tirou da cabeça a viseira de linho reforçado, num gesto de respeito. Sem o acessório, parecia ainda mais moço, o nariz grande e avermelhado sugerindo que tinha chorado antes de o Intendente chegar. 

Diante deles, a mariposa-do-sereno era uma mancha roliça e escura contra o solo da plantação de abóboras. Mais adiante, outra ocupava o vão que separava a plantação de batatas da de ervilhas. 

Os ventos da noite anterior tinham sido impiedosos, forçando os farkasianos a se abrigarem com as janelas fechadas, coisa que não era comum em uma cidade tão abafada que transformava qualquer brisa em um evento. O Intendente, que era quase tão jovem quanto o rapaz que o havia chamado, tornou a olhar as asas dos animais. Dobras dolorosas marcavam o maior dos pares de asas, envergando-as. Nas asas da mais próxima havia ainda grandes buracos de formato irregular, semelhantes a queimaduras. 

― É a primeira vez por esses lados ― o agricultor continuou, ajoelhando-se ao lado do oficial. ― Mas lá pras bandas dos ranchos de arroz tem gente falando que as mariposas tão morrendo de monte. Isso aí não é culpa do vento, não ― concluiu, apontando o estado das asas. 

Mariposas-do-sereno eram parte essencial do ecossistema de Farkas. Suas asas potentes traziam ventos que ajudavam no processo de polinização e brandas chuvas geladas, perfeitas para amenizar o mormaço. Do tamanho de um cachorro de grande porte, poderiam viver por muitos anos. Os ranchos mais tradicionais batizavam as mariposas que circulavam suas plantações com frequência, às vezes marcando as maiores com sinalizadores coloridos para que soubessem com antecedência a rota dos animais e pudessem se preparar para os “ventos de reprodução”, os mais fortes, que espalhavam pólen por muitos hectares. 

― Senhor Intendente ― baixando a voz até um sussurro de confidência, o rapaz prosseguiu ―, será que a doença que levou os velhos líderes tá se espalhando? 

― Não seja tolo ― o Intendente redarguiu. ― Se a doença dos velhos líderes fosse contagiosa, teria atingido primeiro o Hall da Conflagração antes de alcançar esse pedaço do mundo. Pelo que me consta, o novo Mestre Farkas esbanja saúde. 

― Então é maldição de Nivaria. ― O jovem desenhou na terra seca um símbolo para espantar o mau-olhado. 

A origem daquelas mariposas era incerta. Os mais velhos especulavam que eram criaturas do vórtex, um tipo domesticado de Fronteiriço. Sendo verdade, só mesmo aqueles encantadores de monstros para fazer uma coisa assim, e quem garantia que a magia maligna dos nivarianos não acabaria se voltando contra Farkas, cedo ou tarde? 

O Intendente, que não era tão supersticioso, abanou a cabeça. Besteira, o gesto quis dizer, mas ele próprio não chegou a falar nada, atraído pelo barulho de motor vindo de um ponto à esquerda, na estrada. O transporte motorizado fora pintado com um extravagante tom de magenta, perfeito para as condições de baixa visibilidade do deserto, mas chamativo em excesso em qualquer outro lugar. 

― Pelos Imortais, o que essa gente do circo quer conosco? 

Aquilo era coisa da tal ópera, sem dúvida. Gente estranha que andava de um lado para o outro das cidades, sem pouso fixo, com suas bestas gigantes e aquela tenda que mais parecia ter vida própria. O Intendente não gostava dos artistas da ópera, como não gostava de ninguém cuja vida parecesse desregrada. Logo tratou de fechar a cara para expressar seu desagrado. 

Sentado no banco do piloto, Kuí conduzia o transporte, tendo Yan ao seu lado. Já no começo do dia, os boatos da trilha de mariposas mortas alcançaram os ouvidos do curandeiro. 

Gostava daqueles animais, em especial pelas memórias que traziam. Na primeira vez que Maali colocou os pés em Farkas, sério e irritadiço por culpa do calor, foram as mariposas que arrancaram dele um sorriso ― não antes de assustá-lo, fazendo-o puxar o arco e armar uma flecha, pronto para eliminar qualquer ameaça ao redor de Yan e Oz. Vá em frente, borboletas são muito ameaçadoras!, Oz provocara entre gargalhadas, gritando quando Maali pulou em seu pescoço em um ataque divertido. Yan, tira esse vândalo de cima de mim! 

Não havia mais brilho nos olhos de Oz e o sorriso que encontrou em Li’a era espinhoso. Os dois tinham se transformado em rocha estéril. Baixando os olhos para as próprias mãos, Yan se perguntou se seria capaz de trazê-los de volta à vida, transformá-los nas criaturas orgânicas que tanto amava. 

― Está triste por causa dos bichinhos, querido? 

