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💫 Pontes Imortais ― Capítulo 10

Seus segredos estão seguros comigo

Cheguei e vim com mais um capítulo de Pontes Imortais, diretamente de Farkas, Cidades Flutuantes, Vórtex!

No capítulo anterior… Yue é o mais novo funcionário / sócio da LoboMuamba e parece que não é só isso que ele e Vi têm pra dividir. Ouvi dizer que rolou uma aposta. Alguém pode refrescar minha memória? Temos até a semana que vem para confabular sobre apostas e crushes, porque hoje é dia de voltar para Farkas e para uma certa raposa que acabou de ser descoberta por Yan e Shu.

Sou clichê e adoro uma boa trilha-sonora de segredos, então leia este capítulo ao som de Secret, da The Pierces, que já está na nossa playlist!

Pontes Imortais

Capítulo 10 — Seus segredos estão seguros comigo

Farkas, Pré-Hecatombe

De onde o olhava, Yan teve a sensação de que a existência de Maali se prendia às Cidades Flutuantes como um fio de vida pendurado onde antes existia uma ponte, tão frágil que esteve a poucos palmos de seu rosto e não foi capaz de reconhecê-lo.

Ela era como um personagem de uma história de infância. Não de qualquer história, mas da sua.

Maali sempre teve uma beleza ímpar e era alguns poucos anos mais velho, só o suficiente para que fosse dele o rosto que um pequeno Yan — envolto em peles e mantas quentes na roda de histórias em Nivaria — associava a príncipes de reinos distantes e heróis imortais.

Ele estava mesmo muito mais pálido, a pele acinzentada e sem vigor, como a de um enfermo. Preservava sua beleza, agora adornada pela cascata de mechas cor de neve de Li’a. Até mesmo as orelhas de raposa tinham empalidecido misturando-se à cor nova dos cabelos. Eram cobertas de pelo pretinho em todas as suas memórias antigas.

— Yan — a pessoa deitada na cama chamou. Já não tinha certeza de qual nome usar.

Recuou, apertando as mãos atrás do corpo no mármore frio da cômoda. Seus olhos, arregalados, miravam a figura com o mesmo empenho de quem via um fantasma. Recordou-se de alguns versos da música que a própria Li’a havia performado noites antes para o clã Farkas.

Quando morre uma rosa, só lhe restam seus espinhos.

De igual beleza, entretanto como um espírito que se recusa a deitar sob a terra.

— Se estamos repassando os nomes, o meu é Shu Lan — o lagarto comentou com um sorriso bobo, atraindo por um instante a atenção da raposa.

— Shu… — ela repetiu em um chamado sem voz.

Da cama, Li’a estava atônita. Tinha aberto os olhos guiada por um cheiro doce e um frescor que lhe havia tomado a face, só para encontrar Shu ao seu lado e a cauda felpuda de Yan agitando-se contra as costas dele, enquanto ele admirava sua cômoda, o rosto curioso refletido no espelho.

Era a primeira vez que via um nivariano tão perto da antiga ponte. Desde a queda de Nivaria ao vórtex, Farkas era facilmente a pior ideia de refúgio para um sobrevivente. Entretanto, encontrava Yan vivo bem diante dos seus olhos.

— Como você sobreviveu? — ela perguntou, se apoiando nas mãos para erguer o corpo, inclinando as pernas para fora do colchão. — Onde se escondeu e como me encontrou?

— Fique onde está — Yan alertou, erguendo a voz até notar a expressão ferida no rosto de Li’a. — Você pode ter outro desmaio — completou, mais suave. E então se aproximou, a passos curtos e incertos, até voltar a se sentar sobre os lençóis amassados.

Shu se apressou, mancando até perto de sua mão, para que Yan o transportasse de volta para o ombro.

— Você me perguntou onde me escondi? — confirmou Yan, com a testa franzida.

— Sim! — A raposa mostrou os dentes, o rosto de expressão estarrecida parecia à beira do choque. — Em Farkas? Com Ravi logo ali, com ele pronto para te entregar aos lobos…? Onde você e sua família se esconderam? Nós não… Estamos mais em Farkas? Como? — Ela olhou em volta, agitada.

