• Dead Bunny BL
  • Posts
  • 💫 Pontes Imortais ― Capítulo 14

💫 Pontes Imortais ― Capítulo 14

Algo para se orgulhar

Prontos pra encerrar a viagem deste ano pelo Vórtex com o fim do segundo ato? Quando voltarmos em janeiro para o terceiro e último ato do primeiro volume de Pontes Imortais, algumas coisas vão estar bem diferentes. Estejam prontos pra mergulhar mais fundo!

No capítulo anterior… O encontro improvável na casa de Annchi causou uma pequena torta de climão, cortada pela súbita morte do pai de Victor. Em Farkas, conhecemos um pouco mais sobre os motivos da presença de Kuí e Li’a e fomos deixados com um vislumbre de como a doença que tomava Ravi ficava mais e mais difícil a cada dia. Vamos descobrir os rumos da liderança de Farkas neste capítulo!

A trilha-sonora de hoje é Beautiful Crime, de Tamer! Já está na playlist!

ATENÇÃO! Este capítulo contém cenas de violência física e não é recomendado para menores de idade. 🔞

Capítulo 14 — Algo para se orgulhar

Farkas, Pré-Hecatombe

Se a gota de sangue escarrada tinha sido como o primeiro soco na mesa de madeira, suficientemente forte para abrir um trinco no tampo maciço, as semanas que se seguiram em nada se pareceram com o segundo. Contudo, foram igualmente destruidoras — é verdade —, transformando Ravi em uma estrutura inútil, por onde a vida escorria gota a gota através da rachadura que se abrira com a doença. 

Ao contrário do soco, aquele golpe não tinha sido nada rápido.

— Mestre — chamou Yan, a voz baixa em um quase sussurro para não alarmar os ouvidos irritáveis de Ravi —, precisa beber o seu remédio.

Era o terceiro que experimentavam desde que Yan tinha chegado com as ervas para o xarope na manhã depois do ataque do Fronteiriço. Ravi insistia na troca, agitado pela ausência de resultado ou de qualquer sombra de evolução favorável. O da vez era uma substância fina que se projetava com uma névoa sobre a colher, semelhante a uma neblina carregada, emaranhada por pequenos fachos esverdeados. Tinha o cheiro pungente de ervas frescas e precisava ser preparado todos os dias, nas primeiras horas da manhã, para que não estragasse antes do seu consumo. 

Yan tinha olheiras rasas que começavam a combinar com as de Ravi, mais profundamente esculpidas na carne. Ele aproximou a colher recheada dos lábios esbranquiçados do líder, voltando a chamar em um sussurro.

E de novo.

E mais uma vez. 

O quarto seguiu mergulhado em um silêncio solitário. Eram só eles ali: Ravi, de olhos semicerrados e opacos; Yan, sentado em um banquinho ao lado de sua cama; e Juno, que tinha sucumbido à doença em uma velocidade aterradora na última semana, adormecida com a ajuda de um chá calmante. A cama estava cercada de lobos-híbridos, rodeada por suas respirações sibilantes. 

— Mestre — voltou a chamar, pelo que parecia ser a sétima vez.

Os olhos de Ravi voltaram a ter algum foco, fixando-se na colher perto de sua boca antes de lançá-la aos ares com um tapa de costas de mão que também pegou em Yan, derrubando-o para trás. 

Yan caiu sentado no chão, o banquinho tombado entre as coxas e as vestes brancas agora manchadas de verde com padrões de fumaça pesada onde o remédio tinha tocado. 

— Não tente me envenenar, nivariano — gemeu Ravi, erguendo o corpo para se sentar melhor. 

As olheiras eram tão profundas que cavavam sulcos em sua pele clara, arroxeados a ponto de lembrarem marcas de uma luta. O rosto estava marcado por protuberâncias superficiais, pequenas e grosseiras como espinhas ou picadas de insetos, que se acumulavam majoritariamente ao redor dos lábios e narinas. 

— É o seu remédio, mestre — assegurou Yan, voltando a se levantar, checando Shu, que tinha corrido do cabelo para seu ombro bem a tempo de evitar a pancada. — Concentrado de ásaro com gengibre e raízes. Eu o fiz em defumação, como me pediu ontem. 

