💫 Pontes Imortais ― Capítulo 16

Um sinal dos Imortais

Cheguei e trago refrescos — pra quem gosta de treta, sangue e putaria monsterfuck. Se você não gosta, já peço perdão. O capítulo de hoje não tem respiros.

No capítulo anterior… Victor e Yue finalmente se entenderam e o coro dos anjos se anuncia no céu paulistano. Enquanto isso, em Farkas, a morte de Ravi dita o fim de uma era e a ascensão de um novo Mestre dos Lobos. Será que Oz dá conta? Mesmo tendo que lidar com o peso do assassinato de seu pai?

A trilha-sonora de hoje é Red Lights, dos Stray Kids!

ATENÇÃO! Este capítulo contém cenas de violência física e sexo e não é recomendado para menores de idade. 🔞

Capítulo 16 — Um sinal dos Imortais

Farkas, Pré-Hecatombe

Na época de Ravi, a Sala de Escuta submergia inúmeras vezes no silêncio. Mesmo cercado de lobos, era como se eles fossem incapazes de se conectar com seu líder e precisassem de um sinal para saber quando reagir. 

Yan sempre pensou que esse fosse o comportamento normal dos híbridos, afinal era o único do qual tinha memórias. Via só agora que estava enganado. 

Com Oz sentado displicentemente no trono que ocupava o meio do ambiente, a perna jogada por cima de um dos braços da cadeira, balançando a centímetros do chão, os lobos reagiam a tudo: rosnavam quando ele se irritava, sapateavam excitados quando Oz ria, mostravam os dentes em advertência sempre que ele levava algum tempo refletindo sobre uma resposta. 

Yan sentia vez ou outra um arrepio descer a coluna. Sempre tinha sonhado com o dia em que Oz seria o Senhor dos Lobos, mas agora via, a contragosto, que a criatura sentada ao trono quase nem se parecia com o seu amor de infância. Era tomado, com mais frequência do que gostaria, pelo desejo de se trancar com ele em um quarto até fazê-lo reavivar o brilho que havia apagado dos próprios olhos. 

— Quantos mais eu tenho que atender? — Oz questionou quando a porta se fechou atrás do último cidadão. — Que a Grande Loba Kana me dê paciência — disse e revirou os olhos. 

Os lobos fizeram folia, espalhados pela sala. Já não ficavam apenas nos cantos desde que Oz assumira as audiências do clã.

— Só mais alguns, mestre — respondeu a bela farkasiana prostrada ao lado do trono. 

Ela carregava nas mãos uma pequena cesta de frutas secas trazidas de Banjora. Os líderes do clã principal da cidade tinham mandado um carregamento dessas como oferenda de condolências pela morte de Juno. 

Oz as apreciava e muito. Havia dias em que era seguido de perto por alguma beldade carregando uma cesta cheia. Yan tinha os olhos na de agora. Era uma das discípulas externas do clã cujo nome só se importaria em memorizar se ela não fosse substituída em menos de uma semana. 

Ele abriu a boca, pendendo a cabeça para trás numa brincadeira. Seu cabelo roçou a coxa da moça enquanto ela o servia com um pequeno punhadinho de frutas, deixando os dedos tocarem inocentemente os lábios dele. 

Yan nem piscava. Foi o que chamou a atenção de Oz, afinal. Ele pareceu desconcertado o suficiente para erguer de volta a cabeça e fazer um sinal para que a garota saísse. Não sem antes sussurrar algo perto de seu ouvido cujo conteúdo era fácil de deduzir, mesmo sem ouvir. 

— Desde quando você tem ciúmes? — ele perguntou, entretido, esticando o pé para enroscar no braço da cadeira onde se sentava Yan, puxando-a para perto como se não pesasse nada. 

— Não tenho ciúmes — o nivariano respondeu, ajeitando as orelhas antes dobradas para trás, o que provocou em Oz um riso divertido e estimulou os lobos a uivarem. 

— Não mesmo? 

Oz se ajeitou na cadeira para se virar de lado, voltando a jogar uma perna por cima do braço do trono e a cabeça para perto de Yan. Fofas ondas de cabelo preto se espalharam sobre o colo do curandeiro como tentáculos. 

Yan concedeu um sorriso, passando a ponta do nariz pela de Oz em um carinho gentil que o fez suspirar. Sempre o amolecia assim, não importava qual fosse o humor de Oz no dia. Aquilo fazia seu coração disparar. 

— Não muito. Mas talvez eu precise te morder mais tarde para que ela esteja ciente da minha existência quando estiver no seu colo — Yan sussurrou. 

— Quem disse que ela vai estar no meu colo? Ai! — Oz exclamou, fazendo os lobos emitirem ganidos fracos em eco antes de rir, afagando o lado da bochecha que Yan tinha acabado de morder. — Você é um selvagem. 

— Eu posso ser mais se você ficar me testando — Yan provocou tocando seu rosto. Os olhos que o olhavam eram os que amava. 

— Mestre — chamou um leva-e-traz pela fresta da porta que a garota havia deixado aberta. Yan viu quando os olhos de Oz mudaram de novo, ganhando um brilho debochado, quando ele se virou na direção do jovem, que ameaçou ir embora. 

— Agora fale o que queria — o líder exigiu, sem se importar em assumir uma postura oficial. 

— Posso mandar entrar o próximo, mestre? Ele diz que é importante. — A voz do leva-e-traz era baixa e trêmula. Tinham por Oz o mesmo tipo de respeito temerário que nutriam antes por Ravi.