Para Kuí aquilo não parecia mais que um passeio. Encontraram-se no pátio principal do Hall, Kuí rodeado pelos pequenos líderes de Farkas. Oz se recusava a recebê-lo ― se iria lidar com os diplomatas, seria do jeito e no tempo dele ―, o que não impedia o Instrutor de ser pajeado. Os mais velhos queriam apresentá-lo aos filhos e filhas, na esperança de arranjarem um bom casamento; os mais jovens desejavam conquistar um pedacinho de sua influência. Yan tinha corrido os olhos ao redor, em busca de Li’a, mas não a encontrara. Quaisquer que fossem suas atribuições diplomáticas, não pareciam se encaixar na mesma agenda das de Kuí. 

Ah, não, docinho, o Instrutor havia se aproximado, dispensando o séquito com um aceno entediado, por favor, diga o que eu preciso fazer pra te arrancar um sorriso

Assim Yan foi parar no banco de passageiro do transporte, parando em pequenas fazendas pelo caminho para investigar o que estava acontecendo às mariposas. 

― Estou triste porque não sobrou nenhum deles para ajudar. 

― Se quer saber minha opinião, os fazendeiros fizeram a coisa certa. ― Do topo da cabeça de Yan, Shu admirava a paisagem. Era a primeira vez em muito tempo que andava em um transporte motorizado. Aquele era quase tão bonito quanto os de Nivaria. E maior, certamente. ― Se for doença, jogar a carcaça dos bichos no fogo vai impedir de se espalhar. 

― Uma doença que derrubou dezenas de mariposas do dia para a noite? ― Kuí virou o rosto para espiá-los. ― É peculiar. 

― Já viu alguma coisa assim antes? ― Yan questionou, dando um gritinho em seguida. ― Kuí, a estrada! 

Ele voltou a encarar o caminho a tempo de frear quase em cima de uma família de patinhos, que atravessou a estrada gingando até desaparecer no matagal à esquerda. 

― Ah, que adoráveis! Eu deveria levar alguns deles comigo? ― O rosto cheio de expectativa mirou Yan, fazendo um bico ao ver o curandeiro negando. ― Você me frustra. 

― Deixe-os com a família ― Yan sorriu, tocando-o no pulso, o que pareceu deixar o diplomata satisfeito. 

― Sobre a sua pergunta, nunca vi nada assim, mas as doenças do deserto são diferentes e nossos bichos costumam ficar debaixo da areia. É difícil enxergar suas enfermidades. Docinho, abra seu sorriso de festa ― continuou, apontando para frente quando fizeram a curva para atravessar a porteira do rancho ― porque aquele Intendente ali está com a cara mais azeda que já vi desde que o novo Mestre Farkas me recepcionou no velório dos pais. 

Fosse pelo sorriso que recebeu, fosse por reconhecer em Yan o curandeiro pessoal de seu líder, o Intendente desamassou a careta. 

― Senhor Instrutor ― disse, recepcionando-os com uma reverência cortês. ― Jovem curandeiro. Não esperava encontrá-los tão longe do Hall. 

― Fomos informados sobre o incidente com as mariposas. ― Na ponta dos pés, Yan espiou o corpo dos animais, mais adiante. — Vim verificar a situação… em nome do seu mestre — complementou. Mencionar Oz agora era suficiente para fazer discípulos e funcionários até arrumarem a postura na sua presença.

Ao lado deles, um rapazote com ares de fazendeiro o encarava de volta, sem fazer questão de esconder a desconfiança que as orelhas de arminho de Yan causavam. Notando o olhar, Yan mexeu as orelhas, fazendo-o desviar a atenção por desconforto ou receio.

As memórias que as crianças e os jovens tinham de Nivaria eram emprestadas, fragmentos do diz-que-diz que os mais velhos apregoavam, entre copos de vinho de cevada ou aguardente. Era difícil precisar em que momento Nivaria deixou de ser o pólo de conhecimento das Cidades ― o lugar para onde todas as famílias enviavam os filhos, se quisessem que fossem bem instruídos ―, para se transformar num rival malévolo. Mesmo Yan, que estivera no olho do furacão, era incapaz de compreender de que forma suas esperanças foram arrasadas tão brutalmente. 

Em um dia, eram Oz, Maali e ele ― uma força imparável; noutro, Nivaria era uma nação de traidores, julgada e condenada, e Maali estava morto

A lembrança de orelhas de raposa pálidas e mornas na tenda da ópera o deixou nauseado. 

― Posso ver? ― pediu, sem esperar por uma resposta antes de se aproximar dos animais. 

O jovenzinho tropeçou nos próprios pés, afastando-se de Yan, decerto temendo que o nivariano amaldiçoasse sua família ou suas plantações. Yan pensou, segurando um riso amargo, que a única coisa que impedia o moço de empurrá-lo para longe de suas terras era a sombra da presença de Oz, que pairava por onde quer que andasse. 

― Quando você as encontrou? ― questionou, vendo o rapaz arregalar os olhos. Seu medo era um entretenimento ao qual podia se habituar um pouquinho.

― Umas… Umas poucas horas depois que o céu voltou a ficar claro, moço ― ele explicou, esforçando-se para não gaguejar. ― Aí mesmo, não mexi nem nada, pedi pra chamarem o Intendente. 

