💫 Pontes Imortais ― Capítulo 15

Choque de realidade

Feliz ano novo e feliz ato novo de Pontes Imortais! Bem-vindos a 2024 e ao terceiro e último ato da primeira temporada! Preparem os corações, porque vamos de 0 a 100 rapidinho por aqui e o capítulo de hoje tá cheio de emoções!

No capítulo anterior… A conturbada doença dos líderes de Farkas terminou em assassinato. E quem poderia imaginar que o assassino seria o próprio herdeiro do clã? Em São Paulo, a morte inesperada do pai de Victor causou um encontro improvável dos quatro garotos na casa de Tomás, depois de um chá da tarde bem peculiar. Agora, chegou a hora de enterrar os mortos.

Leia este capítulo ao som de Physical, da Dua Lipa! Talvez seja uma indireta.

ATENÇÃO! Este capítulo contém cenas de insinuação sexual e linguagem imprópria e não é recomendado para menores de idade. 🔞

Capítulo 15 — Choque de realidade

São Paulo, 2023

A capela climatizada tinha o mesmo cheiro de uma loja de grife. 

Sua tia acharia desrespeitoso que Yue pensasse algo assim durante um funeral, mas acabaria abanando a cabeça em uma concordância tácita porque era verdade. Os primeiros empregos de Yue tinham sido em shoppings de luxo. Uma das colegas de trabalho daquela época, Aurora, era uma garota alta e destemperada, cheia de opinião ― de longe a pessoa mais inteligente que ele conhecera. As lojas cheiram assim pra manter os ricaços dentro, Aurora tinha explicado. Eles se sentem acolhidos e reconhecem de longe, pelo cheiro, a loja que lambeu direitinho as bolas deles enquanto metia a mão no cartãozinho platinum. Chamam de marketing olfativo

Marketing não faria sentido em um velório comum, o que não era o caso. O pai de Victor havia sido um figurão da indústria do tabaco, do tipo que estampa a  capa da Forbes usando ternos feitos sob medida. Dentro daquela capela estavam os escolhidos, gente que merecia receber uma ligação no meio do domingo para comparecer a um enterro VIP. 

O lado de fora dos portões do cemitério estava apinhado de gente da imprensa, e esse era o menor dos problemas. A notícia da morte do sujeito se espalhou feito fogo em palha, e em pouco tempo coletivos pelos direitos trabalhistas, ambientalistas e grupos formados por mães e esposas tinham se unido às câmeras dos jornalistas, aproveitando a atenção dispensada ao evento para lembrar todos os problemas causados pela empresa daquele homem, gritando palavras de ordem, erguendo o mais alto que podiam cartazes com verdades incômodas. 

No que dependesse apenas de Yue, estaria lá fora com aquela gente, mas havia uma pessoa bem mais importante do lado de dentro. 

― Vou pegar água pra você ― sussurrou, voltando a atenção para Vi. 

― Não… ― o amigo sussurrou de volta, apertando-lhe a mão. Desde que se sentaram, Victor mantinha uma mão escondida entre as de Yue. ― Fica aqui, tô de boas. 

Era mentira. Sentado nos fundos da capela, quase escondido, Vi encarava com olhos secos o elegante caixão que repousava diante do altar. A tampa aberta revelava a imagem serena do pai, com cabelos grisalhos, aparados, as mãos de unhas bem cortadas cruzadas sobre o peito. O caixão estava forrado por flores que lembravam rosas, embora fossem pequenas demais para serem rosas de verdade. Ou eram? As orquídeas, pelo menos, Victor reconhecia porque a mãe gostava delas. 

― Eu deveria ficar triste com a morte do desgraçado, né? 

A voz de Vi saiu quebrada e frágil. 

― Não. 

Victor acabou rindo um pouco mais alto do que o previsto, atraindo olhares de julgamento tão incisivos quanto o que Yue usou para rebatê-los, encarando de volta até deixar as pessoas desconfortáveis a ponto de voltarem para suas próprias picuinhas, ditas aos sussurros. 

― Não? ― Vi baixou a voz. ― Não é o que dizem pra fazer? Respeitar pai e mãe e os caralho?

― Dizem quem? ― Yue fazia carinho na mão de Vi com o polegar. ― O velho era um cuzão. 