— Mande. Vamos ver quão importante é — Oz concordou, entediado. 

O homem entrou. Era jovem como eles, alto e de corpo esguio, ainda que tivesse as roupas marcadas pelo contorno suave de músculos — e um braço enfaixado por baixo da manga larga, Yan não falhou em notar. 

— Diga lá qual é esse assunto tão importante — Oz entoou com a voz apática enquanto o homem o cumprimentava respeitosamente com uma reverência. 

— Mestre Farkas, eu sinto por sua perda — disse ele com a voz carregada de condolências que Oz dispensou com um gesto de mão. — São os lobos, mestre.

Yan sentiu o corpo enrijecer enquanto Oz se ajeitava finalmente no trono, apoiando o cotovelo sobre o braço de madeira para deitar o rosto na mão, entretido. Espalhados pela sala, os lobos passaram a língua pelos dentes com os olhos fixos no visitante. 

— O que têm os lobos, colega? — questionou. — Desembucha em vez de fazer suspense. 

— Senhor, ontem mesmo eu caminhava pelo centro da cidade com minha filha quando um dos lobos tentou atacar a criança — desabafou o homem, se encolhendo quando alguns lobos avançaram um passo em sua direção. 

Oz assoviou e eles pararam. Então riu, balançando a cabeça.

— Meus lobos nunca atacaram farkasiano algum. Não me venha com historinhas. — Ele ergueu a sobrancelha, o sorriso morrendo em uma expressão intimidadora. 

— Não é… História, mestre. Oz — arriscou ele —, você se lembra de mim. Kriso, do armazém de comércio entre cidades. Eu sempre fui o responsável por fornecer os seus pedidos de frutas e queijos de Banjora. E também produzir os pães com receita nivariana que você compra para o seu… amigo. 

O olhar dele buscou Yan, ilustrando sobre quem falava. Oz mostrou os dentes, então convertendo a careta em um sorriso frio em um piscar de olhos.

— Kriso do armazém, é claro. Como eu não me lembraria? Você faz soar como se fôssemos amigos, não é mesmo? Eu pareço alguém que esquece dos amigos, Kriso? — perguntou. E esperou pela resposta.

— N-não, Oz… Mestre. De forma alguma. 

Kriso balançou a mão no ar em negativa. Yan viu como ele tremia e tocou o braço de Oz com um carinho que exigia atenção. 

Oz o olhou, o sorriso instantaneamente convertido em gentileza quando pegou a mão de Yan e a trouxe para perto, presenteando-a com uma sequência de pequenos beijos e mordidinhas. 

— Já estamos acabando, Yan — ele prometeu antes de voltar o olhar para Kriso. — Kriso, eu vou ser direto: por que está mentindo sobre meus lobos? — Fez um sinal com a mão quando ele ameaçou protestar. — Se foi atacado, então me descreva esse lobo. Como ele era?

— Uma loba, mestre. Uma loba híbrida enorme de pelos negros, com um dos olhos feitos de máquina — respondeu Kriso. 

— Nix? — entoaram Oz e Yan juntos.

A grande loba sempre fora obediente a Oz, desde quando ainda era completamente orgânica. Mesmo depois, com a estrutura metálica que revestia metade de sua cabeça, não agira diferente. Sempre fora exemplar em seguir ordens, mesmo que só tivesse uma das orelhas para ouvi-las. 

— Você não faz sentido, Kriso — pontuou Oz, decepcionado. — Nix é uma loba antiga e obediente. 

Os olhos de Oz vasculharam a sala à procura da loba. Não havia notado até então a ausência dela entre os demais.

— Ela deve estar caçando na floresta — Oz sussurrou para Yan. 

— Mestre, eu tenho provas — ofereceu Kriso. 

Erguendo a manga larga das vestes, ele exibiu o antebraço coberto de faixas, por onde o sangue por pouco não tinha atravessado. Estimulado por um sinal de Oz, Kriso as desenrolou volta por volta, expondo a ferida ainda ensanguentada, pontuada por pequenos coágulos. 

Yan torceu o nariz e se levantou. 

— Eu posso dar uma olhada? — pediu, se dirigindo até Kriso por entre os lobos. 

O homem hesitou, puxando o braço para perto do corpo e ganhando em resposta um rosnado de Oz que ecoou nas vozes dos lobos. Isso o fez mudar de ideia, pois ofereceu, no mesmo instante, o braço para Yan. 

O curandeiro sacou da bolsa um lenço limpo, umedecendo-o com uma solução esterilizante que usou para limpar o sangue coagulado e observar os padrões da ferida. 

As marcas, o tamanho, a força com que aqueles dentes afiados tinham rasgado a carne de Kriso como papel, tudo condizia com a história. Aquela podia muito bem ser uma ferida de ataque de lobo. Não qualquer um, mas um grande e forte, como era o caso de Nix. 

— Ele pode estar dizendo a verdade, Oz — Yan concedeu, no tom brando que julgava melhor para lidar com ele. 

— Eu estou — Kriso reforçou. Tinha um tom diferente para falar com Yan, para o qual o curandeiro escolheu fazer vista grossa. 

— Nix não ataca sem comando — Oz vociferou, irritado. E se levantou. — Me conte sobre esse ataque. Eu quero saber se acredito em você.

Ele avançou a passos pesados. Os lobos o acompanharam, rodeando o trio como se aguardassem o momento para um ataque. 

