💫 Pontes Imortais ― Capítulo 13

Timing perfeito

Dezembro chegou numa sexta e aqui estou eu fazendo o coelhinho do Natal e trazendo o primeiro capítulo deste mês! Esta semana e na próxima, vamos desbravar os dois últimos capítulos do segundo ato de Pontes Imortais - volume 1! E eu volto depois do recesso com muita gritaria e dedo no c* no terceiro ato! Partiu?

No capítulo anterior… Conhecemos um pouco melhor os planos de Kuí e Li’a em Farkas e também o gênio terrível de Ravi, pai de Oz, cuja doença progride a uma velocidade espantosa. Em São Paulo, tínhamos sido deixados na porta do apartamento de Victor Lobo depois de uma rinha de luta clandestina e de espiar um pouco da noite dele e de Tomás. O que será que esses últimos acontecimentos causaram nas outras relações da história? Veremos agora.

Leia este capítulo ao som de Complicated, da Avril Lavigne! Talvez seja uma indireta.

Capítulo 13 — Timing perfeito

São Paulo, 2023

“Ow, lindo, sua jaqueta ficou aqui”, dizia a mensagem enviada por Vi. 

Tomás estava na rua quando ela chegou. Carregava na mão o pequeno suporte de papelão com três copos de café. O Corgi na logo era tão simpático quanto o Persa era mal-humorado. Se pareciam um pouco com o que seria uma selfie de Vi e Yue no dia da rinha. 

Suspirou, balançando a cabeça. Se aqueles dois tivessem postado uma única foto juntos, teriam evitado uma boa fatia da torta de climão, mas não…! Yue era um esnobe com aquelas fotografias conceituais, ao passo que Victor parecia usar a própria câmera apenas para divulgar as coisas da loja — e umas fotos no espelho cujo único intuito parecia ser mostrar os músculos. Agora, tinha sorte de pelo menos Vi ainda tratá-lo da mesma forma. 

Tinha tido a sensação de que Yue desmarcaria o date com ele depois do que viu naquele galpão e estava certo. A mensagem chegou durante a semana. Um compromisso de última hora. Precisaria desmarcar o rolê dos dois, claro. Marcariam de novo em outro dia. Tomás conhecia aquele script. Yue nunca mais escreveria. Não depois de vê-lo com o irmãozinho dele.

— Irmãozinho é o caralho — mandou por áudio para Lótus. — Eles claramente têm uma tensão ali e são muito sem noção pra perceber. 

Bufou, fazendo um barulhinho irritado que escapou entre os dentes. Precisava tirar aquilo do peito antes de chegar em casa, ou sua avó notaria a acidez mesmo por trás de todo aquele cheiro macio de café. 

Passou em frente à loja, sorrindo ao notar a avó de costas atendendo uma família, e subiu sorrateiramente as escadas que davam para casa, colocando o frappuccino de Lótus na geladeira. Espiou dentro de casa, encontrando a porta do próprio quarto ainda fechada. Ele era um mimado, mesmo, que só acordaria em algumas horas. 

Se pudesse, ainda estaria dormindo também. 

— Tomás, você nem pense em voltar pra cama! Acha que eu não te vi, garoto? — A voz de Annchi ecoou pelo estreito corredor das escadas e o alcançou na cozinha. Ela gritava em cantonês acelerado, provavelmente para evitar o papelão na frente dos clientes.

— Já vou! — respondeu em português mesmo, o que a avó consideraria uma grosseria. Podia ouvi-la resmungar algo sobre isso lá de baixo.

Pegou do forno uma caixa com alguns pacotinhos de biscoito de amêndoas já prontos para venda e equilibrou os dois cafés sobressalentes na outra mão, voltando a descer. 

Era domingo cedo, o que significava duas coisas: a primeira, que as ruas da Liberdade logo se encheriam de turistas e pequenos grupos de locais aproveitando o dia livre; e a segunda, que era dia de ajudar a avó na venda de biscoitos, uma renda extra que sempre ajudava o faturamento mensal da Pedacinho de Céu. 