— Eu sei bem o que te pedi, rapaz. Não me tome por burro. — Ravi chamou Yan com a mão de volta para perto. — E lembro também de outra coisa que te pedi. 

Yan voltou para perto, erguendo pacientemente o banquinho para que pudesse se sentar. Tateou em busca de uma nova colher sobre a mesinha e a serviu com uma nova dose de remédio, perante os olhos de Ravi.

Em seu ombro, Shu mostrou a língua em reprovação. Ele sabia de tudo: como o gosto era amargo, como a névoa verde sobre a colher aliviava a tosse, mas causava dores e náuseas, como Yan a odiava. 

O curandeiro trouxe a colher até a própria boca, engolindo uma dose do remédio sem sequer esboçar uma careta. Exibiu a língua tingida de verde para que Ravi acreditasse, tudo em silêncio. 

— Bom garoto — acatou Ravi. — Agora sirva minha dose. 

Enquanto o líder se recuperava da careta que desfigurou suas feições, causada pelo amargor, Yan se deixou suspirar.

— Se suspeita que eu te envenene, mestre, deixe que eu chame um novo curandeiro de sua confiança — sugeriu em tom brando, os ombros travando ao sentir a mão de Ravi em seu cabelo.

Começou por baixo, perto da fitinha que envolvia suas pontas. E então subiu, roubando uma mecha de dentro da fita com o dedo, abrindo caminho entre ela e o resto do fios até seu ombro. Era desajeitado a ponto de fazer o laço se afrouxar e a tira de tecido cair no chão perto dos pés de Yan. 

Ravi se calou quanto à sugestão. Yan sabia o porquê. O líder tinha influência para usufruir de qualquer curandeiro farkasiano e ainda de outros, vindos de mais longe, através das pontes. Entretanto, a influência não reescreveria a história que ele havia apagado, aquela que ainda soprava na direção da extinta ponte perto da estrada principal: a de que o verdadeiro conhecimento em medicina das Cidades Flutuantes era um espólio da ciência nivariana, da qual Yan era o último versado remanescente.

O toque alcançou seu ombro. Shu tinha a boca aberta em expectativa. Um pouco mais perto e morderia um daqueles dedos grossos para que se afastasse. Yan intercedeu, tomando a mão de Ravi entre as suas e a afastando gentilmente de seu corpo. 

— Você é um bom rapaz — disse Ravi, apertando sua mão em resposta —, determinado e com mãos firmes e macias. Consigo ver porque meu filho valoriza tanto sua companhia. Fique e me faça outra massagem no peito, com aquele unguento de ontem. 

— O senhor acabou de tomar seu remédio, mestre. É melhor darmos um tempo para o seu corpo — explicou Yan. A náusea começava a vir, estimulada pela colherada de remédio. Por causa dela, sua mão tremia no toque, fazendo com que Ravi a apertasse mais.

— Yan — ele chamou, esperando pelo olhar do curandeiro —, agora.

O curandeiro engoliu o refluxo que lhe subia à garganta e assentiu, afastando a mão de Ravi da sua com a desculpa de abrir-lhe as vestes. Despido de suas roupas típicas e do crânio de lobo, Ravi parecia menos imponente. Enrolado em vestes brancas transpassadas e com a pele do peito queimando feito brasa, era bem menos intimidador. Diferente a ponto de que não aceitasse ser visto por nenhum leva-e-traz e tivesse tomado Yan como funcionário pessoal, para irritação de Oz. 

O curandeiro pegou o unguento sobre a mesa. Tinha aquele pronto já de antes, um preparo luminescente e poderoso, com aroma de eucalipto. Acabaria nos próximos dias se continuasse a usar com a frequência que Ravi solicitava.

Passou dois dedos pelo remédio, deslizando-os com pressão pelo peito do farkasiano. Mantinha os olhos fixos em seu peito, mesmo quando ele desandou a tossir, cobrindo a boca com um lenço manchado de sangue. Unido ao remédio, o unguento aliviou sua respiração ao fim da tosse. 

— Rapaz — Ravi voltou a chamar, segurando o pulso de Yan —, por que nós não melhoramos?