― Nas outras fazendas por onde passei hoje soube que queimaram os corpos assim que os encontraram. ― Com delicadeza, Yan examinava as asas machucadas, tão deformadas que pareciam papel amassado. ― Por que não fez isso? 

― Nas outras? ― O jovem trocou olhares com o Intendente. ― Tem mais delas mortas? Tudo de hoje? Que merda… ― Chutando o chão, espiou Yan e então desviou o rosto, evitando seu olhar incisivo. ― Parecia certo não, moço. Queimar as bichinhas. Podia ser doença. Pode né, até falei disso pro Intendente, mas não consegui. 

― Você fez certo. 

Dito daquela forma, no meio do caminho entre um sorriso e um sussurro, o tom de Yan ganhava vernizes de gentileza com que poucas criaturas estavam acostumadas. O jovenzinho esfregou as mãos na cara, tentando afastar o calor da vergonha que lhe tomou de súbito. Sua única resposta foi um aceno tímido. 

Ao lado do Intendente, Kuí o encarava, o rosto um pouco inclinado. As cobras descansavam em seus ombros como um lenço feito de carne. Ele deixou a atenção migrar aos pouquinhos para Yan, brincando consigo mesmo de adivinhar o que aquele bichinho adorável estaria tramando. 

Primeiro vieram os dedos, longos e delicados, manipulando as asas destroçadas dos animais. Então os braços, que entreviu assim que Yan puxou as mangas para cima, tentando facilitar o próprio trabalho. A mancha de queimadura em um deles era uma história que Li’a já havia contado. 

Então notou os olhos brilhando num laranja poente, dando a impressão de que queimariam ou derramariam gotas de âmbar líquido. É claro que Yan tentaria reviver as criaturinhas, como não adivinhou antes? 

― De que adianta trazê-las de volta se não poderão voar? ― Kuí questionou. 

Até onde sabia, mariposas-do-sereno nunca responderam à medicina escamoteada de Nivaria. Eram um dos poucos bichos incapazes de se tornarem híbridos.

― Não importa. ― A resposta de Yan veio temperada com vinagre. ― Posso me responsabilizar por elas. 

Agarrado ao topo da cabeça de Yan, Shu engoliu um comentário bem-humorado sobre ganhar irmãs que não tinha o menor propósito naquele momento. No passado, estivera em um lugar parecido: uma criatura revivida, machucada para além do remediável. 

― Docinho, de onde vem essa atração por coisas quebradas? 

Kuí se aproximou sem fazer barulho, ajoelhando-se ao lado de um Yan tão concentrado que não lhe deu atenção. Não chegou mais perto que a distância de um braço. Já suas cobras foram menos discretas, esticando-se até quase tocarem os cabelos de Yan. 

As asas do primeiro animal se mexeram, o corpo emitindo cliques baixos cuja frequência fazia Kuí pensar em dor. Yan deve ter chegado à mesma conclusão, pois remexeu a bolsa presa à cintura, tirando de lá um longo tubo de vidro repleto de fino pó dourado que se misturou ao verde-água das asas com a textura irreal de um sonho. Absorvido pelas escamas das asas, o material imprimiu-lhes largas manchas cor de ouro. 

― Por que se esforçar tanto? ― A curiosidade sincera de Kuí atraiu o lume dos olhos de Yan. 

― Porque só eu posso resolver. 

A mistura de generosidade e egolatria daquela resposta, da firmeza de Yan ao levantar e ir até o outro animal morto, da atenção focada que ele tinha ao trabalho, aquilo arrancou de Kuí um sorriso honesto. 

Não era uma doença. Seria tolo infectar animais tão importantes, decerto chamaria atenção demais quando os cadáveres dos velhos líderes sequer tinham esfriado, vítimas de uma enfermidade misteriosa. Farkas, contudo, era próspera em três coisas: crianças, colheitas e almas vingativas ― espíritos esperando por alguém que lhes ajudasse a ter sua desforra. 

Kuí era capaz de vê-los, sabia como atraí-los, tinha os meios para saciá-los. Convencer aquelas almas a matar as mariposas-do-sereno de dentro para fora foi simples. A ideia era apenas criar um pouco de caos, mas agora, vendo o quanto aqueles animais poderiam atrair a atenção de Yan… Kuí deixaria um rastro de cadáveres como prova de sua afeição. 

― Kuí ― Yan chamou. 

De alguma forma, suas roupas claras estavam intactas apesar de ter se ajoelhado na terra das plantações. A majestade de sua postura intimidava os dois outros homens que, de longe, foram incapazes de tirar os olhos do trabalho do curandeiro. O tipo de medo que Yan provocava não tinha relação com força, mas com poder. Qualquer um era capaz de matar, mas a vida obedecia a poucos. 

― Pois não, docinho? 

― Me ajuda a levá-las? 

― Você não pode levá-las ― o Intendente interrompeu, alarmado. ― São propriedade de Farkas.

Novamente de pé, Kuí jogou os cabelos para trás, rindo em deleite. 