A noite anterior seria a do encontro cancelado por Yue. Não queria ficar sozinho. O drama que fez para Lótus foi tanto que ele próprio apareceu na sua porta, agarrado a uma mochila no formato de um morceguinho cor-de-rosa, informando que passariam a noite vendo séries e fechando os pacotinhos recém-assados de biscoito enquanto sua avó colocava os pés para cima sentada na poltrona. 

Foi divertido, não só pela companhia e as séries, como também pelo que veio depois, quando fecharam a porta do quarto. 

― A coisinha tagarela já acordou? ― Annchi questionou ao vê-lo se aproximar, pegando a caixa para dispor os pacotinhos no mostruário. 

Lá fora, sobre uma pequena mesa enfeitada com uma toalha bordada, um quadrinho anunciava, escrito em giz cor de rosa: Só hoje! 杏仁餅 - Biscoito chinês de amêndoas. Era um sucesso entre os turistas. 

― Ainda não e eu preferi deixar ele quieto. Olha… ― Com um sorriso de paz, ofereceu o copo ainda quente. ― Trouxe café. 

― É aquele metido a besta? 

— Aquele mesmo — respondeu. — Mas não peguei pãozinho hoje. 

Tomás bebeu o primeiro gole do seu próprio café, interrompido no meio por um empurrãozinho da avó em direção a um grupo de adolescentes de cabelo colorido que entrava pela porta. 

— Você lida melhor com os esquisitos — sussurrou ela em cantonês.

― Eu não disse que ele parece com o Eriol, gente?! ― uma das garotas anunciou com a voz esganiçada, dando pulinhos depois de apontar para Tomás. 

Precisou de mais um golinho de café antes de sorrir. 

— Pareço quem? — perguntou, inclinando-se sobre o balcão em sua melhor postura de recepção. 

Com o rosto corado, a garota buscou algo no celular e o ergueu, mostrando a Tomás. 

― O Eriol, de Sakura Card Captors. É o meu favorito!

Sob qualquer ponto de vista o personagem na tela era só mais um garoto genérico de shoujo. Tomás mordeu o canto do lábio, engolindo a indignação. Quando Lótus acordasse, ia fazê-lo jurar que não era um carinha genérico. 

― Ah, sim. Devem ser os óculos, hm? — Ele os ajeitou no rosto em um gesto charmoso, escondendo o sorriso para valorizar o ar de timidez, que fez as garotas rirem um pouco. 

Elas compravam mais quando agia dessa forma. Sua avó sempre tinha aprovado a estratégia. 

— Eu devia colocar você do lado da placa na rua — Annchi comentou, por brincadeira, quando o grupinho saiu pela porta. 

— Você podia tentar sorrir mais pros clientes também, vó — ele rebateu, escapando de um peteleco. 

― Na minha idade já posso escolher o que vou ou não vou fazer, garoto. Por exemplo… ― Ela passou as mãos sobre o avental rosado, apertando a bochecha do neto ao passar ao lado dele. ― Agora eu vou dar um pulo na loja da Rosa para ver se chegaram os meus chás enquanto o meu neto sorridente cuida da loja. 

― Vó… ― Tomás começou a resmungar. 

― Guarda pra quando chegar na minha idade, garoto! 

Com um meio riso, Tomás deu as costas para a entrada. Pensou que valeria a pena reorganizar a distribuição das prateleiras para dar destaque a alguns dos produtos com mais saída.

As canecas em forma de bichinho e os relógios com estampas floridas eram alguns dos mais populares. Tomás os rearranjou na prateleira, trazendo as revistas para a gôndola atrás da mesa com os biscoitos. Talvez o cheiro de amêndoas emanando dos pacotinhos estimulasse os clientes a olharem um pouco mais para as revistas. Alguns daqueles títulos estavam na loja há tempo demais. 

