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💫 Pontes Imortais ― Capítulo 11 (parte 1)

Mostre sua cauda!

Boa sexta, trabalhadores e emendados do feriado! Cheguei anunciando o FDS e o capítulo novo de Pontes Imortais! Este capítulo ficou gigante, então dividi ele entre esta semana e a próxima, pra que vocês possam saborear sem pressa. Veremos hoje a primeira parte. 

No capítulo anterior… Oz e Kuí protagonizaram a torta de climão nos portões do Hall da Conflagração. Não podemos culpar o futuro Senhor dos Lobos pela desconfiança, né? Já há algum tempo é perceptível que o Senhor Instrutor é bem mais peçonhento que suas duas cobrinhas companheiras. Voltamos hoje à São Paulo. Se lembram da aposta entre Vi e Yue? Quem será que vai levar essa? 

A trilha-sonora deste capítulo é Bonekinha, da Gloria Groove. E ela tem tudo a ver com a cena que leremos hoje!

Pontes Imortais

Capítulo 11 (parte 1) — Mostre sua cauda!

São Paulo, 2023

Tomás precisou parar no meio da escadaria de casa para buscar do bolso o celular que não parava de vibrar. Por um segundo imaginou que poderia ser a avó telefonando de dentro do banheiro, por pura birra. Era outra mensagem de Lótus e agora já se acumulavam umas oito mensagens apenas no tempo que levou para avisar ao Vi que já estava descendo.  

“Me manda localização. E foto do lugar. Se não tiver notícia tua a cada hora vou chamar a polícia! 🚔 Pq eu não te fiz desistir dessa ideia idiota?”

Escondendo o riso, Tomás respondeu enviando sua localização em tempo real para Lótus. 

“Mas vai dormir, não passa as próximas 8h espiando minha localização 😚”, enviou logo depois. 

“Agora pronto! Tu esquece que eu sou a pessoa que passa o voo todo olhando a rota do avião no mapa. Manda o cachorro ser educado! 🐾”

Ainda devia estar com uma expressão bastante risonha quando finalmente desceu porque Vi escancarou um sorriso em resposta ― e aquelas covinhas eram quase indecentes debaixo da luz amarela do poste. 

― Vou fingir que essa carinha é por minha causa, tá? ― Vi brincou, guardando o celular no bolso. ― E você finge comigo porque eu sou sensível. 

― E se for por sua causa de verdade e eu nem precisar fingir? 

Tomás se aproximou, pousando na bochecha de Vi um beijo suave para, logo em seguida, roçar o nariz por ali, emendando uma risadinha afetuosa. 

― Sua barba tá crescendo ― comentou, tocando o braço dele com as duas mãos ao se afastar um passo. ― Te fiz esperar demais? 

― Só o suficiente ― Vi respondeu num tom mais baixo, brincando com a mecha clara entre os cabelos de Tomás. 

 Havia algo de fascinante em encarar Victor enquadrado naquela cena: sentado sobre uma moto milionária, um pé descansando no meio-fio, a postura relaxada apesar de já ser tarde da noite em uma ruazinha vazia na Liberdade. Era como se não tivesse preocupações ou como se deliberadamente decidisse ignorá-las. 

Ou ele era muito confiante ou muito temerário. Tomás gostava das duas possibilidades. 

― Fica muito longe daqui? ― Tomás voltou a falar. Vi ainda brincava com seu cabelo feito um filhotinho entretido. ― O lugar que a gente vai? 

― Na Mooca. Um pouco depois dos trilhos onde rolam aquelas festinhas meio indie, sabe? 

Vi pegou o capacete extra, oferecendo a Tomás. O rapaz não tinha percebido na primeira vez, mas agora, com calma, notou os muitos adesivos de lua colados ao objeto. Pelo tom de verde que se insinuava no branco-cinzento dos adesivos, Tomás imaginou que fossem do tipo que brilha no escuro. 

― Você tem um irmãozinho? ― questionou, ajeitando o cabelo antes de colocar o capacete. 

A pergunta fez Vi franzir a testa e então rir, entendendo de onde vinha a dúvida. 

― Quase isso, mas ele não é tão inho assim. Bate quase aqui ― deixou a mão na altura do ombro para demonstrar ― e tem a porra dum gancho de esquerda poderoso. Vocês vão se conhecer hoje. Vai ser do caralho! Sobe aí, lindo. E segura bem, viu?