A tenda estava igual, mas sempre esteve assim qualquer que fosse o destino. O incenso tinha notas do cheiro de mormaço da cidade, suas roupas eram as mesmas que usava antes de desmaiar. Não podia ter passado tempo suficiente para uma desmontagem, uma viagem e uma realocação.

— Estamos em Farkas — Yan assegurou. — Maali, eu não fugi.

A raposa arqueou as sobrancelhas, surpresa. Tinha bons olhos para detalhes, algo que o assombro lhe tinha tomado temporariamente. Agora, com um instante de análise, notava a costura laranja de suas vestes brancas. Os olhos foram tomados por uma névoa úmida. Ela os esfregou, irritada. Não podia deixar que Farkas lhe tomasse o direito de olhar para ele com nitidez.

— Você é um prisioneiro — concluiu, aos sussurros. E então o puxou para seus braços, antes que ele pudesse protestar. Dedos ossudos apertaram Yan na nuca e nas costas quando Li’a o trouxe contra o peito e soluçou. — Eu vou resolver.

Yan sentiu o coração acelerar quando seus lábios esbarraram no ombro dela. Perto assim, o aroma inebriante de Maali era como uma presença onírica em meio aos perfumes de Li’a.

Quando eram pequenos, eram aqueles mesmos braços que o envolviam, não importava a situação. Muitas vezes buscando o mesmo conforto que pretendiam passar. Pensando nisso, Yan o abraçou de volta, apertando o rosto em seu ombro com tanta ênfase que seus óculos deslizaram para a testa e então caíram sobre um amontoado de tecidos no colchão.

— Não… — começou, mas tinha a voz embargada.

Não era um prisioneiro. Não precisava que ele resolvesse. Não queria que ele se arriscasse. Não imaginava que ele estava vivo.

Eram tantos nãos acumulados na garganta que foi a única palavra que conseguiu proferir antes de completar com um sussurro choroso:

— Eu pedi a Niva para que te trouxesse de volta. — Ele tocou a cascata de cabelos brancos, uma mão subindo instintivamente até a orelha mordida, acariciando a cicatriz que aquela luta deixara. — Todos os anos, desde o rompimento da ponte. Onde você estava?

— Com a Ópera — disse, sem fazer questão de esconder aquele fato. — Primeiro como refugiado, então como interno. E finalmente como diplomata, quando aprendi o encanto para esconder as orelhas. — Li’a suspirou, erguendo a mão fria até tocar os dedos quentes de Yan sobre sua orelha. — Ele falhou quando seu cheiro me fez sentir…

Em casa.

Como quando adoecia, na juventude, e Yan ficava no leito ao seu lado, esperando que melhorasse. Sempre acordava disposto a mostrar que estava bem, assim ele não precisaria perder seu sono por preocupação. Despertou com essa ideia fervendo a mente e abriu os olhos para encontrar as cores da Ópera representando tudo menos o lar com o qual tinha sonhado. Uma lembrança dolorida de que a casa onde queria estar tinha há muito deixado de existir.

Por culpa deles.

— Por que voltou? — questionou Yan em um sussurro, afastando-se só o suficiente para que seus olhos encontrassem o cinza apático dos de Li’a. — Se Farkas parecia tão assustadora, se você achava que não havia nenhum de nós aqui… Maali, por que você voltou se não foi por mim e pelo…

— Oh, vejo que meu nariz não me traiu. Nós realmente temos visitas.

A voz era baixa e melodiosa, como uma sinfonia divertida ou uma canção infantil. Parado à entrada do cômodo de Li’a na tenda, Kuí os encarava com um sorriso gentil convertido em suspeito pela presença dos olhos de cobra.

Shu aproveitou a deixa para se esconder no cabelo de Yan, perto da fita que prendia as pontas dos fios, puxando alguns sem querer de um jeito desconfortável, o que Yan respondeu com uma careta.

— Desculpe a intromissão, Senhor Instrutor — disse Yan, se levantando e curvando o corpo em uma reverência.

Tinha — não por acaso, percebera Li’a — colocado o corpo entre ela e Kuí, em um movimento que poderia ser lido como falta de jeito, mas que era a brecha perfeita para que escondesse as orelhas.

Esperto, ela pensou. Yan não tinha como adivinhar o quanto Kuí sabia sobre sua identidade, ou o quanto dela podia revelar. Mas os olhos de Kuí eram rápidos com detalhes. Se suas orelhas fossem um problema, seriam um que já teria entrado em seu radar àquela altura.