Fato. E talvez fosse o que levou Vi a estragar o próprio domingo se metendo naquele funeral em que era mais indesejado que piolho em creche. Estava buscando um sinal, um indicativo qualquer de que seu pai não tinha sido uma pessoa tão ruim. O problema deveria ser ele mesmo, certo? O pai e a mãe (não conseguia pensar neles como seus pais, como uma unidade) davam a entender algo do tipo nas entrelinhas das conversas. Era Victor quem não compreendia a relação dos dois e os deixava embaraçados com aqueles pedidos de menino: que o pai participasse da festa de dia dos pais; que o ensinasse a andar de bicicleta; que o ajudasse a se entender com a lâmina de barbear quando os primeiros pelos começaram a brotar na cara.

Para coisas assim, teve o pai de Yue. O seu próprio era uma figura luminosa que eventualmente aparecia na televisão, ou nos jornais, e que Vi aprendeu a ignorar, as mãos se crispando com uma raiva que subia, ácida, pela garganta. Por muito tempo, o nome dele sequer constava em sua certidão de nascimento. 

― Será que alguém aqui gostava dele de verdade? ― sussurrou, encostando a cabeça no ombro de Yue. ― Será que existe alguma coisa boa pra falar sobre o desgraçado? Alguma coisa que eu não saiba? 

― Você deveria parar de procurar por uma redenção que nunca te coube… 

O peso da mão de Yue em sua cabeça não foi tão reconfortante quanto o peso daquelas palavras. Era um daqueles afagos pontudos, que apertam onde machuca até que a pústula arrebente, aliviando a dor. Puxou lágrimas que Victor não esperava derramar. 

― Por que ele não gostava de mim? 

Toda uma infância se repetindo a mesma pergunta: por que seu pai não gostava dele? Por que gostava da outra família, a família bonita que aparecia em fotos de página dupla, com cheiro de papel offset? Não queria a casa com piscina, nem os cachorros gigantes, tampouco a árvore de Natal apinhada de presentes sob a copa. O que queria era o olhar de orgulho, de uma quase satisfação, com que o pai encarava o filho em todas aquelas imagens. O filho que não era Victor. 

Um toque o fez olhar para cima. Com uma expressão sisuda, difícil de ler, Yue enxugou suas lágrimas. Os nós dos dedos estavam gelados, culpa do ar-condicionado potente. Ainda bem que o tinha forçado a vestir um de seus blusões antes de saírem. 

― Vai se despedir ― o amigo sussurrou. Com os olhos nos seus, as palavras ganhavam uma autoridade diferente. ― E aí a gente volta pra casa. 

― Achei que você fosse me falar que meu pai gostava um pouquinho de mim, sim. ― Victor fungou, tentando emprestar graça à voz. ― Porque é o que os pais fazem, sabe? 

― Não ligo se ele gostava ou não. Já tem gente o bastante pra gostar de ti no lugar dele. 

― Porra… ― Vi riu, revirando os olhos. Saber que tinha Yue por perto era bom. 

Com um aceno, levantou-se para seguir aquela via crucis até o caixão. Ao redor, ninguém pareceu se importar com sua presença, distraídos com conversas sobre inventários, bolsa de valores, divisões societárias. A vida, para o pai de Victor, sempre foi sobre negócios. Por que a morte deveria ser diferente? 

De perto, o cheiro das flores era enjoativo, um odor de morte disfarçada. Ou a alma do velho, desfazendo-se aos poucos, deixava escapar toda a podridão. O rapaz colocou as mãos nos bolsos, encarando a imagem mansa do homem no caixão. A semelhança entre os dois incomodava por ser indisfarçável. Os mesmos ombros largos, narizes arrebitados saídos da mesma fôrma. Se o filho da mãe decidisse abrir os olhos naquele momento e brindá-los com um sorriso, as covinhas seriam gêmeas das de Victor. 

Pensar em quais outras afinidades poderiam compartilhar deixavam-no enjoado. 

― Se não tivesse tanta gente olhando, eu ia cuspir no teu caixão, velho ― Vi grunhiu, não mostrando os dentes por pouco. 

― Quem deixou esse filho da puta entrar no velório do meu pai?

À exclamação se seguiu um alarido estridente, semelhante ao som de uma colméia agitada. Vi olhou para trás, dando de cara com a careta contrariada do irmão. 