— M-mestre… — Kriso começou, nervoso pela proximidade dos lobos. — Mestre, e-eu precisei c-colocar o b-braço no… no caminho. Para s-salvar a criança… 

— Se não consegue falar, como espera que eu acredite? — Oz pressionou, cruzando os braços. — Bom, sua criança está ferida? — perguntou e esperou que ele negasse. — Certo. Vocês foram atacados por um bicho parecido com um lobo, sua criança está bem e você fez questão de exibir essa ferida asquerosa. O que mais quer, Kriso? Por que está aqui? 

— Para… — Kriso se repreendeu, despido da coragem que o levara até o Hall da Conflagração — avisar o s-senhor do que a-a-aconteceu, mestre. Eu imaginei que qui-quisesse saber se um dos lobos estivesse f-fora de controle. 

Ele tremia, causando a gagueira. Yan tocou seu pulso para passar algum conforto. Kriso afastou o toque, começando a enrolar o braço de volta rapidamente com a faixa suja. 

Oz suspirou, impaciente, então ergueu a mão e o sorriso como quem dizia que daria uma demonstração. 

— Em pé — ordenou baixo e os lobos se levantaram. — Sentados — continuou e eles se sentaram. 

Então ergueu o rosto, apoiando a mão na lateral da boca e soltando um uivo alto, acompanhado logo em seguida pelos lobos, que terminou em uma risada do líder e um coro de latidos dos animais. 

— Esses são os lobos que você veio chamar de “fora de controle”? — implicou, sorrindo pelo canto da boca.

Kriso tinha se encolhido, os braços apertados contra o peito em pavor.

— Eu não quis dizer, mestre… Eu não quis dizer que você não os controla. Mas os híbridos… — ele pontuou, o olhar clamando para que Oz o ouvisse — foram feitos com tecnologia que veio… de Nivaria, não foi?

Se Kriso tivesse olhado para Yan discretamente, veria que ele balançava a cabeça em um sinal para que se calasse a tempo. Quando finalmente o fez, foi na pior das horas, bem no fim da frase, quando já era tarde demais. 

— Você está implicando — Oz começou em um sussurro, apoiando o braço sobre o ombro de Kriso para chegar perto com o rosto — que isso foi culpa do Yan?

— Ele não disse isso — Yan respondeu, tocando-o na cintura.

— Ele disse, sim — Oz assentiu, erguendo um pouco mais o sorriso. — Em alto e bom som. 

Oz só precisava de uma desculpa, um motivo para transformar aquilo em uma acusação. Era muito pouco sobre Yan daquela vez, mesmo que a raiva se escondesse sob o pretexto de proteção. 

Um grupo de lobos se colocou em seu caminho, afastando-o de Oz, mordendo a ponta de suas vestes para que não o interrompesse. Yan ficou parado, aflito, vendo quando Oz ergueu Kriso pelo pescoço e o arremessou do outro lado da Sala de Escuta.

O comerciante caiu, tossindo assustado enquanto tentava recuperar o ar e entoava pedidos de perdão que Oz fingiu não ouvir. 

Ele teve um sorriso no rosto durante todo o processo: quando avançou até ele, quando o puxou pelo cabelo até atrás de uma mesa, e quando, sem misericórdia, comandou com um estalar de dedos para que seus lobos atacassem.

— Isso, Kriso, é um ataque dos meus lobos — explicou, a voz se sobrepondo aos gritos do homem. — Acho que estamos de acordo que é muito diferente da mordidinha de raposa que você tem no braço. 

Oz cuspiu as palavras. Raposa, ele disse, e o coração de Yan disparou. Mas Oz não tinha como saber sobre Maali. Nem mesmo Yan voltou a vê-lo nas últimas semanas. 

Com a doença e então a morte de Ravi e Juno, todo o seu tempo foi passado dentro do Hall, que recebeu poucas visitas. Tinha batido os olhos em Kuí, silencioso no meio das pessoas que foram prestar condolências, mas não pôde falar com ele e, se ele estava na presença de Li’a, não a viu.

Maali podia estar mexendo com os lobos? O pensamento fez seus olhos marejarem. 

— O cachorro ficou louco de verdade — Shu sussurrou assustado, escondido sob seu cabelo.

— Oz — Yan chamou, sentindo os olhos molhados. O brilho frio no olhar dele enquanto via os gritos se transformarem em gemidos e cessarem em seguida fazia Yan querer chorar. 

Oz o olhou e aquilo o desarmou. Com um assovio, fez os lobos cessarem o ataque, cruzando a distância que o separava de Yan em poucos passos. 

De onde estava, Yan só via as pernas imóveis do comerciante e a poça de sangue que se alastrava ao redor delas. Então, não viu mais nada, quando o corpo grande de Oz bloqueou sua visão. 

— Ele te fez chorar — rosnou o farkasiano, mostrando os dentes enquanto trazia Yan contra o próprio peito. 

O curandeiro apoiou as mãos em seu estômago, afastando-o um pouco. 

— Não — respondeu, erguendo o rosto. — Você fez. 

— Eu? O que foi que eu fiz? — Oz questionou, defensivo. Tinha um sorriso indignado no rosto quando cruzou os braços. — Por causa desse homem? Desde quando você chora por qualquer um?

— Eu choro por você — Yan repreendeu, erguendo a voz. — Era esse o líder que queria ser, meu amor? Alguém que mata por capricho?

Oz ficou em silêncio. Chamá-lo de amor era raro, uma arma poderosa. Oz olhou para o chão e ergueu os ombros, como uma criatura imatura. Apoiou as mãos no cinto e arriscou subir de volta o olhar e limpar a lágrima que escorria pelo rosto de Yan.