― Ah, caríssimo, e o nosso querido curandeiro também. Não precisamos trazer o Mestre Farkas em pessoa para lembrá-lo de que Yan pode fazer o que bem entender, precisamos? ― Com o rosto inclinadinho, o diplomata fez com a mão um aceno displicente. ― Vocês são fortes, nos ajudem a levar os bichinhos até o transporte. 

— Quando eu disse que vou levá-las, eu quis dizer para o Hall — justificou Yan, com a voz baixa, mas um sorriso calmo no rosto, que demonstrava confiança apesar da negativa do Intendente. Tocando Kuí no pulso com um pedido silencioso, ele completou: — Agradeceria muito a gentileza da ajuda. Elas são pesadas. Mas, se for muito trabalho, eu posso pedir para que Oz venha comigo mais tarde.

A cartada surtiu efeito. O rosto do Intendente se contorceu, dando conta de sua luta interna até que, derrotado, ele concordasse com um aceno. 

O banco de trás do transporte era estreito, mas Kuí abriu espaço reclinando-o. O jovem fazendeiro trouxe uma manta de lã macia, cheirando a capim-limão. Pra elas ficarem confortáveis, explicou, empurrando-a para os braços de Yan sem encará-lo. 

― Ele tem medo de você ― Kuí cantarolou depois que o rapaz e o Intendente se afastaram. 

― Eu não saberia dizer o motivo. ― Yan balançou a cabeça. ― Talvez seja só um receio de ter que enxergar um nivariano como semelhante… Ei! ― Tocou o braço de Kuí, mexendo as orelhas abaixadas enquanto a cauda balançava suavemente. ― Posso te pedir mais um favor? 

― Quantos precisar, docinho. 

― Há mais ranchos seguindo a estrada. Podemos passar por alguns? Pra eu ver como estão as coisas. 

― Só tome cuidado com a superlotação de mariposas no banco de trás, querido. 

― E com os resmungos do cachorro louco quando a gente voltar com um carregamento de insetos. ― Shu finalmente decidiu se manifestar, aparecendo no ombro de Yan, cercado por uma cachoeira de cabelos escuros. ― Quero só ver onde você vai enfiar as madames todas. 

― Vamos dar um jeito, Shu. 

De volta ao carona, com Shu acomodado no colo e o veículo em movimento, Yan tomou coragem para fazer uma pergunta que lhe pinicava a ponta da língua há algum tempo. 

― Kuí, posso ver a Sereia novamente? Em breve? 

― Pode se referir a ela pelo nome de Li’a, docinho ― Kuí corrigiu, mantendo os olhos na estrada para não atropelar nenhuma família de patinhos fofos. ― E não. ― Pelo canto dos olhos, tentou capturar a expressão de Yan. ― Ela pediu para avisar que não pretende te ver de novo. 

Um soco doeria menos. Lutou por anos para conquistar seu espaço em Farkas. Um nivariano fraco, ascendido ao posto de maior figura de confiança do líder, andando lado a lado com Oz. E a perspectiva de que Maali o via como um traidor o nauseava.

― Yan… ― Shu começou, calando-se ao vê-lo pedir silêncio com um gesto. 

Dos três, Yan sempre foi o melhor para lidar com a dor ― ela não o enfurecia nem o imobilizava; olhar aquele abismo não mudava a natureza de sua alma. Era o que fazia agora, pegando cada uma das pontinhas de sua mágoa para vergá-las, como faria com uma dobradura de papel, até que coubesse na palma da mão.

Se Li’a achou que seria fácil evitá-lo, em breve perceberia o quanto estava enganada. 

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― Garoto… ― Oz chamou uma vez. Mesmo antes de receber qualquer resposta, bateu a caneca contra a mesa, seu rugido acompanhado pelo som de metal chocando-se com madeira. ― Garoto!  

― Mestre Farkas! Pois não? 

O garoto era pouco mais que um fiapo, desse tipo de adolescente em que as espinhas acumuladas deixam o rosto ainda mais infantil. Vestia-se bem, com a túnica e as calças num tom mortiço de azul, o emblema da casa de vinhos bordado do lado esquerdo. 

― Em qual temperatura eu prefiro meu vinho? ― Oz questionou, cruzando os braços sobre a mesa. Seu olhar era limítrofe. Uma palavra errada e seria a fagulha que incendiaria tudo. 

— Gelado, mestre — respondeu o garoto prontamente, com o rosto abaixado e a voz trêmula.

Oz assentiu, então mergulhou a ponta do dedo no líquido e logo depois deixou ecoar um rosnado baixo do fundo da garganta. Aos olhos do garoto, o líder assemelhava-se a um gigante quando se ergueu, o topo do crânio de lobo quase tocando uma das graúdas luminárias de papel presas ao teto. O horror impediu o rapaz de gritar quando Oz jogou vinho sobre ele, agarrando-o pela gola da túnica em seguida. 

― Parece gelado pra você? ― Oz questionou. 

Diante dele, o garoto pálido movia a boca em busca de palavras que não vinham, ganhando uma expressão de peixe morto. 

― E por que está vestido assim? É algum tipo de piada? 