Ao contrário de Victor, Álvaro não tinha nada a ver com o pai, exceto pelo tamanho. O rosto era largo, com olhos pequenos e desproporcionais. Branco e sardento, ficava vermelho facilmente ― e estava mais vermelho que o comum naquele momento, o dedo grosso e acusatório apontado para Victor. 

― Como você soube? Quem te avisou? 

― Minha mãe ― Vi respondeu, erguendo os ombros. A resposta era bem óbvia. 

― E quem foi que contou praquela vadia? ― Álvaro olhava ao redor em busca de culpados, as veias do pescoço saltando.

― A essa altura das coisas, achei que era óbvio que ela esquentava a cama do velho com frequência, então qual a surpresa?

A sala inteira prendeu a respiração, as atenções em suspenso. A brevidade daquele silêncio foi quebrada pelo suspiro abafado de alguém, como um choro contido. 

A esposa do pai, escondida atrás de Álvaro, era uma figura miúda. Victor sempre sentiu por ela o tipo de empatia que não conseguia nutrir nem pela própria mãe.

― Meus pêsames, dona… ― Vi desviou a atenção do irmão para ela, em um cumprimento sincero. 

O velho morto e duro no caixão era insignificante, mas sua viúva, cuja postura pétrea era repleta de dignidade, representava bastante. Daquele circo todo em volta de si, ela sempre foi a única pessoa a tratá-lo com algum respeito, mesmo que distante. 

― Você não dirige a palavra pra minha mãe, seu porra! 

Álvaro avançou sobre Victor, empurrando-o. Foi mais pela surpresa que pela força do rapaz que Vi cambaleou uns passos para trás. O irmão tinha o cheiro nauseante de suor e cerveja acumulados, o odor de alguém bebendo há muitas horas. 

― Álvaro, não… ― a mãe do rapaz pediu, tentando segurá-lo pelo braço. Ele a afastou com um safanão. 

― Tá pensando que vai conseguir alguma coisa da nossa família pra ti e praquela puta? Acabou, porra. Tá entendendo? Acabou! Se me encher muito a paciência eu te arranco até as calças, que tudo que tu tem é às custas da vadia da tua mãe rapinando a nossa família. 

― Álvaro, chega! ― a viúva tornou a falar, fazendo um gesto com a mão para acalmar as pessoas ao redor, que ameaçavam se intrometer. 

― Não se mete nos meus negócios, mulher! 

Victor não ia levar pro pessoal nem o empurrão, nem as palavras. Estava ali para se entender com os próprios sentimentos e já tinha presenteado Álvaro com um soco em outra ocasião. Acontece que a combinação daquele metidinho chamando a mãe de mulher com uma expressão de nojo, quase como se fosse um xingamento, e o empurrão que se seguiu, fazendo-a cair sentada em uma cadeira, os grandes olhos castanhos chocados por trás do véu… Aquilo foi demais e Vi podia ter muitos defeitos, mas sangue de barata não estava entre eles. 

O soco que atingiu Álvaro o arremessou ao chão, a camisa branca por baixo do terno ganhando gordas manchas rubras. O nariz dele sangrava, transformando o rosto inteiro de Álvaro em uma mancha avermelhada. 

― Trata tua mãe direito, porra ― Victor rosnou. 

― Eu vou acabar contigo! ― Álvaro vociferou, levantando-se cambaleante, gritando com os parentes que tentavam ajudá-lo. ― Solta! Solta, porra!  

Nem conseguiu avançar demais. Uma mancha cortou seu caminho, interpondo-se entre ele e Victor. 

― Sai. 

A ordem baixa veio de Yue. A postura era tão relaxada que nem parecia estar no meio do caos em um velório. Os olhos, porém, contavam outra história: fixos em Álvaro, eram olhos de predador. 

― Trouxe a namorada pra te defender, Victor? Te cortaram as bolas, foi? 

Foi Yue quem cortou a distância entre os dois, erguendo o celular. No vídeo, o momento em que Álvaro arremessava para longe a própria mãe, uma senhora de idade. 

― Sai. Ou eu publico isso agora. Tá cheio de gente lá fora querendo a cabeça da tua família. 

― Por favor, chega. 