— Você quer revivê-lo? — perguntou. E Yan suspirou, esfregando o rosto com as mãos por baixo dos óculos. — Você não precisa levar isso tão a sério. A gente traz ele de volta se você quiser. 

— E se eu não conseguir? Você pensou sobre isso? 

Com um sorriso displicente, Oz rodeou seu corpo, beijando Yan no topo da cabeça. 

— Eu só vi o seu dom falhar uma vez — segredou. — Mesmo que todos achem que foram três. Tenta. 

Yan respirou fundo, abrindo espaço por entre os lobos até poder contornar a mesa. Havia muitas feridas pelo corpo de Kriso, fundas e ensanguentadas. Sangue não o intimidava, ou morte. Não era com Kriso que se preocupava. Mesmo assim, se abaixou, encontrando um pedaço de chão limpo para se ajoelhar e tocar seu peito pela abertura das vestes. 

A pele estava quente. Os olhos de Yan se iluminaram como uma joia. Não perdeu a concentração até ver o peito de Kriso se mexer com a respiração fraca e sentir sob seus dedos as batidas de seu coração. A vida voltara rápido, mas as dores passariam devagar. Tempo o bastante para marinar o medo em mágoa, depois em insubmissão. Os ventos farkasianos eram prósperos em carregar palavras duras. Como haviam feito à Nivaria. 

Yan voltou a pensar em Maali. Estimular o descontrole dos lobos era um plano frio, pragmático. Não parecia combinar com sua natureza intensa. Começava a achar que o Maali que conhecera estava, para todos os efeitos, morto de verdade. Essa segunda morte era ainda mais dolorosa. 

— Viu? Eu disse que você conseguiria — reafirmou Oz, então mudando a atenção para Kriso quando ele abriu uma fresta dos olhos. — Espero que nunca mais faça acusações contra esse nivariano. Deve sua vida a ele agora, colega.

Ele ainda conseguia sorrir sem preocupações. Havia uma trava em Oz que tinha se rompido no dia em que Ravi deu-lhe ordens para matar pela primeira vez. Este novo lado via a morte como uma casualidade mais do que como algo permanente. 

Yan enxergava isso ao mesmo tempo em que enxergava Oz, seus olhos gentis por trás da cortina de névoa do sorriso. Precisava de um tempo sozinho com ele para lembrá-lo de quem era.

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Sob as ordens de Oz, um ferido Kriso tinha sido levado aos cuidados dos demais curandeiros a serviço de Farkas. Fora um pedido de Yan, feito com uma voz baixa e doce, ao pé do ouvido, cujo conteúdo Oz fora incapaz de negar. Tampouco fora capaz de negar o segundo pedido, que veio logo a seguir. Esse segundo, o farkasiano recebeu com um rosnadinho gutural, baixo como um grunhido. 

Tinha deixado Shu no quarto que dividiam, munido de uma recheada cestinha de pães, a comida preferida dos dois. Shu ficara assustado com o que vira na Sala de Escuta e Yan não o culpava. Fez uma pequena toca de mantas para que o amigo se sentisse mais seguro até que voltasse pela manhã. 

Oz tinha se mudado para os aposentos dos líderes. Yan sempre imaginou que Oz, quando líder, jamais gostaria de morar em uma parte do Hall que o fizesse parecer tão inalcançável e isolado. Foi outra das surpresas que o deixaram triste quando Oz anunciou que deixaria o cômodo próximo ao dele e se mudaria lá para cima. 

Sentia Oz escorrendo por entre seus dedos, se dissipando de suas mãos, se perdendo. Quando parou aos pés da escadaria, teve outra vez vontade de chorar. Nunca teria outra metáfora melhor para a distância do que aquele sem fim de degraus horrorosos.

— Boa noite, lindo.

Yan sentiu o sussurro vindo das suas costas e arrepiou. Virou-se só para encontrar Oz com um sorriso no rosto. 

Naquela noite, não haveria distância. 

Oz tinha na mão um pequeno ramo de rosas-de-terra, abertas e perfumadas. As covinhas do sorriso ficaram evidentes quando ofereceu as flores para Yan, destacando uma para enroscar em seu cabelo, ao redor de uma das orelhas. Os pequenos sulcos no caule, onde estariam os espinhos, entregavam a Yan que Oz tinha tido o cuidado de retirá-los com as próprias mãos. 

— Por te fazer chorar — ele disse, como se o motivo do choro fosse tão ínfimo quanto uma pequena discussão. 

Yan sorriu, concedendo-lhe um abraço em resposta. O cheiro de Oz, as flores e aquele sorriso podiam até mesmo fazer com que esquecesse por uma noite o motivo de sua tristeza. 

— O que está fazendo aqui embaixo, onde dormem os meros mortais? — Yan perguntou em tom de brincadeira. 

— Eu não podia deixar que você subisse isso tudo sozinho só pra me ver — ele respondeu, travesso, antes de pegar Yan no colo, ignorando seu riso surpreso. 

Passando os braços em volta do pescoço de Oz, Yan o beijou no rosto e deixou a cabeça repousar em seu ombro.

— Meu — sussurrou, arranhando-o discretamente no pescoço enquanto Oz avançava escada acima como se os altos degraus não fossem nada. 

Viu o sorriso no rosto dele, ainda que Oz não dissesse nada. Sabia como soava quando dizia isso. 