Azul para os nobres sempre parecera a Oz uma idiota extravagância de seu pai, mas lá estava ele agora, rosnando para um menino que sequer tinha metade do seu tamanho. Se pudesse ver a si mesmo de fora, se sentiria ridículo.

Foi bem como se sentiu quando uma pálida mão ornamentada com garras de vidro pousou sobre a sua. A voz que a acompanhou era aveludada como um abraço morno. 

― Mestre Farkas, o jovem Liu é meu amigo pessoal. Posso apelar para a sua gentileza? 

Apesar da máscara demoníaca cobrindo parte do rosto, dando-lhe o aspecto de uma fera, Oz entendeu que Li’a sorria quando a encarou. Os olhos cinzentos cintilavam como estalactites iluminadas por uma nebulosa fonte de luz. 

― Madame… ― ele disse, soltando o rapaz que, de tão assustado, sequer saiu do lugar.

― Tome… ― Li’a soltou a faixa de tecido mole que trazia presa à cintura. O vestido se abriu em camadas fluidas, dando a impressão de que ela se agasalhava com nuvens. Entregou a peça ao garoto, insistindo quando ele tentou negar. ― Vá se enxugar, rapazinho. Diga ao seu chefe que seria auspicioso se ele reservasse um garçom mais experiente para cuidar dos pedidos do Mestre Farkas. Peça uma nova caneca de vinho, sim? Bem gelada. 

― Não precisava se preocupar comigo, Madame ― Oz comentou, abrandando a voz depois que o garoto sumiu nos fundos do estabelecimento. 

― Ah, eu não fiz isso por sua causa, Mestre. ― Li’a encarou a poça de vinho que se espalhava devagar pelo chão, as sobrancelhas erguidas em desagrado. ― Só queria evitar mais bagunça no meu bar favorito. Pode nos poupar do espetáculo de um lobo furioso por uma hora ou duas? 

Oz crispou os lábios, primeiro irritado e em seguida, ao perceber o lampejo jocoso daqueles olhos, abrindo um sorriso. Logo atrás de Li’a estava uma mocinha cuja cabeleira de cachos vermelhos o fazia pensar nos fogos de artifício do Festival das Luzes. Ou em carnificina. O sorriso dela era cheio de dentes afiados. 

― Posso acompanhá-las? 

― O que acha, Tapisa? ― Li’a consultou a moça, batendo uma das garras vítreas contra a superfície da máscara. 

― É um convite de paz mesmo, tio? ― Tapisa o encarou, as narinas se alargando enquanto parecia farejar o ar em busca de algum perigo. ― Senhora, ele ficou todo dodói porque o coitado do Liu tava vestindo aquele uniforme azul fuleiro. O que vai dizer das suas roupas? 

― Ah, as minhas roupas fazem de mim sua inimiga, Mestre Farkas? ― Brincando com as dobras de tecido turquesa, Li’a emendou uma risada brejeira. ― Posso tirá-las, se for o caso. 

― E não me escutaria reclamar, Madame ― Oz emendou, divertindo-se. ― Mas sim, era uma proposta de paz. Para limpar seus olhos da má impressão que te causei. 

― Li’a ― ela disse, apontando uma mesa ampla diante de um dos janelões. ― Use meu nome, eu imploro. Perco dez anos de vida a cada vez que me chamam de madame.

Era uma sorte tremenda encontrar Oz sozinho na cidade. Kuí alertara para o fato de que desde o velório de Juno e Ravi, Yan sempre estava ao lado dele, como um cão de guarda. Você teria achado perturbador, meu amorzinho, encará-los daquele jeito, de mãos dadas, trocando olhares cúmplices, compartilhando sussurros, Kuí segredou, uma mão gentil afagando-a entre os cabelos. 

Todos os dias, Li’a era assombrada pela realidade de feridas que nunca se curavam. Estavam em seus olhos quebrantados e na raiva agreste habitando-lhe o peito. Também estavam em cicatrizes que se abriam como flores sangrentas, em ossos que doíam como se guardassem a memória de quando foram quebrados, em pesadelos vívidos a ponto de fazê-la gritar por horas mesmo depois de acordada, agarrada a Kuí, seu único porto seguro. Yan também havia perdido coisas com a queda de Nivaria. Amigos, família. Um noivo. Muitas de suas feridas se encaixariam nas de Li’a, peças do mesmo quebra-cabeças, mas tinha a impressão de que as dele estavam curadas. Yan parecia ter enterrado algo que nunca morreu. 

― Nesse caso, vai ter que parar de me chamar de Mestre. ― Oz a trouxe de volta dos pensamentos, tocando-a suavemente no ombro para conduzi-la até a mesa. 

Yan sabia que aquelas mãos só pararam de socar Maali quando Oz achou que ele estava morto? Se sabia, vivia em paz com a ideia? 

Para fingir um jogo de recato, Li’a afastou-se do toque com uma risada doce, olhando para trás para que Oz entendesse que ele poderia tocá-la sim, em algum momento. Um que ela determinasse. 

― Isso seria indecoroso. ― Segurando as camadas do vestido, Li’a sentou-se com Tapisa ao lado e Oz diante de si. ― Posso experimentar, Oz. 