Mãos pequenas seguraram o pulso de Yue. Eram geladinhas, com dedos finos. A mãe de Álvaro havia afastado o véu do chapéu e encarava, horrorizada, a gravação. As instruções sobre não deixar ninguém entrar na capela com aparelhos eletrônicos foram bem claras, mas aquela pessoa dera um olé neles mesmo assim, pelo visto. 

― Pode apagar isso? Por favor? 

Yue procurou o olhar de Victor, que assentiu, aproximando-se. 

― Já estamos de saída ― ele garantiu, apontando o celular de Yue quando o amigo excluiu a gravação. ― Viu? Tudo certo. A senhora vai ficar bem? 

― Não depois de você ter quebrado o nariz do meu filho… 

― Não quebrou ― Yue interrompeu. ― Ele estaria menos machão se tivesse quebrado. 

― Vão embora ― ela pediu, soltando o pulso de Yue. ― Já está sendo uma noite difícil o bastante. 

Em lugar de saírem pelo portão mais próximo, os dois deram a volta por dentro do cemitério para evitar a confusão de jornalistas. As luzes amarelas emprestavam aos mausoléus e túmulos de mármore escuro uma aura quimérica. Tudo grande demais, fabuloso demais. Artificial. 

― Quando eu morrer ― Vi começou, andando ombro a ombro com Yue ―, joga meu corpo num porta-malas, leva pro meio do nada e toca fogo, beleza? 

― Claro. Ser um octogenário preso por ocultação de cadáver é o que espero pra minha velhice. 

― Bondade sua achar que a gente vai viver tanto. ― Victor se divertia, mas a voz ficou um tom mais baixo em seguida, quase manhosa. ― Yue, me leva pra casa… 

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― Cê tá ligado que a gente podia ter pedido comida, né? 

Uma das coisas favoritas de Victor era sentar-se no chão da cozinha para conversar e comer. O cômodo era mais comprido que largo, e o único ponto de luz vinha da luminária que pendulava pouca coisa acima deles. Pelo menos uma vez por semana, Vi batia a cabeça naquele troço e ameaçava arrancá-lo e atirá-lo pela janela. A luz morna combinava com o calor do cômodo, emprestando à casa o jeitão de um lar. Também combinava com o cheiro de massa gratinada pairando no ambiente e com as muitas latinhas de cerveja abandonadas num canto. 

― Sei ― Yue respondeu, se servindo de mais um pedaço da lasanha disposta entre os dois, numa travessa no chão. 

Não era um grande cozinheiro, e se o deixassem sozinho por muito tempo, havia grandes chances de Yue se virar com macarrão instantâneo e pão francês, mas lasanha era uma das coisas que sabia fazer bem. Por sorte, também era a comida de conforto do amigo. 

Depois de chegarem do cemitério, Victor tinha se enfiado debaixo do chuveiro, esperando pelo choro que não veio. Continuou ali, entalado feito espinha de peixe, sem subir nem descer mas cutucando a garganta para lembrá-lo de que ainda existia. Sua mãe ligou diversas vezes até Yue perder a paciência e atender, avisando num tom ríspido que se ela ligasse novamente ia acordar com o carro todo arranhado. 

― Olha, não precisa passar a noite aqui ― Vi avisou de boca cheia, cobrindo-a com a mão ao ver Yue revirar os olhos numa expressão que gritava “para de ser mal-educado”. ― Se o tio estiver precisando, saca? Eu me viro. E tô ligado que essas olheiras aí são de insônia. 

― Se apareço em casa em lugar de te fazer companhia, a tia me bane da família. 

― E eu achando que cê tava aqui por se preocupar comigo… ― Victor fez um bico de manha, emendando uma risada ao ver Yue arquear uma das sobrancelhas, sério. ― Sabe o que cê podia fazer pra me animar? 

O sorriso traiçoeiro veio acompanhado de uma covinha. Yue se inclinou para trás, apoiando as mãos no piso frio. Também tinha tomado um banho, mas ainda usava o blusão de Vi, que o cobria até a metade das coxas. Os cabelos molhados ficavam levemente ondulados nas pontas. 

― O quê? ― ele perguntou, desconfiado. 

― Pagar aquela lap dance que cê tá me devendo. 

A risada animada de Victor ocupou a cozinha toda quando Yue o chutou de leve no joelho, acertando a travessa de lasanha no caminho. Vi aproveitou para colocá-la sobre o armário próximo antes que fizessem merda. 