Yan encarou os olhos escuros de Ravi e esboçou um sorriso fraco. Virou a mão com a palma para cima, segurando aquela mão grande, suada, em um gesto de encorajamento. 

— Vocês estão melhorando, mestre — sussurrou. — Eu sei que o senhor não gosta de ouvir sobre Nivaria, mas lembra das doenças de inverno? De quando Oz a pegou pela primeira vez e como ele ficou? A doença de vocês me lembra uma evolução daquelas. O senhor já está parando de tossir sangue. Logo a tosse vai sumir. Até lá, estarei aqui se confiar em mim — disse, abaixando a cabeça respeitosamente, com o cabelo solto caindo por cima do ombro. — Para mostrar minha lealdade. 

Ravi retribuiu o sorriso, assentindo com a cabeça. Ergueu a mão até a orelha de Yan em um carinho meio bruto, afagando-a com o polegar perto dos pequenos brincos de argola. 

— É bom ver que você valoriza isso, mesmo que meu filho diga que sou bruto — disse. E então tossiu, afastando a mão. — Você é feito de material mais duro do que ele. 

— Eu sei — respondeu Yan. 

Mesmo que Maali insistisse em seu nome, não fora incluído no acordo formal de noivado. Não era filho de um líder nem nada que o garantisse tamanho status. Era apenas uma criança crescendo na fronteira, com um dom raro considerado valioso o suficiente para reservar seu lugar nas escolas de medicina das Cidades Flutuantes. 

Era um tesouro muito mais do que uma pessoa. Por isso, Ravi o quis no Hall, e fez questão de sustentar sua família e de ostentá-lo através das pontes em eventos importantes. Por essa razão, permitia que Oz passasse tempo demais com ele, mesmo que um casamento estivesse fora de questão desde que Maali foi tirado da história e Nivaria caiu. 

Quando Ravi erguia a mão ou proferia insultos, era um nivariano. Por outro lado, quando precisava garantir sua sobrevivência, não era em suas orelhas que sua atenção se fixava, mas em seus olhos, no brilho dourado que o dom havia injetado no fundo deles, que transbordava de suas íris como vapor de ouro. 

  â€” Temos novidades? 

A porta do quarto se abriu e Oz entrou. Ao contrário dos pais, seu porte continuava inabalável. Os ombros largos vestidos em roupas farkasianas, o cabelo adornado com o crânio de lobo. A doença que havia derrubado temporariamente seus pais não parecia ter sido capaz de encontrar seu caminho até o herdeiro. Yan garantia que permanecesse assim. Mostrando a palma da mão, pediu em silêncio para que Oz se mantivesse afastado.

— Está tudo tranquilo? — perguntou ele ao notar a mancha verde úmida na roupa de Yan. 

— Uhum — concordou o curandeiro, com um sorriso sem dentes. 

Pedindo licença, Yan se afastou de Ravi, higienizando as mãos com uma toalha embebida em água quente com ervas, só então indo até Oz. Sua cauda se envolveu ao redor dele assim que sentiu a mão dele em seu cabelo. 

Havia elementos suficientes para seus olhos de lobo: a mancha na roupa, as olheiras discretas, o tom esverdeado do interior dos lábios de Yan, causado pelo remédio, o cabelo solto, com a fita caída no chão. Foi a aparição de Shu sobre seu ombro, entretanto, o que o fez mostrar os dentes em uma irritação suspeita. 

— A lagartixa de repente mudou de opinião sobre mim e agora aparece quando estou por perto? — ele ironizou, aproximando o rosto para cheirar os cabelos de Yan. — O que meu pai fez desta vez? 

— Nada. Eu só estava ministrando uma dose de remédio. — Yan o acalmou com um afago perto dos cotovelos e um sorriso pouco convincente. 

Os lábios arqueados reforçaram suavemente a mancha verde vinda de dentro da boca. Oz pareceu se dar conta, porque deixou escapar um rosnado. 

— Você fez Yan beber o remédio outra vez? — Ergueu a voz, afastando Yan do caminho para chegar perto do pai, ainda sentado na cama, com uma aparência anestesiada. 

— Oz, sua mãe… — pediu Yan, reforçando para que olhasse a silhueta de Juno adormecida do outro lado da cama. 