— Madame Li’a se sentiu mal hoje na cidade — ele continuou, com um sorriso calmo. — Provavelmente uma onda mais forte dos mesmos sintomas de calor que o senhor teve. Espero que a infusão tenha ajudado, pois vou recomendar o mesmo tratamento para ela.

Às costas de Yan e escondida do olhar intrigado de Kuí, Li’a franziu a testa discretamente.

— Sim, meu querido. — Kuí se antecipou, tomando entre as suas uma das mãos de Yan. — Seu presente foi perfeito.

Ele abriu um sorriso enfático, ao qual Yan não teve como não retribuir.

— É bom saber — respondeu o curandeiro.

— Me entristece que sua visita tenha vindo sem que houvesse qualquer preparativo para recebê-lo. — Kuí fez um bico. — Pelo menos, cheguei a tempo, mesmo que atrasado. Imagine só se não conseguisse ao menos oferecer um chá… As pessoas teriam que parar de me chamar de senhor e se referir a mim como um mero instrutor.

— Um chá? — arriscou Yan com um sorriso, virando o corpo para espiar Li’a às suas costas e então voltando-se para Kuí com um aspecto desconcertado. — Eu sinto muito, senhor. Estava no caminho para ver minha família. Não sei se soube, mas apareceu um…

— Fronteiriço, é claro — interrompeu Kuí. — Não há com o que se preocupar. A Guarda de Lobos foi muito efetiva em contê-lo. — Com um suspiro, levou a mão ao rosto. — Uma loucura. Um Fronteiriço aqui em Farkas, tão longe do vórtex. Me parece uma aparição rara. Nos traz alguma paz ver que os lobos estão bem treinados. Apenas um chá, por favor. Nós insistimos.

Ele usava o plural, embora Li’a não tivesse proferido uma palavra desde sua entrada.

*

Uma das cobras douradas de Kuí deslizou pela mesa, rodeando o pequeno copo de cerâmica de Yan e rastejando por cima de sua mão.

— Ela gostou de você, querido. Deve achar, assim como eu, que é um bichinho muito interessante — comentou o instrutor, aproveitando a brecha enquanto trazia à mesa um bule de água fervendo.

Li’a, sentada ao lado do curandeiro, comia uma pequena porção de frutas doces, um pedido de Yan que Kuí não demorou a acatar. O olhar dela sobre Yan era fixo e óbvio. Maali sempre foi uma potência: em atos e em intenções; uma força que não se mostrava quando o assunto era discrição. Yan era bem mais eficiente. Alternava o olhar igualmente entre ambos e então o desviava dos dois, para se atentar a pequenos detalhes do ambiente e à cobra que tentava passar por entre seus dedos.

— Ela é muito mansa, Senhor Instrutor — comentou, afagando a cabecinha do animal com as pontas dos dedos.

— Essa, sim. Mas ambas te tratariam de forma apropriada. Elas têm um bom faro para companhias. E, por favor, me chame de Kuí.

— Kuí — testou Yan, com a voz baixa, não vendo o suave arrepio que o instrutor escondeu. — Combina com você.

Kuí pousou o bule sobre uma proteção de bambu. Ao seu lado, havia uma estrutura rebuscada de vidro dividida em duas partições separadas por uma pequena válvula.

— É muita falta de educação pedir para que faça o chá, querido? — perguntou Kuí, apoiando o rosto na mão. — Aquele mesmo do presente que me deu?

— O remédio? O senhor… Você — ele se corrigiu ao notar a fagulha de tristeza no olhar de Kuí — não está se sentindo bem?

— Me sinto ótimo, mas nossa querida madame está tão fraca que nem abre a boca — explicou. — E o que diriam sobre nossa educação se não a acompanhássemos em um gole de chá. Estou errado?

Yan sorriu e balançou a cabeça em uma negativa. Não havia contraindicações para o chá. Ainda que o mestre Farkas acreditasse se tratar de um medicamento poderoso, aquele em especial não passava de uma suave mistura de ervas para o bem-estar. O próprio curandeiro tinha o cheiro da combinação exalando em seu quarto quase todos os dias, um cuidado para se manter bem disposto naquele clima. Ao que parece, o faro do Senhor Instrutor não era bom apenas para as companhias.