― Onde isso se encaixa nos estágios do luto? ― Yue questionou.

Vi sorriu, puxando o pé dele para mais perto, o que fez Yue escorregar com um grito irritado, apoiando-se nos cotovelos para continuar encarando o amigo. 

― Tenho quase certeza de que na barganha.

― Eu chutaria depressão. ― Yue tentou puxar o pé de volta, mas Vi o manteve preso entre as mãos, fazendo uma massagem suave. 

― Tá rolando alguma coisa entre você e o Tomás? 

A pergunta pegou Yue de surpresa. Às vezes, sua expressão era tão indecifrável que beirava o tédio. Ele demorou para responder, de tal forma que foi Victor quem desviou o olhar primeiro. O silêncio em um lugar como a Avenida Paulista era diferente: a madrugada colocava as coisas em suspenso, transformando a realidade em um não mundo, a magia quebrada só de vez em quando pelo ronco ocasional de uma moto. 

― Não ― Yue sussurrou finalmente. Quando Vi tornou a encará-lo, percebeu que Yue não tinha se mexido, os olhos ainda sobre ele. 

― Por que cê tava na casa dele? ― questionou.

A dúvida rodeava os cantinhos de sua cabeça há algumas horas, mas só agora, mais relaxado, conseguia dedicar a ela um pouquinho de sua atenção.  Os dois já se conheciam e Yue ficou todo esquisito no rolê da rinha. E tinha comentado que estava afim de um carinha. Vi poderia ser a pessoa mais contraintuitiva do mundo, mas os sinais piscavam feito placa de néon. Desde que chegara àquelas conclusões, um demoniozinho de instalara bem no meio do seu peito, beliscando seu coração a intervalos regulares. Era um incômodo cáustico. 

― Por acaso. Trombei com ele na rua e a dona Annchi pediu ajuda com umas coisas. É a avó dele ― explicou. 

― Cê me contaria se estivesse na do boy, né? 

O silêncio de Yue era sempre uma resposta satisfatória. Sua persuasão só não era tão poderosa quanto a sua falta de clareza, e se Yue não conseguisse mentir, então iria explodir. Ou ficar calado.

Porra, agora que a madrugada, o trauma e as seis cervejas faziam seu trabalho, as coisas ficavam bastante óbvias. Victor rosnou, puxando o pé dele novamente, desta vez com a intenção de trazê-lo para perto.

― Mas cê não cansa de ser um mentiroso do caralho?

Não era pra sair daquele jeito. Victor sentiu o arrependimento pesar no estômago feito uma pedra de gelo assim que fechou a boca. Yue puxou o pé num movimento agressivo que deixou os dedos de Victor ardendo, então mostrou os dentes. Poucas coisas o irritavam tanto quanto ser chamado de mentiroso.

― Que diferença faz, porra? ― Yue retrucou quase sem erguer a voz, levantando-se logo em seguida porque agora era ele quem se sentia incapaz de olhar para Vi por tempo demais. 

Por que tinham que se afundar naquela conversa sem sentido? Por que falar de coisas que não fariam a menor diferença na relação dos dois? Se Yue pudesse só fugir de todos os sentimentos incômodos e se enrodilhar numa distância pacífica, é o que faria. Em vez disso, foi interceptado por Vi assim que cruzou a porta da cozinha. 

― A gente não vai virar isso, Yue. Que merda! ― ele resmungou, fazendo força para manter o amigo no aperto. ― Desde quando a gente fica escondendo bagulho um do outro? 

― Sei lá. O caralho da vida toda, talvez? ― Yue cuspiu, usando o ombro para dar um encontrão em Vi e forçar o amigo a soltá-lo. ― Cê teria percebido se não estivesse tão entretido com o próprio mundo. 

A mágoa que atravessou os olhos de Victor feito cometas em chamas doeu em Yue mais que um soco. O silêncio mágico da madrugada fora substituído por outro, mais denso. Com o coração aos pulos, Yue pensava na besteira que tinha feito: havia coisas que não deveriam ser ditas. E, puta merda, mesmo que fossem, não era nada certo falá-las depois de um velório, no meio de uma briga, depois de várias cervejas.

― Vi… ― começou a falar, vendo ele se afastar, andando pela sala feito um bicho acuado.