O som viajou até os ouvidos dele. Oz, sussurrado e vibrante. Oz, como se ela o estivesse acariciando com as pontas daquelas garrinhas, deixando marcas em sua pele, fazendo de toques, promessas. 

― Desse jeito vai acabar quebrando a mesa, tio ― Tapisa comentou entre risinhos. Oz apertava a borda da mesa com tamanha força que um pedaço da madeira chegou a trincar. 

Uma palavra dita por aquela Sereia e Oz já queria apertá-la nos braços, pressioná-la contra a parede, tirar-lhe a máscara para beijá-la. A falta de modéstia na postura dela só apimentava as coisas. Li’a tinha um jeito pedante e relaxado de se sentar, mantendo um cotovelo apoiado à mesa, a mão livre brincando com ondas de cabelo cor de neve. Estava ciente do desejo dele, Oz sabia, o tipo de consciência que não tem medo da exposição. 

Oz gostava daquela arrogância ― era um pendor amargo que havia adquirido no começo da juventude aquele de desejar criaturas esnobes. 

― O que devo pedir para bebermos, Li’a? 

― Não vim para beber, meu bem. ― A resposta pegou Oz de surpresa, fazendo-o erguer as sobrancelhas espessas em uma interrogação que ela logo tratou de esclarecer: ― Seria tolo da minha parte beber em um lugar público, embora a ideia seja agradável a ponto de quase me fazer esquecer dos protocolos. 

― Mas você disse que esse é o seu bar favorito… ― A confusão de Oz arrancava mais risadinhas de Tapisa. ― Perdi alguma coisa? ― Ele firmou os olhos na garota, franzindo o nariz em uma careta. 

― Tu não entende nadinha de diplomacia, entende?

A garota apoiou o queixo nas duas mãos. Vista de longe, usando vestidos cujas anáguas pesadas não combinavam com o clima de Farkas e laços hiperbólicos nos cabelos que já eram exagerados, parecia o tipo de criadagem tola que a maioria dos diplomatas parecia preferir. Aqueles olhos espertos, no entanto, contavam outra história. Os braços fortes e as mãos calejadas, cheias de pequenos cortes, também. Oz não era a mais atenta das criaturas, mas sabia reconhecer os sinais de alguém experimentado em batalhas. 

― E você entende por acaso, pirralha, ou é só uma leva-e-traz? ― ele rebateu, mostrando o dedo do meio ao vê-la rosnar, expondo os dentes afiados. 

― É o meu bar favorito porque fica perto do centro da cidade, Oz. ― Li’a veio em seu socorro, divertindo-se com a conversa deles. ― Tem um bom vinho, que não custa muitas moedas, de forma que pode ser frequentado pelos líderes ou, pelo menos, por seus filhos mais jovens, mas também é uma parada interessante para pequenos oficiais e serviçais importantes. 

Ela colocou o cabelo atrás das orelhas em um movimento charmoso, expondo o alargador de osso em uma delas. 

― Saber ouvir é um talento, meu bem, mas saber onde ouvir, isso é um dom. Veja… 

Oz acompanhou com os olhos até onde Li’a apontava discretamente: um grupo de jovens banjorianos gesticulava animado, cercados por algumas garrafas de vinho, já secas. Oz recordava-se vagamente deles durante a cerimônia de despedida dos pais, embora não fosse capaz de lembrar se chegaram a conversar.

― São jovens mestres da província banjoriana de Bismurtia ― Li’a segredou. 

Inclinara-se sobre a mesa para espiá-los também. O perfume dela era… Picante. Foi a palavra que ocorreu a Oz enquanto mexia o nariz, não exatamente incomodado com o cheiro, mas confuso, acometido pela sensação de que deveria lembrar-se de algo com um perfume assim. 

― Eles ficaram encantados com Farkas, mas acham que o clã principal os recepcionou de um jeito muito… estéril ― ela continuou. 

― O que esperavam, uma festa? ― Oz rebateu, erguendo a voz. 

― Era exatamente o que esperavam, meu bem. ― Li’a riu, fazendo um gesto para que ele se acalmasse. ― É como são os velórios em Banjora, não sabia? 

Não lembrava. De repente, Oz se sentiu muito bronco diante daquela mulher que já havia percorrido inúmeras vezes todas as Cidades e valsava por salões de festa e gabinetes de governo, determinando o rumo das coisas. Ele se mexeu na cadeira, inquieto. O que o impedia de arranjar uma desculpa e sair era o magnetismo de Li’a sobre seu corpo. 

― Quando alguém morre em Banjora, o corpo é levado até a pira da cidade ― ela prosseguiu. O tom professoral abundava tamanha gentileza austera que fez Oz se sentir um jovenzinho de novo, em alguma das salas de aulas mais rigorosas que havia frequentado. ― Os familiares são presenteados com frutas e pães frescos, e ficam ao lado do corpo para cuidar dele, vestir suas roupas favoritas, contar as histórias de que o defunto mais gostava. Às vezes as famílias brigam, noutras caem em uma desesperança tão profunda que são incapazes de segurar as lágrimas, mas todas as noites a cidade inteira mergulha em música e dança, até que a família decida acender a pira e dar fim à despedida. Vendo por esse lado, o que você ofereceu aos banjorianos foi patético. 