Como Maali. Como lembranças doces de um tempo esquecido, no qual eram os três, com promessas de futuro, com planos. 

— Então — começou Oz —, você ficou mesmo com ciúmes mais cedo. O suficiente pra querer me morder. Você falou sério quando disse que queria deixar uma marca para que soubessem de você? 

— Eu falei — respondeu Yan, erguendo o queixo. 

Apesar de suas origens, era protegido antes por ser curandeiro do líder do clã, amigo íntimo de seu filho ao longo de toda a vida. Agora, era mais do que isso. Espiou por cima do ombro de Oz os rostos dos leva-e-traz e dos discípulos que observavam enquanto o Senhor dos Lobos o levava nos braços até o cômodo no topo das escadas. E ofereceu-lhes um sorriso dócil.

Oz tinha ordenado que todo o cômodo fosse redecorado já na manhã seguinte à morte dos pais, enquanto metade dos funcionários ainda se ocupava com o velório. A doença era uma boa desculpa para apagar a existência daquele velho líder. Oz e Yan não tinham adoecido, mas quem poderia garantir que ela não tinha potencial para se espalhar pelo Hall mesmo assim?

Os móveis antigos foram queimados longe da residência do clã principal. A primeira vontade de Oz tinha sido a de ordenar a queima perto o suficiente da ópera para que Kuí interpretasse — certeiramente — que ele próprio não era mais bem-vindo. Algo o fez mudar de ideia. Yan esperava que fosse um resto de consideração pela diplomacia. 

Instalados às pressas, os móveis novos não perdiam em ostentação. A cama certamente era  uma coisa para Oz: grande e espaçosa. Ali poderiam se instalar três dele, ou então ele e mais quatro acompanhantes, o que Yan imaginava que tivesse sido a matemática de sua cabeça. O lustre pendurado no teto devia ter vindo de longe, translúcido e brilhante. Tinha a aparência de um grande floco de neve esculpido em cristal, um artesanato fino que destoava de todo o resto. Aquele era um capricho de Oz para Yan.

Oz entrou, trazendo o nivariano ainda nos braços, então sentou-se na beirada da cama, puxando-o pela nuca para que pudesse beijar seu pescoço. Yan deixou a cabeça pender para trás, o cabelo solto caindo contra as costas, abrindo espaço.

— Sem meu pai aqui, não existe ninguém para barrar nosso casamento — Oz sussurrou. Yan sentiu o coração acelerar e soltou um suspiro surpreso. O assunto casamento tinha sido outro tabu por anos, tirando de  Oz alguns rosnados mal-humorados. 

Yan nunca tinha sido a pessoa a puxar aquela conversa, mas ouvir Oz retomar por conta uma pequena parte de seus planos o fazia amolecer em seu colo.

— Não mesmo — concordou Yan. 

A roupa que vestia não era nada além de um robe de tecido frio, leve e brilhante, da mesma cor clara de suas vestes de curandeiro, cujo caimento enfatizava um pouco mais sua silhueta. 

Trouxe as mãos para o laço ao redor da cintura fina, soltando-o com um puxão lento, se ajeitando para sentar de frente para Oz, sobre suas coxas, um joelho apertado de cada lado de seu quadril. 

Deixou que a gola do robe se abrisse devagar enquanto o tecido gelado deslizava por seus ombros. Suas coxas nuas roçavam o material um pouco mais grosso das vestes de Oz. Pareciam menos reveladoras, embora o volume que despontava sob elas evidenciasse que não possuíam muitas camadas. A cauda de Yan se agitou eriçada. 

— Não tem ninguém acima de nós agora. — Oz tinha um tom atraente no sussurro, doce como uma esfera de chocolate com o recheio de rum, desses que escorrem  quentes pela língua.

— De você, bobo — Yan respondeu, encaixando a mão no pescoço de Oz, descendo-a por seu peito, pela fresta aberta de sua roupa, eriçando os pelos em volta de seus mamilos no caminho para desfazer o nó que prendia o tecido. — Não tem ninguém acima de você.

Oz esperou até que a roupa se abrisse e o tecido caísse sobre a cama. Seu braço envolveu a cintura de Yan, firmando o corpo dele contra o seu antes de virá-los, derrubando-o de costas com o cabelo esparramado nos lençóis, o peito de Yan pressionado pelo peso do seu. 

— E se você estiver logo embaixo de mim? — ele segredou, tocando o rosto de Yan com a ponta do nariz. — Isso não é perto o suficiente do topo?

 Yan gemeu baixo, deixando que Oz esfregasse em seu pescoço as pontinhas ásperas dos pelos da barba que começavam a nascer. Arrepiou, entreabrindo os lábios com um sorriso permissivo.

E então pegou Oz de surpresa quando impulsionou o peso para derrubá-lo na cama, vendo-o se derreter em um riso impressionado enquanto Yan se ajeitava em seu colo, a cauda se agitando excitada no ar às suas costas. 

— Aqui eu prefiro ficar em cima de você — sibilou, inclinando o corpo para frente. — Tenho sua permissão, mestre?

As unhas de Yan arranharam o caminho entre os músculos do peito de Oz até alcançar seu abdômen duro e pressionar a camada mais macia nas laterais de seu corpo. 

— Tem minha permissão para o que quiser. Só não me chame de mestre — Oz pediu, ganhando de Yan um beijo forte que o calou. 

Yan sentiu o pau de Oz pulsar quente contra sua virilha. O invólucro de pele que o recobria tinha minúsculos pêlos macios que roçavam sua coxa e causavam arrepios. 