Victor deveria ser o cara mais parrudo e marrentinho que Yue conhecia, mas a doçura de que era feito quase escorria pelos dedos, igualzinha a melaço. Na lista de coisas que tinha se incumbido de protegê-lo em silêncio, pelo visto, Yue esqueceu de acrescentar seu próprio nome.

― Sabe o que me deixa mais puto nesse rolê? ― Vi começou a falar, parado no meio da sala com as mãos cruzadas atrás da cabeça e o peito subindo e descendo por causa da respiração acelerada. ― Não é cê tá mentindo aí sobre não estar afim do Tomás, ou… Ou sei lá quantas outras mentiras que pelo visto têm nessa conta. Isso é de boas. O que me deixa puto é cê virar pra mim e falar que ele foi o único carinha te dando atenção quando eu tô aqui tem anos, porra.

Pronto, estava dito. E isso não aliviava em nada a pressão no peito de Victor. Como um último objeto colocado sobre uma pilha instável, parecia faltar uns poucos segundos até a amizade dos dois desmoronar. 

No fim das contas, não era tão diferente do pai, afinal: nascera com o mesmo dom para destruir coisas bonitas. 

Yue o encarava do outro lado com o mesmo semblante ilegível, os lábios entreabertos, congelados numa resposta que nunca chegou. Ele suspirou pesado, esfregando as mãos contra o rosto até que as bochechas ficassem avermelhadas, então riu ― e o som pareceu tão deslocado do resto da cena que Vi chegou a se questionar se não tinha dormido, no fim das contas, e aquilo era algum tipo de sonho estranho. 

― É pra ser sincero, cuzão? ― Yue murmurou e Vi assentiu, atordoado. ― Sou doido por você. E tô doido pelo Tomás também, pelo jeito. Sei lá como lidar com isso. 

Ele chegou mais perto em vez disso, fazendo o coração de Victor acelerar pela forma como Yue o encarava. Jupi costumava dizer que Yue tinha olhos de raposa: astutos demais, provocantes. Acompanhados pela sombra de um sorriso, eles faziam Yue parecer ainda mais esfíngico: fosse para lançar bênçãos ou maldições, o rapaz teria o mesmo aspecto. 

― Desculpa ― ele sussurrou, erguendo o rosto para encarar Vi. ― Tem razão, sou um mentiroso do caralho. 

― Puto ― Vi rosnou, movido por aquela centelha de irritação que ainda não tinha desaparecido. 

― Repete ― Yue sussurrou, erguendo uma mão para beliscar de leve a nuca de Vi. 

― Puto…? ― o rapaz experimentou, puxando um sorriso de Yue. 

― Mais uma chance… ― Inclinando-se para frente, Yue mordiscou o pescoço de Vi, tendo o quadril apertado em resposta por mãos grandes. ― Repete. 

A raiva se transmutava em desejo, lançando-se contra barreiras erguidas há muito tempo, e que agora estavam às vésperas de se romper. O nariz mergulhou contra o pescoço de Yue, sentindo o cheiro fresco de sabonete.

― Eu sou afim de ti, caralho. Que porra… 

A risada de Yue durou a brevidade de um segundo antes de ser afogada por um beijo. Ele desejou aquilo por tempo demais: o calor da boca de Vi pressionada contra a sua em um beijo urgente, as mãos dele apertando sua cintura, pesadas, enquanto as suas próprias seguravam-no pela nuca, o impedindo de se afastar. Tê-lo assim era bom, certo ― colocava no lugar coisas que Yue nem sabia que estavam bagunçadas. 

Meu ― Yue grunhiu ao morder os lábios de Vi, arrancando dele a risada mais gostosa que já tinha ouvido. 

― Cê é desses, então? ― Victor afastou o rosto um pouco, tocando o rosto dele num afago, rindo mais uma vez quando Yue o mordeu no pulso, fazendo que sim com a cabeça. 

― Devia comer teu cu pra você ver de que tipo eu sou ― Yue rosnou, se divertindo. 

― Vixe, tá achando que a vida é fácil? ― Antes que Yue tivesse a chance de escapar, Victor o içou para o colo, os braços segurando-o com firmeza pela bunda. ― Vai ter que conquistar meu cu, pra deixar de ser manezão. 

― Isso é um desafio? 