Ainda rearranjava as últimas revistas na prateleira mais baixa quando ouviu passos. Espiou por baixo da mesa o par de botinhas pretas. 

— Boas vindas! — desejou em cantonês, repetindo em português logo depois enquanto se levantava para que o cliente pudesse vê-lo. 

— Bom dia ― a pessoa respondeu em um cantonês nativo. ― Dois pacotinhos de biscoito, por favor. 

Tomás só entendeu perfeitamente o “bom dia”, mas o resto do conteúdo era fácil de deduzir. Levantou-se para encontrar, no meio da frase, os olhos cinzentos de Yue. 

A boca de Tomás se entreabriu em surpresa, sem reação. Aquilo ali era uma bela ironia da vida. Bela, inquestionavelmente, como a cor daqueles olhos. 

— Só dois hoje? — perguntou em português, recuperando o controle e abrindo um pequeno sorriso, gentil e impessoal. — Como foi seu compromisso ontem? Tranquilo?

— Chato — Yue respondeu, desviando o olhar. — E sua noite?  

— Ótima. — Tomás sorriu um pouco mais, se permitindo olhar pra ele por um instante em silêncio antes de rir. — Yue, você não me respondeu. Só dois?

A resposta veio com um aceno e um “hm” baixinho que foi quase fofo o bastante para arrefecer a chateação de Tomás. Quase

— Você não conhecia a loja. Bem vindo à Pedacinho de Céu — comentou Tomás, enquanto andava até o caixa, trazendo os dois pacotinhos de biscoitos, colocando-os graciosamente em uma sacola de papel. — Dinheiro ou cartão?

― Débito ― Yue respondeu para encurtar caminho, buscando a carteira dentro da mochila. Era a mesma que costumava levar ao hospital, cheia de bottons. Tomás percebeu, pousada ao lado dele, uma grande sacola retornável, cheia de compras. ― Minha amiga petista tá por aí? 

― Sua amiga petista precisou ir resolver umas coisas. ― Tomás pegou o cartão da mão dele em um gesto burocrático, sem erguer os olhos até concluir o pagamento. 

Devolveu o cartão, então entregou a sacolinha com os biscoitos. Os dedos de Yue resvalaram nos seus, um toque sutil seguido de um choque breve que, por pouco, não fez Tomás rosnar. De novo essa coisa irritante! Já começava a parecer zoeira de algum deus intrometido. 

― Tomás, eu preciso de ajuda aqui, garoto! 

Da porta, Annchi gritou em cantonês, chamando a atenção de ambos. Trazia nos braços uma caixa que parecia pesada demais para seus braços magros. Yue colocou a sacolinha de biscoitos sobre o balcão, chegando até ela em poucos passos largos. 

― Eu ajudo ― disse em cantonês, tomando a caixa para si com facilidade. ― Ponho lá dentro? 

— Finalmente você arrumou um namoradinho que acorda num horário decente?

Yue pigarreou, ignorando a onda de calor que se espalhou pelo rosto, adicionando camadas de vermelho às bochechas amarronzadas. 

― Somos amigos ― ele explicou, apontando com o queixo a caixa nos braços. ― Lá dentro? ― voltou a perguntar. 

― Lá em cima. ― Annchi fez uma pausa para prestar mais atenção em Yue, erguendo as sobrancelhas em uma dúvida que não chegou a manifestar. ― Consegue? 

Ela indicou as escadarias estreitas, buscando o neto com o olhar assim que Yue começou a subir as escadarias, sendo recepcionada por uma careta. 

― Que foi? ― Annchi questionou, recebendo um dar de ombros birrento em resposta. ― Então baixa a porta um instante que a Rosa mandou umas coisas pra gente, vem ver. 