Ele o ouviu, pois voltou a abaixar o tom, ainda que enfrentasse o pai com um olhar furioso. 

— Você implica que nosso melhor curandeiro é um traidor? — Oz fechou o punho, inclinando o corpo. — Isso faz Farkas parecer uma piada!

— Você faz isso muito melhor — rebateu Ravi da cama, a voz áspera raspando a garganta. 

Oz se afastou para evitar a briga. Yan o seguiu com passos apressados, se colocando entre os dois, com afagos gentis no pescoço de Oz para mantê-lo sob controle.

— Olha pra mim — pediu Yan em um sussurro. — Agora não. 

Oz respirou fundo, a mão indo de encontro à nuca de Yan, tocando-o sobre o cabelo. Se sentiu quando seus dedos roçaram a pele fria de Shu, não demonstrou. 

— Vai descansar — disse Oz, em um tom entre conselho e ordem. Tinha os olhos nas olheiras de Yan e no tom empalidecido de sua pele, causado pelo enjoo. 

— Eu preciso dele — atravessou Ravi entre tossidas. — Eu e sua mãe, garoto. Nós precisamos dele aqui.

Sem erguer o rosto, Oz encontrou o pai com o olhar. A impaciência nele era gritante, unida a outra coisa. Yan pensou em força. A doença de Ravi fazia Oz crescer. 

— Ele não pode ajudar exausto, pode? — Oz questionou, com ironia. 

Ravi notou o tom, pois ergueu a sobrancelha com uma centelha de confronto que não sustentava pelo excesso de remédio.

— Yan — Ravi chamou, mudando o foco para o curandeiro.

— Sim, mestre — ele respondeu, prontamente, virando o corpo em sua direção, mantendo Oz às suas costas. 

— Você tem até a hora da refeição. — Ravi lutava para manter o tom de líder, ainda que a respiração difícil o fizesse arfar, seu peito se mexendo pelo esforço. — Descanse, troque essa roupa, diga na cozinha para te alimentarem com algo energético. E, quando voltar… — fez uma pausa, buscando ar — me traga uma nova garrafa de rum vulcânico. 

— Não é prudente que beba, mestre — aconselhou Yan. Ravi ergueu a mão trêmula em uma ordem silenciosa. 

— É a única coisa que me acalma o estômago. Continue… me tratando com seus remédios, mas traga minha bebida, rapaz. 

— Sim, mestre — pontuou Yan com uma reverência calma. 

Em sua nuca, Shu resmungava em sibilos, pedindo por pão com carne de porco. Yan ergueu a mão, tocando-o no dorso para que se calasse até saírem de lá. E então buscou por Oz. 

— Vai — ele reforçou, com um aceno de cabeça. 

Queria pedir para que viesse junto, mas Ravi e Juno precisavam que alguém os vigiasse, alguém que pudesse chamá-lo rapidamente se fosse necessário. 

O maior obstáculo entre seu quarto e os aposentos do casal de líderes era a escadaria. Oz seria o mais ágil a transpô-los e tinha os pulmões fortes e a voz empostada que o alcançaria desde o alto dos degraus. 

Havia alguns leva-e-traz e pássaros-engrenagem do lado de fora. Tinha passado por eles no caminho quando voltou pela manhã com uma nova porção de concentrado de ásaro recém-preparado. Podia pedir com um sussurro para que fosse chamado caso alguma discussão dentro do quarto parecesse mais alarmante. 

Se despediu de Oz com um beijo na mão, rápido e doce, e se dirigiu à porta. Já segurava a maçaneta quando Ravi voltou a falar: 

— Rapaz, quando voltar, peça para os discípulos da guarda escoltarem o meu filho para a Casa de Repouso. 

— O quê…? — Yan começou a perguntar, num tom de voz baixo demais para que Ravi o ouvisse. Principalmente porque a voz de Oz soou mais alta e mais perto:

— Por quê?

Ele tinha cruzado de novo a distância do canto até perto da cama, o olhar furioso. 

Ravi pigarreou, ocultando um sorriso mínimo, de provocação. Evitava o olhar de Oz, se ocupando com a parede vazia bem na frente da cama, sem se importar com a proximidade ou com a indignação no olhar do filho. 