Victor rosnou e Yue mostrou os dentes em resposta. Era o flerte violento de dois animais selvagens, e fazia o sangue dos dois ferver. Tinham vivido sob um clima amigável de competição a vida inteira: por que seria diferente agora? O jeito como Yue apertava as coxas ao redor do seu quadril já parecia o suficiente para fazer Vi ver estrelas, mas não ia deixar aquele imbecil emocionalmente constipado levar a melhor, com o olharzinho de raposa. 

Com um grito raivoso, Yue se viu ser jogado no sofá e riu pouco antes de receber com um ofego o peso do corpo de Vi sobre o seu.

― Nem fodendo que você vai meter em mim ― Yue resmungou, apertando o tecido da blusa de Vi entre as mãos. Podia sentir perfeitamente o sorriso dele contra o seu pescoço e o contorno do pau de Vi pressionado contra seu quadril, sob a roupa. A ideia de deixar Victor Lobo excitado por sua culpa quase poderia deixar Yue fora de si, e se entregaria fácil para aquela sensação, mas lutar contra ela era ainda mais divertido. Deixava o corpo muito arrepiado. Vi negando-lhe algo que queria muito, também. 

― A gente tá num dilema, então ― Vi sussurrou, pontuando o pescoço de Yue com mordidas gentis. ― Porque cê também não vai me comer sem luta!

Aquilo era tão bobo que fez Yue rir alto e beijar Vi no cantinho da orelha. O carinho o deixou mole o bastante para afrouxar o aperto em torno de Yue, e ele se aproveitou para forçar o corpo contra o dele em um movimento rápido. O resultado foram os dois caindo com estardalhaço no chão, numa confusão de mãos e gritos que provavelmente renderia mais uma multa.

Espalmando a mão no peito dele, Yue o forçou a continuar deitado. O brilho vitorioso em seus olhos era adorável a ponto de deixar o coração de Vi todo bagunçado. Ele ergueu a mão, encaixando-a no rosto de Yue, que recebeu o toque com um suspiro pesado. Victor tinha mãos grandes e quentes, tão gentis que com certeza acalmariam uma alcateia inteira, mas não a vibração em sua alma, que era como um deslizamento de terra cobrindo com violência qualquer receio. 

Precisava admitir aquilo: era bélico. Era onde seu coração encontrava algum conforto. Vi continuou ao seu lado mesmo sabendo disso: que era difícil, combativo, uma charada desnecessária. Yue nunca soube em que momento tinha se apaixonado, mas não amar Vi parecia tão fora de cogitação agora… Era isso, então, a algazarra no peito por culpa do seu melhor amigo. 

― Não vou ser só a porra de um casinho, Victor ― sussurrou, mordendo o polegar dele de um jeito pouco gentil. Vi fez uma caretinha, mas não afastou a mão. ― Vou ser seu namorado. 

Victor riu daquilo não como alguém fazendo troça, mas porque não duvidava que o coração acabasse parando com aquela honestidade seca como um tapa. E porque estava descobrindo o quanto gostava daquele ar mandão que Yue parecia saber sustentar tão bem. 

― Certo ― sussurrou com sinceridade, porque não tinha nenhum plano diferente daquele. O rosto quente era novidade: não conseguia lembrar da última vez em que se sentiu constrangido assim. Era bom ver que as bochechas estavam igualmente vermelhas. ― É pra pedir tua mão pro tio ou alguma coisa assim? 

― Cuzão!

Yue o apertou com as coxas e Vi voltou a gargalhar, girando para derrubá-lo, fazendo cócegas em Yue quando notou que ele encolhia os joelhos para afastá-lo. Estava sobre ele antes que Yue pudesse revidar, buscando outro beijo cheio de uma fome secular. Se lhe dissessem que esperava por aquele toque há muitas vidas, Victor não duvidaria. Gemeu baixinho assim que a mão firme de Yue se enganchou em sua nuca, o corpo tão perfeitamente encaixado sob o seu… Ele ergueu o quadril e Vi soltou um suspiro sofrido, a fricção dos tecidos espalhando arrepios até as pontas dos seus pés. A outra mão de Yue abriu espaço entre os corpos dos dois, seguindo o contorno de seu pau sobre a cueca e Vi mordeu os lábios dele, afogando um gemido, então outro. Os braços tremiam de expectativa e ele sentia o suor descer por suas costas igualzinho a uma carícia. 