Yue chegou primeiro. O corredor dava direto na cozinha de azulejos em estilo português. O cheiro morno e açucarado dos biscoitos ainda estava suspenso no ar, feito névoa mágica. Ele avançou para colocar a caixa na bancada da pia, virando-se para ver Annchi terminar de subir. 

― Tem mais? 

― Era só isso mesmo. ― Annchi voltou a desamassar o avental. ― Escuta, eu te chamo de menino ou menina? O tagarela ali me ensinou que é educado perguntar.

Yue nunca tinha pensado em Tomás como tagarela. Ficou a um passo de perguntar algo sobre isso quando notou a presença de mais uma pessoa na cozinha. 

Lótus estava sentado à mesa que ficava atrás da porta aberta. A cozinha era apertadinha, mas Annchi tinha tido o capricho de encaixar aquela estreita mesa de chá bem debaixo de um suporte para chaves. O tagarela não era muito mais alto do que Tomás. O porta-chave ficava alguns centímetros acima de sua cabeça. 

Ele ou Vi teriam nocauteado aquele negócio com o cocuruto vezes demais se frequentassem aquela casa. 

— Arre égua, vovó. Vai ficar me expondo? — perguntou Lótus com a voz baixa e melodiosa logo depois de se levantar, deixando o copo de frappuccino na mesa. Seu olhar de divertimento sobre o recém-chegado era impossível de ignorar. — Oi, Yue. 

— E aí…? — Yue reagiu, deixando a pergunta no ar para ver se ele se apresentava. — Você já sabe meu nome. 

— Entre outras coisas — disse e deu de ombros, com um risinho.

— Lótus — pediu Tomás, à porta, balançando o rosto corado —, sério?

― Menino ― Yue disse, parecendo sem contexto pelo menos até que os olhos voltassem para Annchi. ― Sou menino. 

Ou meio que isso, mas explicar assim já facilitava as coisas um bocado. 

— Tomás — Ancchi chamou, remexendo a caixa sobre o balcão com entusiasmo enquanto tirava pequenas caixinhas de chá e desembrulhava uma coleção de pequenos copos com desenhos feitos à mão —, olha que mimo. Passa um chá pra mim enquanto seus dois namorados se entendem. Tem mais algum pra vir ou são só esses dois?

— Vó… — Tomás se aproximou, tocando o braço dela em um pedido. Se seu rosto corasse mais, ela teria que verificar se tinha febre. — Não vem mais ninguém. 

De seu bolso, o celular vibrou. Desceu o olhar até ele, acompanhado pela avó com olhar curioso. 

— Deve ser coisa da faculdade — ele se defendeu.

— No domingo — acrescentou Annchi, balançando a cabeça. 

Tomás colocou água para ferver na chaleira e se encostou na parede, vendo a avó usar o tom assertivo para enfatizar a Yue que insistia para que ele ficasse e provasse o encantador combinado de ervas no novo jogo de chá que ganhara da amiga. 

Tirou o celular do bolso, espiando a mensagem com o nome de Vi que pipocava entre as notificações. O timing não poderia ter sido mais preciso. 

“Posso passar mais tarde pra levar sua jaqueta?”, dizia. Tomás segurou o riso e a vontade de dizer para que fosse naquela hora, então. Por que não? Assim já podia ter os três para o chá. Já estava vermelho o suficiente de qualquer forma. 

“Tá ✨”, digitou, indo se sentar ao lado de Lótus enquanto esperavam a água ferver. 

— Me dá um gole disso, lindo — pediu, enquanto já pegava o frappuccino para se servir de um golinho, deixando o celular na mesa com a tela virada para baixo. 

— Tá roubando meu café — resmungou Lótus, deitando folgadamente a cabeça em seu ombro. 

— Eu comprei o seu café — Tomás respondeu em um sussurro, erguendo os olhos para Yue. — Você trabalha hoje?