— Você é muito indisciplinado, garoto. E tem me olhado mais e mais com essa cara de afronta. Um bom líder é aquele que sabe identificar rebeldias… E cortá-las na hora certa — disse e virou o olhar para encarar Oz. — Você fica lá até sua mãe e eu… sairmos dessa cama. 

— Você é cheio de merda! — explodiu Oz com passos pesados. 

Yan se apressou, voltando a entrar no caminho. Oz tinha o punho fechado erguido contra o peito, os nós dos dedos apertados evidenciando as veias no dorso da mão. 

— Oz, olha pra mim — pediu Yan, segurando seu punho, a outra mão se erguendo até seu rosto. Nem assim conseguia atrair o olhar dele.

— Deixe ele, rapaz… Quanto mais ele gritar, mais tempo vai conseguir pra si mesmo naquela porra de lugar. Meu filho se esquece de quem é o líder do clã a quem jurou lealdade.

— Me trata como um discípulo externo! — rosnou Oz. 

— Enquanto você se comportar como um… 

Ravi começou a tossir. Pegou o lenço de cima da mesa, pressionando-o contra a boca. O som arranhado de seus pulmões era pesado e úmido. Oz rosnava, evitando que seus olhos, mergulhados em raiva, migrassem para Yan. 

Se não estivesse acamado, Ravi seria mais incisivo. Havia laços em Oz que só ele sabia soltar. Eles liberavam uma sombra de que Yan não gostava. Lutaria com unhas e dentes para mantê-la longe de seu lobo, como tinha prometido a Maali que faria, anos atrás. 

Um estridor deslocado chamou sua atenção, fazendo sua orelha se curvar para trás, procurando sua origem.

— Juno — sibilou Shu.

Yan arregalou os olhos, se virando para a cama. 

— Madame? — chamou. 

— Mãe? — A postura de luta de Oz se desfez. Ele abaixou o punho, contornando a cama a passos largos com Yan vindo logo atrás. 

Juno estava deitada de lado, o rosto projetado para fora da cama e os lábios sem cor. Buscou o ar sem encontrá-lo, a garganta soltando outro som parecido com o de um ronco desesperado. 

— Ar… — sussurrou ela, os olhos buscando Yan quando estendeu a mão. 

— Mãe! — repetiu Oz, alarmado. 

Sob os olhares de Oz e Ravi, Yan abriu espaço para chegar a Juno, deitando-a de volta na cama. Checou sua garganta e então os pulmões. O chiado que fazia em busca de ar era tremendo. 

— Oz, pega o respirador! — indicou apressado com a mão uma máquina no canto da sala. 

Era outra das tecnologias nivarianas, replicada de um jeito insatisfatório. Uma abominação, teriam dito os especialistas se visse aquilo. Metade carne, metade metal, com a aparência de um desajeitado pulmão de lobo e com forte cheiro de éter. Tinha sido trazida quando os dois foram isolados para tratamento, mas era a primeira vez que precisava ser tirada do canto atrás do biombo.

Oz a trouxe com agilidade. A máquina tinha uma longa mangueira no lugar de onde partiria a traqueia. Terminava em um bocal parecido com o de uma flauta.

— Aqui, madame — instruiu Yan apressado, encaixando o bocal entre os lábios esbranquiçados de Juno. — Oz, gira a manivela.

Oz não demorou a encontrá-la. Era grande e redonda, feita com uma barra de metal soldado que ficava bem acomodada em sua mão. Ele girou com vigor. A porção de carne do pulmão-máquina se contraiu, enviando ar para Juno através da mangueira. 

Ela respirou uma vez. E então de novo. Yan a acompanhava com os olhos cheios de expectativa. Alcançou rapidamente o unguento sobre a mesa, esfregando uma pequena quantia com os dedos contra o peito dela depois de afastar a gola da roupa. 

Deu certo por algum tempo, até que Juno fosse forçada a soltar o bocal quando entrou em uma crise de tosse violenta. 

— Madame! — chamou Yan, nervoso, com as orelhas dobradas para trás. Tomou o bocal da mão dela, tentando levá-lo de volta à sua boca. Juno o rejeitou com um tapa desesperado que pegou na mangueira e a derrubou da mão de Yan. 