Ambos estavam a um fio de ceder naquela guerrinha. Yue chamou seu nome contra sua boca, baixinho, e Vi pensou no quanto aquele poderia se transformar no seu novo som favorito. 

 ― Amo você ― Vi disse, afastando-se do beijo apenas pelo tempo de falar, então sorriu.

Com aquele sorriso, Vi era uma das imagens mais bonitas que Yue já tinha visto. Firmou a mão na nuca dele, a outra o acariciando no rosto. A cena ficou borrada: de repente, não era para Vi que estava olhando, mas para outra pessoa. Alguém que o beijava devagar no pescoço, entre suspiros satisfeitos, e aqueles sons o deixavam tão furioso. Alguma coisa escorregou de dentro da manga, um objeto duro e longo que Yue segurou firme na mão livre. Sentia tanta raiva. Tanta. A mão se ergueu como uma cobra armando o bote, prestes a afundar na nuca daquela criatura. Nada traria mais satisfação do que vê-lo se afogar no próprio sangue. 

Com um ofego, Yue empurrou Vi, fazendo-o cair sentado ao seu lado. 

― Ei! 

A realidade entrou em foco com a potência de um soco. Trêmulo, Yue ergueu as mãos, temendo estar com aquela coisa mortal em alguma delas. Nada. Eram só suas mãos, e Vi era apenas Vi quando se aproximou, confuso. 

― Tá tudo bem? 

Yue respondeu com um abraço apertado, sentando-se em seu colo, o rosto parcialmente escondido contra o peito dele. Não o odiava. Não queria vê-lo machucado nunca. Mesmo assim, a raiva que sentiu era real a ponto de engolir qualquer coisa boa que pudesse sentir. Era a antítese da esperança. 

― Acho que a falta de sono me fez ter uma dissociação ― Yue murmurou. O cheiro de Vi era real. O calor da casa também. Aquilo era a verdade, não a coisa absurda que tinha experimentado agora há pouco. 

― Você precisa dormir. 

― Daqui a pouco… ― Yue pediu, incapaz de afastar. ― Fica assim comigo só mais um pouquinho. 

Passou o nariz no peito de Vi e deixou que os deitasse de lado no chão, apertando-o contra o próprio corpo como uma muralha feita de ternura. 

― Também amo você ― disse quase sem voz, fechando os olhos com os afagos que Vi fazia em seus cabelos. 

― Mesmo? ― Victor sussurrou. A voz meio frágil, um pouco desprovida da confiança de que ele sempre se armava. ― Cê não vai sair da minha vida, né? 

― Nunca, manezão ― Yue garantiu. 

― Mesmo se eu tiver mais um namorado ou dois? ― Vi cutucou, tentando emprestar bom-humor à voz, mas aquela dúvida era tão honesta quanto a primeira. 

Yue riu baixo e o beijou no cantinho da boca, sabendo bem de quem ele falava. A imagem de Tomás enroscado entre os dois pareceu gostosa demais, aconchegante como uma memória agradável. 

― É só você não me largar nunca mais e vai ficar tudo bem.

Os olhos dos dois se encontraram. Palavras não dariam conta do que precisavam falar um ao outro agora, mas se entendiam no silêncio. Aquilo era certo de um jeito que poucas coisas seriam. As palavras também não dariam conta do medo, da certeza de que se procurassem com cuidado encontrariam um abismo intransponível entre os dois, escondido sob uma camada inofensiva de folhas. Yue pensou em falar sobre aquilo, assim como pensou em falar sobre o quanto amava Victor há tanto tempo que mais pareciam vidas. 

Em vez disso, voltou a beijá-lo. Pensaria sobre o medo depois. Por hora, enquanto os relógios marcavam 4h30 da manhã e a cidade começava a acordar, a única coisa que Yue desejava era compartilhar a cama e os sonhos de Vi. 

Continua…

No próximo capítulo… No próximo capítulo… É o início de uma nova era e Oz de Farkas ascende como Senhor dos Lobos. Preparem seus uivos.

O Capítulo 16 — Um sinal dos imortais chega no dia 12 de dezembro às 12h! 

Nos vemos semana que vem!

Ei, vizinho! Não esquece de me acompanhar nas outras redes! 💫

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