Desceu a mão até ele, envolvendo-o em seu toque. Já à mostra, a glande tinha a pele lisa em um formato parecido com o de uma polpuda gota. 

Yan saiu de seu colo, afundando o corpo entre as coxas abertas de Oz, lambendo-as na parte interna. Contornou a língua por suas bolas, subindo-a pelo prepúcio até envolver sua glande com os lábios. 

Oz gemeu, apertando-o entre os joelhos. 

Ele tinha uma camada fina de pêlos que descia do caminho abaixo do umbigo e se alastrava pela virilha até o alto das coxas. Yan gostava daquele detalhe e de como tinham a textura de pelos de lobo, pretos como as ondas de seu cabelo. Se acumulavam no envoltório de pele que Yan tinha puxado com a mão até a base de seu pau, expondo-o por inteiro. Era do mesmo tom de pele de seus lábios.

Yan chupou a cabeça arroxeada do pau de Oz, ouvindo-o gemer seu nome enquanto prendia a mão em seu cabelo perto da nuca. Ergueu o olhar, saboreando a visão de seu rosto tomado por prazer, a pele descascada acima do nariz franzida em uma caretinha que expunha os dentes afiados. 

Sem o crânio de lobo, podia ver melhor as pontas bicudas de suas orelhas, com mechas de cabelo adornando-as como cipós. 

As narinas de Yan se enchiam de um cheiro doce outrora esquecido, ainda que o gosto que se espalhava por sua boca, tomada pelo pré-gozo, fosse salgado e delicioso.

— Yan — chamou ele com a voz rouca —, quero gozar na sua boca. 

— Quer? — Yan provocou, afastando um pouco a boca, o lábio inferior suavemente encostado à cabeça do pau de Oz. — Pede.

Oz rosnou baixo, emendando um gemido quando Yan lambeu sua glande, contornando a veia saliente que se estendia pelo dorso. Puxou seus cabelos com a mão grande, apertando-o na nuca até roubar-lhe um gemido. Yan não deixou  seus olhos abandonarem Oz, abrindo um sorrisinho divertido enquanto repetia o pedido, a cauda se agitando em excitação. 

— Posso? — pediu Oz, enfim, com a respiração pesada. E jogou a cabeça para trás em um ofego quando Yan voltou a lambê-lo mais uma vez. 

— Não — respondeu, rindo quando Oz emendou no gemido mais uma sombra de grunhido. 

Aproveitando o momento, Yan deslizou o corpo para cima dele, beijando-o no peito. Os braços de Oz se firmavam ao seu redor, assim como a mão dele em sua nuca, se controlando para não puxá-lo. Yan gostava dos dois modos: o primeiro quando Oz, entretido com suas provocações, apenas o seguia com reações, resistindo à vontade de devorá-lo; e o outro quando, tomado pelo tesão, era incapaz de conter o desejo de possuí-lo. 

Espalmou as mãos no peito dele, enchendo-o de pequenos beijinhos no maxilar enquanto a mão, afundada entre os corpos, masturbava ambos ao mesmo tempo, esfregando um contra o outro. O braço de Oz se firmou ao redor de seu corpo, a mão apertando sua cintura enquanto a outra puxava seus cabelos, fazendo a cabeça de Yan pender para trás. O toque era firme, mas ainda gentil o bastante para que Yan sorrisse. 

— Por que me fez pedir se ia dizer não? — grunhiu Oz, virando o rosto para apertar os lábios contra a orelha dele, mordendo-o perto dos brincos. 

— Porque se eu te desse só o que me pede, não ia poder oferecer mais — ele sussurrou, enrolando a cauda na coxa de Oz quando ergueu o corpo. — Hoje, eu vou ficar em cima de você pra te lembrar de que sempre vai ter alguém aqui que não tem medo… ― Yan ofegou ― de te dizer não. 

Oz se sentou com ele no colo, a mão descendo para a base das costas de Yan quando o puxou para si. Ofegou quando sentiu a pica dura encontrar caminho entre as coxas dele, a glande deslizando para dentro de seu cu devagar. Yan deu um gritinho, tocando os lábios de Oz com os dedos para recusar um beijo. 

— Você vai gozar dentro de mim — continuou, ondulando o corpo para senti-lo mais fundo dentro de si, um gemido mais alto escapando por entre seus lábios — pra lembrar que não importa o que aconteça… sua casa é sempre comigo. 

Outro gritinho preencheu o quarto quando Oz o ajeitou no colo e mexeu o quadril. Se sentia todo dentro dele mesmo antes de puxá-lo para baixo, colando a bunda de Yan em seu colo e ondulando o corpo devagar. Ele gemeu de novo. E de novo. E então relaxou o suficiente para que Oz se mexesse com mais liberdade. 

— Eu nunca esqueço — Oz sussurrou, mordiscando o canto da orelha de Yan. Tinha um sorriso safado no rosto quando o puxou para trás pela nuca, inclinando o corpo para meter mais forte. 

Yan se contorcia em gemidos no seu colo quando Oz envolveu seu pau com a mão, masturbando-o rápido. Apertou-o com os joelhos em resposta, a cauda se soltando de sua coxa para se enlaçar, quente e felpuda, ao redor do braço de Oz.

— Goza primeiro. No meu colo — Oz disse em tom de ordem. 

A pele de Yan se arrepiou. Trazendo as mãos junto com a cauda, enterrou as unhas no pulso de Oz em um pedido silencioso enquanto o corpo era tomado por arrepios mais potentes.