Fosse qualquer outra criatura, teria arrancado de Oz uma reação hostil. Ele nem mesmo escondeu a expressão contrariada, portanto foi uma ótima hora para outro garçom se aproximar com uma grande caneca de vinho que suava de tão gelada. 

― Mestre Farkas ― o homem disse, cheio de reverências aos quais Oz respondeu com um pigarro e um gesto enfático para que se afastasse. 

― Você fala como se quisesse começar uma guerra, Madame ― Oz murmurou depois de banhar as ideias com um generoso gole de álcool. 

― Se as minhas palavras o incomodam, Mestre Farkas… ― Li’a começou, levantando-se com uma graça circunspecta. 

― Sente. Eu não disse que você podia ir embora ― o líder rosnou, erguendo os olhos até encontrá-la. 

Uma lembrança saltitou entre as muitas memórias de Oz. Havia uma lenda nivariana que os anciãos gostavam de contar quando as noites se alongavam por tantos dias que qualquer criatura comum temeria nunca mais voltar a ver luz. É quando a Bruxa Nevada caminha entre nós, diziam suas vozes sibilantes, cujos tons se alternavam entre sussurros e bramidos. A Bruxa Nevada, cuja magia a fazia maior que o maior dos homens, e queimava o medo ao olhá-lo de frente. 

Vista de pé, com o queixo erguido e uma sugestão de sorriso nas ruguinhas dos olhos, Li’a parecia ainda mais alta do que já era. Parecia gigantesca, e Oz não tinha certeza se era alguma magia ou se apenas não estava acostumado a ser olhado de cima. 

― Mestre Farkas, eu obedeço apenas a mim mesma ― ela disse, fazendo escorregar das mangas uma bolsinha de dinheiro bordada com flores. Tirou algumas moedas douradas, colocando-as diante de Tapisa. ― Venha comigo. 

Era uma ordem, envolvida em camadas mornas de doçura. Tapisa levou um segundo para entender que Li’a falava com Oz, e não com ela, fazendo menção de levantar-se para acompanhá-los. 

― Você não, criança ― Li’a tocou-a no ombro, fazendo a menina sentar novamente. 

― Senhora, eu prometi pro maluco que ia ficar contigo o tempo todo ― Tapisa resmungou, exaltada. 

― Oz vai estar comigo. Não vai, Oz? É proteção o suficiente. ― A diplomata riu, tocando as moedas na frente de Tapisa. ― Pague a bebida do Mestre, menina. Uma gentileza da Ópera. E compre alguma coisa gostosa para comer. Compre ― reforçou, a seriedade do olhar tornando-se dócil ao oferecer a mão para Oz. 

Só depois de uns minutos ele percebeu que estavam do lado de fora do bar, Li’a com o braço enroscado ao seu. Na outra mão, Oz ainda carregava a caneca de vinho e, bom, já que estava ali… 

― O que você pretende fazer? 

― Eu? ― Li’a o espiou de canto. ― Eu vou mudar a sua vida. 

Oz explodiu em uma risada generosa, atraindo olhares que não o incomodaram daquela vez. Mais cedo, quando acordou sem Yan ao lado e sem que nenhum leva-e-traz soubesse informar onde ele tinha ido, sua fúria foi tamanha que causou enorme rebuliço no Hall. 

Percebeu os olhares, é claro. Não era tolo. Aquelas pessoas encaravam-no como Ravi o pintou: como um garoto imaturo e inexperiente, despreparado demais para as responsabilidades de comandar uma Cidade. Talvez fosse mesmo, tão desprovido de política quanto havia sido armado de agressividade. Era mais uma coisa para colocar na conta do pai, que nunca se dignou a criá-lo para ser mais do que um par de punhos inconsequentes.

― Um tostão pelos seus pensamentos… ― Li’a pediu. Seus dedos longos brincavam pelo braço de Oz, fazendo desenhos imaginários. 

― Eles me odeiam. ― Oz se percebeu grunhindo uma resposta, acompanhada de um riso que nem passava perto dos olhos. 

― Eles quem, Oz? 

― Todos! ― vociferou, por pouco não atirando para longe a caneca que carregava. Os curiosos desviaram o olhar. ― A criadagem no Hall, as pessoas na rua, os pequenos líderes metidos a besta que querem me ensinar como ser um Farkas! 

Li’a estava conduzindo os dois por uma rua menos movimentada. Árvores com amplas copas laranjas produziam uma sombra bastante agradável, diminuindo em alguns graus o calor sufocante da cidade. Dos galhos mais baixos pendiam frutos verdes que nasciam em cachos pesados. A diplomata pegou um deles. O fruto era uma cápsula com espinhos maleáveis que se abria para revelar uma polpa dourada, conhecida por ser tão refrescante quanto uma pedra de gelo. 

― Já tentou medicar um gato, Oz? ― Li’a ofereceu uma das bandas do fruto para Oz, pescando pedacinhos da outra para comer. 