― Não ― ele disse, sincero. Apertado numa banqueta, parecia um dos personagens das histórias que contava, grande demais para aquela cozinha pequenininha. Apontou o copo de frappuccino. ― Essa cafeteria é legal. 

— É — Tomás desviou o olhar. Era um dos lugares onde tinha pensado em ir com ele. 

— É uma cafeteria metida a besta — resmungou Annchi, balançando a cabeça. — Você é desses também? 

— Você fica reclamando tanto da cafeteria, vó. Eu devia parar de trazer seus croissants — Tomás cruzou os braços, desviando o olhar para o celular que vibrou. 

— Tira. Tira mesmo o único mimo que sua avó ganha. — Virando para Yue, ela perguntou, indignada: — Você tem avó, mocinho? Faz isso com ela também?

― Bonitinho, toma partido não que hoje teu mar não tá pra peixe, viu? ― Lótus cantarolou, abrindo o sorriso ainda mais quando teve o olhar de Yue sobre si. 

O rapaz deu uma espiada em Tomás no celular. É claro que tinha cancelado o encontro. Depois da rinha, e de algumas cervejas, tinha se acalmado o suficiente para optar em dar um passo para trás. Vi e Tomás ficavam bonitinhos juntos, afinal. Tanto que o peito até dava uma amolecida ― o que o convenceu de que não era exatamente ciúmes o que sentia, embora aquele sentimento continuasse sendo uma incógnita. 

Tomás sentiu o olhar sobre si e escolheu não retribuir. No celular, outra notificação de Vi foi o suficiente para tomar sua atenção. 

“Tá fazendo o que aí?”, Vi perguntou. 

O olhar de Tomás passeou pela mesa, pelas mãos que pertenciam à sua avó, Lótus e Yue. Inusitado e esquisito demais para explicar.

“Largado no quarto. Por quê?”

“Te mandar um negócio.”

Ergueu o olhar quando a avó o chamou. Ela contava para Yue sobre como o tinha criado praticamente sozinha enquanto ele só concordava, acenando com a cabeça, sem chance de cortar a conversa. Levaria algum tempo. 

Lótus bebericava o frappuccino brincando com um fiapinho solto da toalha de mesa, Seus olhos verdes eram tão afiados que quase fazia parecer que entendia a conversa em cantonês. 

Não estava tão ruim, afinal. Tinha imaginado uma situação bem mais constrangedora quando subiram. Se permitiu um sorrisinho antes de descer o olhar de volta para a tela do celular, para a foto que Vi o havia enviado e para…

Um pau.

Deixou o celular cair da mão na mesa, com a tela para cima, atraindo atenção dos três. Por sorte, foi rápido o suficiente para cobri-lo com a palma antes que vissem qualquer coisa. O deus intrometido que brincava com seu destino parecia estar do seu lado pelo menos desta vez, ainda que seu rosto queimasse num vermelho bem intenso. 

— O chá — falou, quase sem voz, levantando de uma vez e se apressando até o fogão. 

Sua mão tremeu um pouco enquanto os servia. Tinha dito que gostava daquilo, é claro. Gostava mesmo daquele tipo de conteúdo. E Vi achou que estava sozinho quando mandou. Quase foi o responsável por expôr o pinto dele na mesa do chá. 

Para seu outro casinho.

Para o irmãozinho com tensão sexual dele.

Para sua avó

Afastado da mesa, respirou fundo, se permitindo espiar o conteúdo da foto mais uma vez. E abriu um sorrisinho. 

“Gostoso ✨”, enviou em resposta. 

— Recebeu nude, foi? — perguntou Lótus por cima de seu ombro, quase o fazendo derrubar o celular de novo antes de guardá-lo. Lótus emendou uma risadinha e uma mordida doce em seu ombro. Gostava daquilo, de como Lótus nunca escondeu seu afeto. ― Foi o gostosão do omegaverso? Ou é novidade?

― Foi ele ― Tomás murmurou em resposta, pegando o bule de chá para levar de volta à mesa. 