Abriu a bolsa para coletar as ervas. Seu cabelo deslizou sobre um dos ombros, revelando Shu escondido perto de sua nuca. Ele encarava a cena, intrigado.

Kuí tinha ordenado que não fossem incomodados, embora estivessem no cômodo central da tenda, uma ampla sala de convivência, decorada com tapeçarias e almofadas de muitas cores, e iluminada por lampiões flutuantes em formato de bola.

O primeiro chá que Yan serviu foi para Li’a. Parecia mesmo fragilizada, a pele empalidecida pela anemia. Bolsas suaves contornavam-lhe a pálpebra inferior, mas não afetavam muito sua beleza.

— Madame — chamou, oferecendo o copo fumegante, completando-o com duas esferas de gelo de um balde trazido por Kuí —, deixe-me checar sua febre.

Aproximou a mão com lentidão. O toque suave ainda assim provocou um choque discreto. Aquilo acontecia com ele e Maali com certa frequência incômoda.

Kuí aproveitou o momento para se inclinar sobre a mesa, tomando o bule e servindo os demais copos enquanto murmurava baixo uma melodia antiga.

— Seus segredos, querido — ele começou, e a melodia ecoava no ar —, estão seguros comigo.

Yan entendeu no mesmo instante que Kuí sabia de algo, embora não fizesse ideia do quê. Um refugiado, Maali tinha dito. Era a isso que se agarraria.

— Obrigado — agradeceu Yan, com uma reverência delicada de cabeça. — Por ter cuidado de uma nivariana.

Se inclinando levemente para frente, Kuí saboreou as palavras com um gole de chá.

— Yan — chamou Li’a, roubando sua atenção —, está mesmo seguro nesta cidade?

— Não tem com o que se preocupar. Eu prometo — garantiu, finalizando com um sorriso quando a mão fria da diplomata tocou sua orelha. — E posso vir mais vezes para cuidar da sua saúde. Deixei com a senhorita Tapisa algumas recomendações. Essas ervas — destacou, tirando da bolsa um saquinho recheado — vão ajudar.

Colocou-as sobre a mesa. Quanto mais olhava para Li’a, mais traços de Maali reconhecia. Os olhos angulosos, a boca pequena por baixo do batom. Passar uma noite em sua companhia não daria conta de migalhas da sua saudade.

— Está certamente muito seguro e bem abrigado na casa de líderes importantes — pontuou Kuí, recuperando a atenção roubada —, para onde eu deveria acompanhá-lo de volta depois do chá. O jovem mestre Farkas parecia tão descomposto com a sua ausência.

— Oz? — Yan rebateu sem pestanejar. — Não sabia que ele estava me procurando.

Yan se levantou, se afastando prontamente da mesa. Ao seu lado, Li’a abriu e fechou as mãos, as pontas das garras de vidro furando a pele fina das palmas. As perguntas rasgavam sua garganta feito ácido, mas ela cuidava para que as palavras certas ficassem acomodadas na ponta da língua, até o momento oportuno.

— Oh… — Kuí cobriu os lábios com as pontas dos dedos. — Eu não imaginei que fosse urgente. Pode terminar seu chá, querido. Eu te escolto em segurança logo em seguida.

Apoiando as mãos sobre a mesa, Li’a se colocou em pé ao lado de Yan, puxando as mãos dele para perto do peito.

— Yan, ninguém pode saber as minhas origens — reforçou.

O curandeiro assentiu. Não tinha qualquer intenção de revelar a presença de Maali na cidade, nem mesmo para Oz. Antes precisava que a situação fizesse algum sentido perante os próprios olhos.

— Confie em mim — assegurou Yan. — E cuide melhor de si mesmo. Sabe onde me encontrar se precisar.

— Te chamo — garantiu a raposa, com um aceno de cabeça. E um sorriso frágil, mas visível. — Por favor, fique seguro — sussurrou, aproximando a boca para pousar uma sombra de beijo em sua testa.

Yan sentiu a voz falhar. Apertou as vestes dela em um gesto afetuoso quando assentiu. Maali não tinha com o que se preocupar. Estava seguro.

— Kuí, pode me acompanhar? — pediu.