O prazer, da forma como Yan o conhecia, vinha em ondas. A primeira, mais suave, tomava seus pés e tornozelos e o fazia querer fugir. Ele jogou o corpo um pouco para trás, como se pudesse escapar daqueles toques, mesmo que as mãos continuassem firmemente presas ao pulso de Oz. 

A segunda onda vinha até sua cintura. Parecia-se mais como um banho gelado de rio, como as águas gélidas de Nivaria, que o forçavam a se erguer nas pontas dos pés para evitar que o frio o tomasse até o peito. Yan gemeu, arqueando o corpo, curvando os pés  enquanto os esfregava no lençol amarrotado da cama. 

A terceira e última onda era inatacável, pois cobria-o até as orelhas. Elas se arrepiaram junto com o resto do corpo quando a onda guiou Yan até o orgasmo, derramando gozo morno na mão de Oz.

O orgasmo dele não demorou a vir. Mais algumas estocadas e Oz o puxou contra si, apertando Yan contra o peito enquanto sua porra quente o preenchia.

Oz gostava de levá-lo nos braços e deitá-lo quando acabavam. Não importava se estivessem na beira da cama, no chão ou espremidos contra a parede, ele tomava Yan no colo ou sobre o ombro em uma troça juvenil e o deitava de volta na cama, afagando sua orelha com carinhos pesados. 

Yan respirou fundo. Quando Oz o deitou com a cabeça nos travesseiros, tomou para si uma de suas mãos, espalhando por seus dedos pequenas mordidas afetuosas. 

— Vai ficar me mastigando agora? — ele brincou, rindo ao seu lado. — Agora eu vejo por que te chamavam de ratinho. 

Mostrando os dentes, Yan o acertou no rosto com um movimento da cauda. 

— Eu não sou um rato — corrigiu com a voz baixa. — Sou um arminho.

— E eu não sei? — Oz sorriu, aproveitando o golpe para prender a cauda felpuda debaixo do braço, alisando-a com o toque. — Mas, sério, se estiver com fome, mando trazerem algo melhor pra você mastigar. 

— Não — rebateu, balançando a cabeça. — Não quero que chame ninguém aqui até amanhã.

Sozinhos, tinha controle de tudo. Sozinhos, tinha a companhia do Oz com quem soube lidar por toda a vida. Não o líder imaturo — com o temperamento explosivo que ainda arranjaria problemas dos quais Yan não poderia protegê-lo —, mas seu Oz, quente e afável, com um humor irritante, um Oz que poderia beijar ou morder, dependendo de como as covinhas surgissem em seu rosto zombeteiro. 

— Pelo menos vamos beber, então! — ele ofereceu, indicando uma mesa semi-oculta pelo breu do outro lado do quarto. — Mandei trazerem antes de te encontrar.

Sobre o tampo maciço de madeira adornada, havia uma única garrafa rechonchuda de vidro fosco, fechada com uma rolha e acompanhada de dois pequenos copos e um potinho de cerâmica com tampa.

— O que é desta vez? — Yan perguntou, curioso. Oz tinha, desde quando eram jovens, uma farta coleção de vinhos e cervejas de diferentes procedências, a maioria oferecida como presente ou conquistada em algum tipo de aposta. 

— Aquele rum metido a besta que o seu amiguinho da ópera trouxe pro meu pai — ele confessou, mostrando os dentes quando abriu um curto sorriso. — Tinha sobrado uma última garrafa, lembra? A que Ravi queria que você buscasse no dia que morreu? Eu mandei que trouxessem com um pote de mel, para tornar aquela obscenidade mais tragável. 

— Eu pensei que você odiasse rum vulcânico — Yan sussurrou surpreso, enlaçando o pescoço de Oz para mantê-lo perto. — O que te fez mudar de ideia?

— Meu pai — disse ele entredentes. — A forma como bebia isso como se fosse a coisa mais exclusiva do mundo só por vir de tão longe. Eu pensei… Por que não? Se ele podia desfrutar desse tipo de iguaria, então nós dois temos o mesmo direito. E se ele tiver reclamações, pode proferi-las de seu túmulo… — o sorriso de Oz terminou de se erguer — … de dentro do vórtex. 

Ele riu. Yan suspirou. Ravi passou toda a vida vociferando o quanto não gostaria de ter o corpo jogado no vórtex, como um cidadão comum. Havia escolhido o melhor lugar para sua lápide, selecionado o mais pomposo dos túmulos… Tudo para morrer sob a liderança de seu filho, cuja primeira ordem foi a de que os corpos de seus pais deveriam ser lançados ao vórtex e não guardados debaixo da terra, de onde a doença desconhecida que contraíram ainda pudesse encontrar o caminho de volta.

— Vou pegar pra gente — Oz avisou, se empurrando com o braço para erguer o corpo, só para ser impedido pelos braços de Yan, ainda enlaçados em seu pescoço. 

— Não — ele repreendeu, passando o nariz por seu rosto para derretê-lo de volta na cama. — Você é o novo líder de Farkas e aquela é a última garrafa que marca a era de Ravi. É importante — explicou, a voz doce como mel. — Eu vou servir a gente hoje.

Ofereceu a Oz um beijo breve que não abria margem para uma negativa, então se levantou, indo até a mesa. 

O leva-e-traz que trouxera o rum tinha deixado a rolha apenas encaixada na garrafa, por gentileza ou puro medo de ser chamado de volta pelo serviço incompleto. Yan a tomou nas mãos, encaixando o dedo pela pequena alça de vidro.