A pergunta pareceu tão fora de contexto que ele não soube o que responder. Tinham chegado a uma praça circular e pequena, um oásis de árvores no centro do qual um chafariz espalhava gotículas d’água. Li’a sentou-se nas proximidades, tão perto que logo suas roupas começaram a umedecer. 

― Se tentar forçá-lo ― ela prosseguiu, lambendo os dedos sujos com vestígios da fruta ― o gato vai espernear, arranhar e vomitar o remédio. É mais fácil macerar a medicação para misturá-la à comida, então sentar ao lado do bicho e oferecer carinho enquanto ele come. 

― Onde você quer chegar? 

Ela tocou os dedos da mão dele. As garras artificiais eram mais duras do que Oz imaginara a princípio, feitas de um material gelado que se assemelhava a vidro. Li’a contornou-lhe as marquinhas nos nós dos dedos, acompanhando o mapa de arranhões e machucados. Balançava a cabeça, parecendo entender algum tipo de história a partir daquelas cicatrizes. 

― Força pode derrubar muralhas de pedra, Oz, mas a resistência das pessoas costuma ser feita de bambu: verga, mas demora a ceder. Quanto aos gatos: eles são imprevisíveis, quase sempre. Agressivos, se acharem que devem. Você é um jovem líder. Veja seu povo como um grande grupo de gatos. Agir como um tutor mais do que como um lobo pode atrair resultados melhores, não acha?

Li’a trouxe a mão de Oz para mais perto, roçando-a contra a lateral do rosto. Foi um gesto íntimo, ampliado pelo cenário: as árvores que os escondiam, o ruído constante e amigável do chafariz, o vestido dela, salpicado d’água. 

― Posso te perguntar uma coisa? ― ele pediu depois que Li’a soltou sua mão, deixando uma impressão fantasma contra sua pele de que se lembraria pelos próximos dias. ― O que você faz, afinal? Para que te chamem de Sereia. Ou para que precise se esconder atrás dessa máscara. 

― Eu fabrico destinos, Oz. Os bons. Os ruins. Os terríveis

Os olhos de Li’a se alongaram na direção do chafariz, mas pareciam enxergar além dele.

Foram anos se preparando, dois deles apenas para se recuperar das piores sequelas que o ataque à Nivaria deixara em seu corpo. Uma trupe itinerante de forma alguma era o melhor lugar para cuidar de alguém tão doente, mas Kuí buscou por curandeiros e beberagens, por qualquer coisa que a influência da Ópera pudesse conseguir. Como combustível, Li’a havia usado raiva. 

A raiva impediu Li’a de mergulhar em um oceano de melancolia. De morrer, de se entristecer, de sentir. Maali teria atravessado os portões de Farkas para exigir retaliação, sem medir as consequências. Naquela época, sua alma era como uma fonte termal: calor em meio à aspereza dura da neve. Maali seria capaz de entender, mas a dor que experimentou estava além da compreensão. Deixar portas abertas para desculpas e explicações era um erro. Tornar-se Li’a era sua armadura. Li’a conseguiria conter a vontade de voar sobre Oz e arrancar com os dentes grandes nacos de sua carne. Ela conseguiria mentir. Conseguiria matar. 

Era como a Bruxa Nevada. 

― Deixe que eu te ajude ― Li’a pediu. Como se voltando de um sonho, ela tornou a olhá-lo. ― Com as picuinhas, as especulações, a rebeldia dos pequenos líderes. Qualquer criatura se abre com a chave certa. Eu imagino que você tenha conselheiros valiosos, mas eu sou boa encontrando chaves. E gostaria de experimentar lealdades novas… Você quer?

Aquela sombra de sorriso que Oz só imaginava o deixava desconcertado. Aceitar a ajuda de Li’a era aceitar a ajuda da Ópera e de seu irritante Instrutor, mas ela abria aquela porta com o que parecia uma proposta: lealdade para Oz, não para a Ópera. Poderia desvendar as camadas de segredos de Li’a e ainda ter os olhos sobre Kuí e sua inquietante proximidade com Yan. 

― Eu quero. Me ajude. 

Há muito tempo Oz não se expunha para outro alguém que não Yan. No passado, ouvira de Maali uma promessa cujo amargor finalmente começava a se dissipar. Somos nós três e eu nunca os deixaria sem proteção no meio do caminho, amor. Não precisava da proteção de um fantasma, ou de um traidor, e que os Imortais avisassem isso a Maali no fundo do vórtex, se quisessem. 

Acima dos dois, a sombra de uma mariposa-do-sereno trouxe uma lufada de ar fresco. Eles não perceberam o quão instável estava o voo do animal.  

Continua…

No próximo capítulo… Amizades inusitadas começam em lugares improváveis. Que tipo de amizade Yue pode pescar no SESC? É possível que, além da amizade, também algo a mais?

O Capítulo 19 — Abestado chega no dia 9 de fevereiro às 12h! 

Nos vemos semana que vem, vortexianos!

Ei, vizinho! Não esquece de me acompanhar nas outras rede

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