— Será um prazer, querido. É uma pena que o jovem mestre e suas aflições tenham tão pouca consideração pelo chá alheio.

Kuí ajeitou as vestes, acomodando as cobras ao redor do pescoço como faria com um cachecol precioso. Yan não demorou a ter o instrutor ao seu lado, oferecendo-lhe o braço em um gesto cortês.

— Sereia, eu não me demoro — advertiu Kuí. — Siga os conselhos do nosso curandeiro e se alimente melhor. Não pode viver de cantar. Eu me lembro de ter dito isso algumas vezes no passado.

O olhar dela, que acompanhou Kuí até fora da tenda, era uma promessa silenciosa de que o chá, ainda que interrompido, se prolongaria assim que ele estivesse de volta.

*

— Me deixe pontuar mais uma vez o quanto apreciei o chá que me deu de presente, querido — Kuí rememorou, caminhando por Farkas com a mão de Yan pousada na curva do braço.

De seu pescoço, as cobras gêmeas projetavam a cabeça na direção dos cabelos de Yan, a língua balançando no ar de um modo curioso.

— Ei, madames! — Shu cumprimentou, pousando a cabeça sobre as patinhas no ombro de Yan, acompanhando o movimento das cobras com o olhar. — É uma bela noite para um passeio sem um Fronteiriço surgido do vórtex pronto para arrancar nossas cabeças, não é?

— Seu animal é espirituoso, Yan — elogiou o instrutor.

— Eu não chamaria Shu Lan de meu animal, Kuí — respondeu Yan em um tom divertido. — Ele é meu amigo, da mesma forma que as suas cobras são as suas.

— Um amigo cansado de surpresas por uma noite! — reforçou o lagarto.

— Shh, Shu. — Yan aproximou a mão, tocando o indicador sobre a cabeça coberta de manchinhas marrons. — Não pode falar sobre isso.

— E para quem eu falaria? — resmungou Shu, rolando os olhos. — Para aquele cachorro pulguento enorme e burro? Quando você nos viu compartilhando histórias feito duas comadres?

A risada de Kuí foi uma distração espirituosa. Começava aguda e ritmada como a de uma jovem, terminando em um ronco de porquinho.

— Sua risada é encantadora, Kuí — comentou Yan, oferecendo um sorriso e um aperto suave no braço. Qualquer criatura que cuidasse de Maali poderia sempre considerá-lo como amigo.

— Seu amigo é um encanto, querido. Não um maior do que você, mas ainda assim… — Se recompôs, tocando as costas da mão no rosto em leves batidinhas, limpando vestígios de lágrimas de riso no canto dos olhos. — O jovem mestre Farkas deve apreciar igualmente seu humor.

O caminho que levava a tenda da ópera até a moradia do clã Farkas era quase uma linha reta que tangenciava o centro da cidade. Passaram pela praça, pelo coreto que acomodava curtas falas de mensageiros e do líder do clã e por um jardim displicentemente decorado com grossos pingos de sangue de Fronteiriço. Yan demorou o olhar em um canteiro de ervas de chá tão alvejado de sangue que algumas folhas tinham sido temporariamente tingidas de vermelho. E emendou um suspiro.

— Sabe se ele se feriu? — conferiu Yan em voz baixa.

— Quem? — Kuí rebateu a pergunta com divertimento. — O jovem lobo ou a raposa? Quanto a um deles, você não tem com o que se preocupar. As dores do passado já foram há muito convertidas em cicatrizes. Quanto ao outro… Pode ver por conta própria.

Apontando com o olhar, Kuí recepcionou Oz com um sorriso com ares de superioridade e um afago gentil pelos dedos de Yan, ainda em seu braço.

— Veja se não é o jovem mestre Farkas. Eu te disse, querido, que não havia motivo para se alarmar quanto à sua saúde.

Quando Oz os alcançou, as palavras em seus lábios tinham sido tão cozidas em preocupação que se converteram em rosnados.

— Yan — chamou ele, a um passo de distância, o olhar virando bruscamente para Kuí.

Oz era alto o suficiente para que Yan só chegasse a ter a altura de seus ombros por conta das orelhas de arminho. Que Kuí também não passasse da linha de seu pescoço, entretanto, fazia com que o jovem lobo parecesse ainda maior.