― A gente tá te atrasando muito, menino? ― Annchi perguntou para Yue, vendo ele balançar a cabeça em negativa. ― E não é de falar muito também, pelo jeito. 

― Eu falo por nós dois, bonitinho! ― Lótus emendou, passando por trás de Yue só para implicar, fazendo um afago rápido em sua cabeça. Ele tinha cara de que ficava sem jeito com toques inesperados, como realmente pareceu ficar. 

― Fala mesmo. Fala pelos quatro, se a gente deixar ― Annchi resmungou. — Só não tá falando tanto ainda porque tava dormindo, o tagarela folgado. 

— Eu trabalhei até tarde ontem montando seus pacotinhos de biscoito, vovó. Isso cansa — disse ele, fazendo beicinho.

― Pra compensar que veio bater na porta da minha casa no meio da madrugada. ― Annchi exagerou. Não eram nem oito da noite quando Lótus tinha chegado, mas simpatizara com aquele ali. Era o seu jeito de demonstrar. ― E já que eu não tô te atrasando, Yue, posso pedir outro favor?

― Claro. 

Annchi podia simpatizar com aquele ali também, apesar dos ferros na cara e do cabelo que merecia um corte decente. A boa disposição dele era bastante honesta. 

Tomás sorriu com a conversa quando trouxe o chá para mesa. Cada copinho tinha um desenho diferente. Reservou o desenho de duas cobrinhas entrelaçadas para Lótus assim que pousou os olhos sobre aquele. O de flores, para sua avó. Pareceu certo que Yue ficasse com o copo pintado com um belo koi de manchas laranjas. O seu — Tomás sorriu ao ver — tinha o desenho de um simpático lagarto com a língua à mostra. 

O celular voltou a vibrar. Espiou-o desta vez com a tela protegida pelo tampo da mesa. “A gente se fala daqui a pouco. Vou pegar a moto”, escreveu Vi.

“Você já ta vindo aqui?”, Tomás chegou a perguntar, mas não teve resposta. Respirou fundo.

A mistura de ervas da infusão era boa, como sua avó havia prometido. Deixava a situação muito mais tragável. 

― Ficou bom mesmo… ― Com um suspiro satisfeito, Annchi se permitiu apreciar um gole de chá antes de continuar falando. ― Filho, lá embaixo, na loja, tem umas caixas me incomodando há meses e que só ignoro porque, veja bem, nem eu, nem meu neto somos atléticos. Te incomodo se pedir pra tirar as malditas do caminho pra mim? 

― Não ― Yue garantiu, bebericando o chá. ― Minhas compras estão lá embaixo de qualquer jeito. 

— Vó! — repreendeu Tomás com a voz baixa. — Você conheceu ele hoje e já coloca pra carregar caixa? 

— De boa — defendeu Yue. — Eu resolvo. 

Yue desceu assim que terminou o chá. 

Com Lótus indo se vestir e sua avó lavando cuidadosamente os preciosos copos novos, Tomás desceu com ele para reabrir a Pedacinho de Céu. 

— Yue — chamou de perto da porta recém aberta, vendo-o se abaixar para erguer uma das caixas nos braços —, espera. 

Não havia ninguém no caminho e Yue tinha a atenção nele. Talvez nunca mais tivesse a chance de tirar aquilo do peito. 

Se aproximou, cruzando os braços. Os olhos ficaram nos dele por um bom tempo antes de se desviarem com um suspiro.

— Você não vai remarcar o rolê, né? — perguntou. 

Yue tinha as sobrancelhas erguidas, o olhar sobre Tomás ao ouvir a pergunta. Aquilo era honesto. Exigia bem mais coragem do que seu plano original, mas, olhando com calma, também era uma chance de deixar as coisas melhor resolvidas.