— Mãe! — Oz ergueu a voz sem saber o que fazer. 

Juno puxou o ar sem muita força. E engasgou, empalidecida. 

Pela forma como seu peito parou de se mover, como se os pulmões tivessem virado pedra, Yan soube que não tinha mais como ajudá-la em vida.

Tomado por uma surpresa, Yan viu que a primeira atitude depois do estarrecimento veio de Ravi. Ele estendeu a mão na direção do rosto da esposa, tocando-lhe a bochecha em um afago antes de fechar seus olhos em um gesto trêmulo e silencioso. 

Oz tinha perdido qualquer reação. Nem mesmo a experiência de ver uma pessoa morrer pelas próprias mãos o tinha preparado para que visse a morte da mãe tão de perto. Ele se aproximou, apertando o braço dela com ambas as mãos, sacudindo-o levemente como se pudesse acordá-la. 

A chance de que isso acontecesse era palpável desde que o casal de líderes fora isolado no quarto, mas, se pudesse evitar, Yan nunca teria Oz por perto nessa hora. Suas orelhas de arminho continuavam viradas para trás. Shu havia se alojado no meio delas e espiava a cena com olhos arregalados. 

— Oz, abre espaço — Yan pediu, a mão tocando suas costas perto da ponta dos cabelos ondulados. 

Não houve muito movimento vindo de Oz. Nada além de alguns poucos passos para o lado, que abriram espaço para Yan se aproximar.

Os olhos dourados do curandeiro brilhavam em chamas alaranjadas.

— Eu vou fazer o meu melhor para trazer ela de volta — prometeu. 

— Não — rosnou Ravi em uma ordem baixa, cruel a ponto de esfriar o cômodo em uma lufada de realidade. 

— Mestre? — reagiu Yan com o peito gelado. — Mestre, se for desconfiança sobre mim, eu posso hoje mesmo chamar um substituto. Só me deixe fazer isso. Eu sou o único que pode.

— Eu sei — reforçou o líder Farkas, com o olhar sério. — E eu disse não. 

Ele tossiu. Em choque, as mãos de Yan congelaram no ar. O rosnado poderoso de Oz às suas costas foi a única coisa capaz de chamar sua atenção. 

— Yan, faça! — ordenou Oz, impaciente.

Yan moveu as mãos na direção do corpo de Juno, inclinado a ouvir Oz muito mais do que o próprio líder do clã.

— Se você fizer algo, rapaz — Ravi começou, se interrompendo para uma crise de tosse mais forte —, vou jogar esse seu lagarto no vórtex.

Shu se agarrou no cabelo de Yan, correndo de volta para a gola de sua roupa. As mãos de Yan ficaram paralisadas.

Ravi poderia, se quisesse. Poderia trancá-lo numa cela pelo resto da vida, jogar Shu no vórtex, cortar Oz da própria herança. E nem ao menos precisava sair daquela cama para isso. Bastava uma palavra.

— Por quê? — vociferou Oz, parado ao lado da cama. Apertava os punhos fechados, a força destacando os músculos do braço.

— O rapaz está certo… Ele é o único — elucidou Ravi, quase sem voz. A respiração era alta, arranhada. Ele pigarreou, sem resultado. — E ele já falhou uma vez há poucos dias. Eu preciso… dele com energia… caso eu precise. 

— Você é… um merda — reagiu Oz, meneando a cabeça. — Você não pode estar falando sério. 

— Estou, garoto… E já era hora de você aprender… a ser firme como…

Ele nunca teve chance de terminar a frase. 

Oz tinha mantido o máximo de controle em cada alfinetada do pai nos últimos tempos. Uma a uma, Yan viu como ele absorveu as agressões no próprio peito, o olhar endurecendo pouco a pouco, junto com os punhos. Aquele foi o estopim que não pôde conter. 

O punho fechado de Oz se ergueu no ar e desceu sobre o peito de Ravi em um soco potente bem na boca do estômago. 

Yan cobriu a boca com as mãos para conter um grito de susto. Ele deu a volta na cama, apressado, enlaçando Oz pela cintura e apertando o rosto contra a lateral de seu corpo. 