— Quem você pensa que é — começou Oz, tomando para si a mão que Yan tinha acabado de deslizar para longe do braço de Kuí — para escoltá-lo pela cidade à essa hora da madrugada na mesma noite em que abatemos um Fronteiriço?

— Oz — entoou Yan, com a voz calma, espalmando a mão livre no peito do farkasiano —, eu pedi para que ele me escoltasse.

— Ademais, eu penso que isso faz de mim não menos do que uma figura decente, não concorda, jovem mestre? — provocou Kuí, enrolando um dedo entre os cabelos. As cobras se erguiam de seus ombros com o bote preparado.

Oz mostrou os dentes. Não tinha nascido com o dom da paciência para o jogo de palavras, mas bastava uma, dita no tom errado, para que jogasse todas elas porta afora e quem mais ousasse proferí-las. Kuí parecia ter os bolsos recheados de palavras erradas, decoradas com sorrisos.

— Oz, vamos entrar — pediu Yan. Oz segurava-lhe as mãos contra o peito, protegidas por sua palma. O toque era quente e protetor. Para Yan, familiar. Era mais parte dele do que qualquer tentativa de intimidação que adotasse com os outros.

— Entre. Eu já vou — Oz avisou, indicando o portão entreaberto às suas costas.

— O cachorro estressado está especialmente puto hoje — bafejou Shu sob uma mecha de cabelo de Yan.

— Shu, você não ajuda — desabafou o curandeiro, erguendo o olhar até o rosto de Oz. — Vem comigo. Kuí só fez gentilezas.

— Algum dia, eu vou jogar esse lagarto por cima da ponte até Banjora — ameaçou, num tom que era mais provocação do que promessa. Em tantos anos, Oz nunca moveu um dedo para ferir Shu, apesar de suas inúmeras bravatas.

— Pode me falar mais sobre isso na cama — sussurrou Yan, o que quase conseguiu desviar a atenção de Oz, não fosse o pigarro divertido de Kuí com toda a situação.

— Saia desse sereno, querido. Eu acredito que o jovem mestre não tenha mais do que uma recomendação das melhores ruas de Farkas a se percorrer à noite.

— Vai — Oz reforçou, voltando a indicar o portão.

Vencido, Yan suspirou, balançando a cabeça, caminhando a contragosto até dentro do Hall.

Oz esperou que ele entrasse antes de soltar o ar pelo nariz, chegando um passo mais para perto de Kuí. Tão de perto, podia ouvir o sibilar feroz das serpentes.

— É um aviso — começou. O tom de voz era baixo e gutural. Pela primeira vez, parecia efetivamente ameaçador. — Não sou versado nos hábitos do Fim do Mundo, ou seja lá de onde você veio, mas Yan não é um servo e muito menos alguém que te deva intimidade. Deixe ele desconfortável uma vez e vai descobrir que ser um influente amigo do meu pai não te dá todas as liberdades em Farkas.

— Muito ouvi sobre o instinto protetor dos lobos — Kuí comentou. — Admirável, embora o veja agora pela primeira vez. Pode dormir em paz, jovem lobo. Sou apenas um instrutor de ópera, ainda que me deixe lisonjeado ser tomado por tamanho risco. Mostra que os lobos estão preparados para diferentes tipos de perigo.

Com um sorriso, Kuí recuou um passo antes de virar o corpo, caminhando na direção contrária, pela mesma rua pela qual viera. A forma como balançou displicentemente as ondas de cabelos cor de rosa fazia Oz pensar que, se não fosse pela merda de diplomacia e pela voz daquela beldade a quem chamavam de Sereia, estaria contando os dias para a partida da ópera.

Continua…

No próximo capítulo… Apostas foram feitas e com as cartas na mesa… Alguém tem que ganhar. Ou não? Vou estar com vocês quando espiarmos pela janelinha, mas não conte pra ninguém. É uma rinha de luta clandestina, afinal.

ATENÇÃO! ðŸš¨ Semana que vem é a última do mês e teremos a revelação da nossa arte comemorativa de Halloween. Não se esqueça de se inscrever na newsletter Bunny Hour (deadbunnybl.beehiiv.com) pra ver ela antes de todo mundo!

O Capítulo 11 — Mostre sua cauda! chega no dia 3 de novembro às 12h!

Até logo!

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