― É o meu melhor amigo ― sussurrou. Tomás esperava vê-lo titubear ou desviar o olhar, e estava pronto para se desencantar daquela história a partir dali, mas Yue manteve a atenção sobre ele. Apertava a caixa nos braços como se precisasse de algum tipo de conforto. ― É o meu único amigo ― reforçou, para que as coisas ficassem claras porque não importava se tivesse a galera da banda ou os colegas dos muitos bicos: se as coisas ficassem apertadas demais, Victor era a única pessoa que se importaria em avisar. ― Não vou ficar no caminho. 

— No caminho… de quê? — Tomás rebateu em voz baixa, o olhar se erguendo de volta, vasculhando o dele em busca de algo que não saberia explicar. 

Por que teria que ser ele e Vi ou ele e Yue? Por que não poderiam ser algo diferente disso?

Mas como colocar isso em palavras do jeito certo? Isso e o fato de que parecia óbvio que “ficar no caminho” não era a única questão entre ele e o Vi no campo afetivo.

— De… tudo — explicou Yue. 

Ele, tampouco, era capaz de transformar em palavras todas as coisas complexas se revirando em seu coração. Não poderia haver eles três porque nunca existiu ele e Victor. E nunca tomaria nada de Vi. Sabia da própria capacidade de ser egoísta com muitas coisas, mas nunca com as que envolviam o amigo. Ver Tomás e Vi felizes era uma ideia que o deixava feliz — mesmo que estivesse de fora da equação. 

Tomás tinha chegado tão perto que a caixa era a única coisa em seu caminho. Yue apertava as mãos ao redor dela, pressionando-a contra o peito. Ela o ajudava a segurar outras coisas menos palpáveis, como as imagens que tinha na cabeça, que se pareciam muito com lembranças perdidas de coisas que nunca aconteceram. 

Nunca tinha passado as mãos nos cabelos de Tomás, mas tinha a perfeita memória de seus dedos correndo por eles, fios longos e macios, no que parecia um sonho antigo. Com ele perto assim, outra imagem vinha à tona: como podia acomodá-lo entre os braços perfeitamente e deitar o queixo sobre sua cabeça se ele precisasse de aconchego. 

Não devia ter esse tipo de pensamento, não com o primeiro carinha com quem tinha visto Vi tão empolgado. 

— Tomás, o Vi é um cara massa demais. E vocês têm um lance legal. Se gostar, curte isso. Se não, fala pra ele — falou em frases curtas, pontuadas por pequenas pausas secas, a voz sumindo quando ajeitou a caixa nos braços pra subir as escadas. — Me desculpa. 

Envolvidos na conversa, não chegaram a ouvir a moto estacionando. Yue só se deu conta da presença de Vi quando estava na calçada, contornando a parede que dividia a loja da portinha que levava à casa. Atrás de si, ouviu o ofego surpreso de Tomás, mas isso não chamou tanto a sua atenção quanto a expressão do amigo. 

Com os olhos na tela do celular, Victor parecia alguém suspenso entre a surpresa e o choque. 

― Que aconteceu? 

Vi virou-se na direção dos dois muito devagar, registrando Yue primeiro e então Tomás, quase escondido às suas costas. Por um momento não entendeu bem o que estava fazendo. Tinha ido entregar a jaqueta de Tomás, certo? E aí aquela mensagem chegou e sua primeira ideia foi de avisar ao Yue, e Yue estava ali, surpreendentemente bem na sua frente.

― Victor ― Yue tornou a falar, a voz ganhando um novo verniz de autoridade.

― Meu pai morreu ― ele respondeu, atordoado, voltando a encarar o celular. — Acabei de saber.

Continua…

No próximo capítulo… A doença do Mestre Farkas e de sua esposa continua a progredir. Parece que desta vez nenhum dos remédios de Yan está fazendo efeito. Como vamos terminar o segundo ato da história? 

O Capítulo 14 — Algo para se orgulhar chega no dia 8 de dezembro às 12h! 

Até logo!

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