Não havia rótulo. A grande graça do rum vulcânico eram os padrões de cor que apareciam através do corpo da garrafa. Deu uma leve agitada nela, salientando o tom vermelho vivo do líquido no fundo, que desembocava em uma espuma escura como fumaça carregada. Se parecia, como dizia o nome, com algo tirado da boca de um vulcão, ainda que fosse uma bebida surpreendentemente fria, o que garantia popularidade nas regiões de clima mais quente das Cidades Flutuantes.

— É tão bonita! — Yan exclamou com a garrafa na mão, puxando a rolha para sentir o aroma que o rum espalhava no ar. — Ainda fico surpreso que você tenha decidido beber algo trazido por Kuí. Achei que não gostasse dele. 

— Aquele instrutor de ópera pomposo que vive se engraçando com você e me trata como se eu fosse uma porra dum filhote? Eu odeio o cara! — Oz desabafou da cama, rosnando baixo. — Mas ele não precisa saber que eu decidi provar esta merda. Você pretende se encontrar com ele pra contar? — esbravejou, cruzando os braços. 

— Eu não pretendo coisa alguma, seu bobo — riu Yan. E gritou. 

A alça tinha deslizado por seu dedo. Quando a garrafa se espatifou no chão, espalhando bebida e cacos, Yan tinha acabado de encolher os braços contra o corpo, protegendo o rosto por reflexo, a cauda se enrolando apertada ao redor de seu corpo depois de atingir a garrafa no ar em um golpe rápido para que o vidro não caísse perto de seus pés.

— Yan! — Oz rosnou, levantando da cama de uma vez. 

A velocidade com que atravessou o quarto foi invejável, culpa da estatura que o presenteara com pernas longas e fortes. Ele ergueu Yan nos braços, encarando-o com o semblante sério. 

— Desculpa — pediu o curandeiro. 

— Se machucou? — ele rebateu, praticamente por cima, checando os pés molhados de Yan em busca de alguma ferida causada pelo vidro, evitada pelo golpe da cauda.

— Não, mas perdi toda a nossa bebida. 

Oz revirou os olhos com a manha, levando-o de volta para a cama. Se sentou, com os pés de Yan apoiados no colo, e secou o resto de rum avermelhado de seus dedos com a ponta do lençol.

— Foda-se — disse, e deu de ombros. — Talvez seja um sinal dos Imortais para que essa droga não toque a nossa boca, no fim das contas. — Yan acompanhou quando o rosto marrento se transformou em um sorriso e Oz ergueu sua perna até a altura do queixo, subindo por ela com uma trilha de beijos. — Eu tenho coisas melhores pra tocar com a minha. 

Quando acordou na manhã seguinte, Yan encontrou Oz ainda apagado, afundado na bagunça de lençóis e travesseiros, com o cabelo amassado cobrindo-lhe o rosto. 

Sorriu e o beijou na lateral do corpo, não ganhando nada além de um grunhido em resposta, quando ele girou para o lado, levando consigo quase toda a coberta, fazendo Yan levantar atrás de suas vestes para ter algo com o que cobrir o corpo. 

Colocou os óculos e penteou o cabelo com os dedos, puxando uma mecha fina que usou para dar um nó ao redor do resto, parecido com o nó na faixa ao redor do robe. Assim tinha ao menos algum vestígio de ordem até chegar ao próprio quarto.

Notou uma sombra se mexendo por baixo da porta, inquieta, andando de um lado para o outro, destacada da claridade do dia que penetrava pelas frestas. Caminhou com cuidado para evitar os cacos e o resto pegajoso de bebida derramada, abrindo apenas uma fenda da porta para evitar que a luz acordasse um Oz irritado.

— Algum problema? — perguntou às costas do leva-e-traz, que se assustou,  cobrindo a boca com as pontas dos dedos em um pedido mudo de desculpas. 

— Senhor Curandeiro… — ele gaguejou, ajustando a postura, olhando efusivamente para a porta, como se esperasse que Oz surgisse logo atrás, o pegasse pelo pescoço e o arremessasse escadaria abaixo por ter perturbado seu sono. — Eu preciso comunicar ao Mestre Farkas… Há um problema com as mariposas-de-sereno, senhor. 

— Com as mariposas? — Yan franziu a testa, revezando olhares entre o jovem e a porta, que fechava com cuidado atrás do próprio corpo. — Não há necessidade de acordar o seu mestre agora. Na verdade, é melhor que o deixem dormir até a hora que quiser. 

— Mas, senhor, e quanto ao problema…? — A voz quase morreu no ar, interrompida por um movimento de mão de Yan.

Ele sorria, movendo as orelhas gentilmente para trás em um aviso. Era engraçado como estar nos aposentos do líder fazia instantaneamente com que seu tratamento virasse “senhor”.

— Faça como eu disse — reforçou, e desceu um degrau antes de se virar para chamar o jovem com a mão. — Eu mesmo vou verificar as mariposas. Venha, ou vou ser obrigado a dizer ao seu mestre que me deixou descer toda essa escadaria sozinho. Isso não seria uma indelicadeza? — perguntou, pontuando com um breve movimento das orelhas.  

Continua…

No próximo capítulo… Tomás visita sua cafeteria favorita e tem um encontro inusitado. Aquilo ali é uma gangue de cachorros?

O Capítulo 17 — Por que não? chega no dia 19 de janeiro às 12h! 


Até mais!

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