— Para — pediu. A crise de tosse que o soco causou em Ravi era desesperadora. Ele buscava ar, com o corpo de lado na cama, derrubando tudo que seu braço tocasse de cima da mesa. — Você precisa sair daqui. Eu vou resolver. Você precisa sair daqui agora, Oz!

— Não — ele respondeu, apoiando um braço sobre os ombros de Yan, com os olhos fixos nos movimentos moribundos do pai. — Eu não vou a lugar algum. 

Se soltando do curandeiro, Oz voltou a se aproximar da cama. Seu pai, outrora uma figura imponente, tinha sido resumido a farrapos barulhentos. Era esse homem que tentava intimidá-lo como se Oz não fosse um lobo? 

— Você está certo, pai — ele concedeu com a voz fria, pendendo a cabeça para o lado, o mesmo lado de onde partiu o sorriso torto que tomou seus lábios. — Já era hora.

Ravi arregalou os olhos quando Oz puxou a almofada que apoiava sua cabeça, empurrando-a contra seu rosto com o peso de um de seus braços. Era suficiente. 

Apenas um braço para eliminar o líder de seu próprio clã.

Yan sentiu o coração acelerar. Cobriu parcialmente o rosto com as mãos enquanto via o corpo de Ravi se contorcer na cama, o rosto desaparecido debaixo do travesseiro. 

Precisou de bem menos do que ele próprio esperava: menos esforço e menos tempo. Quando o corpo de Ravi parou de se mexer e Oz voltou a ajeitar a almofada sob sua cabeça, suas feições já tinham sido consumidas pela morte, os olhos congelados abertos, sem um único resquício de alma. 

— Eu ainda posso… — Yan ofereceu, chegando perto com passos trêmulos. 

Oz se virou e Yan soluçou, parando no lugar enquanto ele se aproximava e o envolvia com os braços em um abraço protetor.

— Você acha que minha mãe pediria para você me reviver se ela estivesse no meu lugar? — perguntou baixo, o tom de voz glacial. 

Yan passou os braços em volta dele, espalmando as mãos em suas costas. Havia algo diferente em Oz, do tom de voz à rigidez do corpo. Algo cujos lampejos já tinha vislumbrado e que ainda não aprendera a gostar. 

— Eu… — sussurrou e respirou fundo. Podia ser honesto com ele. — Não acho. 

— Eu também não — desabafou Oz, jogando a cabeça para trás com um suspiro. — Eles tiveram uma crise horrorosa. Morreram juntos, os dois, como um verdadeiro casal de líderes. Eu testemunhei como você fez tudo o que pôde. E eu… — sorriu. — Eu finalmente dei a eles algo para se orgulhar. 

Com um beijo suave na testa de Yan, Oz se afastou e voltou para perto da cama. Sentou-se no canto com uma postura displicente e pegou a mão sem vida do pai entre as suas, erguendo-a enquanto olhava seus dedos empalidecendo. Então a soltou para que caísse e pendesse da cama com o peso da morte. Por alguma razão que Yan desconhecia, aquilo fez Oz rir. 

Mesmo em meio a todo o barulho de antes, foi o riso de Oz o que mais atiçou os lobos outrora quietos. Eles se sentaram, ainda ao redor da cama, uivando como se tentassem acompanhar a risada do farkasiano. Os híbridos já tinham escolhido seu líder antes mesmo dos últimos suspiros de Ravi e esperaram em silêncio enquanto ele tomava o poder. Agora, a atenção de todos não saía de Oz. Ele fez um sinal com a mão para que se sentassem e mostrou as covinhas no sorriso quando eles obedeceram.

— Espero que os dois tenham tempo de se orgulhar antes de suas almas mergulharem no vórtex — ele disse, e ajeitou o crânio de lobo sobre a cabeça.

Continua…

No próximo capítulo… O funeral do pai de Vi é a fagulha que faltava para algumas mudanças. Quais? Veremos em breve.

ATENÇÃO! ðŸš¨ Este coelho está entrando em FÉRIAS até o fim do ano! Pontes Imortais estará de volta com atualizações semanais em janeiro!

O Capítulo 15 — Choque de realidade chega no dia 5 de janeiro às 12h!

Até logo!

Ei, vizinho! Não esquece de me acompanhar nas outras redes! 💫

Reply

or to participate.