A última frase foi acompanhada de um olhar que deixou o corpo de Tomás entorpecido. Não se fez de rogado com o pedido. Os braços envolveram a cintura de Vi e Tomás deitou a cabeça em suas costas, o peito colado a ele. Tudo combinava com Victor: o cheiro de gasolina, o perfume amadeirado, o ronco do motor quebrando o silêncio das ruas. 

Por alguma razão, Tomás pensava em animais. Animais velozes, atravessando grandes distâncias, os lombos metálicos sacudindo seu corpo. Era uma ideia curiosa e acolhedora, que o fez fechar os olhos. 

― Chegamos ― Vi anunciou, cedo demais para o gosto de Tomás, que queria preservar um pouco mais daquele quase sonho entre as mãos. 

À primeira vista não parecia mais do que um galpão industrial abandonado, escondido atrás de um portão metálico e alto, cujas placas de proibido estacionar tinham sido cobertas por pichações. O lugar tinha dois andares, paredes de tijolinho vermelho já empalidecidas pelo tempo e grandes janelas de vidro, a maioria quebrada. 

Era escuro e quieto do jeito errado, o tipo de lugar que parecia se inclinar em uma ameaça, como uma casa mal-assombrada. Tomás pensou nas mensagens preocupadas de Lótus, sentindo o sangue gelar. Talvez ele estivesse certo, afinal. Em que tipo de loucura tinha se enfiado? Apertou a jaqueta de veludo em volta de si, buscando conforto. 

― Ei… ― Vi chamou e, ao olhar para trás, Tomás percebeu a forma como ele coçava a nuca de um jeito arrependido. ― A cara é feia mesmo, olhando de fora. Não precisa entrar. A gente dá meia-volta agora mesmo e eu te levo em outro canto. Onde cê quer ir? 

Dois passinhos e Tomás conseguiu apoiar a testa contra o peito de Victor. Ao levantar a cabeça, encontrou o calor dos olhos dele, o que foi incentivo o bastante. 

― Aqui mesmo. Eu fiquei curioso, como você disse mesmo que se chama? 

― Clube da Luta ― ele respondeu, engrenando uma risada. ― Por causa do filme, é. Besta assim. Tem uma galera que chama só de Gaiola também, por causa da gaiola das lutas. 

― Como vocês ficaram sabendo desse lugar? ― Tomás quis saber, arriscando um novo olhar na direção do galpão. Tudo continuava estranhamente quieto. 

― Um amigo que conta para um amigo que conta para um amigo ― Vi enumerou, a mão pesando de um jeito confortável entre os cabelos de Tomás. ― A gente fica ou a gente vaza, lindo? Ficar parado na rua é que não rola. 

― A gente fica. 

Tomás estava esperando por uma atmosfera mais… ilegal. Uma senha para entrar, algum tipo de convite exclusivo ou sinal. Victor bateu com os nós dos dedos no portão e alguém abriu uma portinhola, espiou os dois na rua e em seguida abriu espaço para que entrassem com a moto. Outros veículos estavam por ali, não muitos. Tomás imaginou que a maioria das pessoas viesse a pé ou em grupos no mesmo carro. 

― Tua sombra já tá lá dentro, filhote. 

Quem falou foi a mesma pessoa que abrira a porta: uma travesti imensa, montada sobre botas de couro vermelho. Usava um collant costurado com pedrinhas de strass em tons de vermelho e laranja, as alcinhas finas deixando à vista os ombros largos, rodeados pela tatuagem de um dragão chinês: a cabeça de um lado, a ponta do corpo do outro. O cabelo tipo black power estava pontilhado de purpurina. 

Era uma explosão de luz contra o tecido escuro da noite, e fez Tomás soltar o fôlego, aliviado. 

― Fala, Jupi! Esse aqui é o Tomás ― Vi o conduziu para perto dela. ― Lindo, a Jupi comanda a casa. Se precisar de qualquer coisa, corre pra ela. 

― Veio lutar, coisa bonitinha? ― Jupi perguntou, erguendo o queixo de Tomás com os dedos para avaliá-lo. 

A maioria das pessoas perguntaria aquilo num divertido tom de brincadeira, mas ela parecia falar sério, como se enxergasse em Tomás algum tipo de potencial oculto. 

― Hoje não ― ele respondeu, quase convencido de que era mesmo verdade e de que qualquer dia poderia, casualmente, entrar numa gaiola de luta. 

― A hora chega, bem. Mais dia, menos dia. ― Jupi riu. ― Vão lá, ainda não começou a encher. 

Entrar no galpão era como invadir a barriga de um monstro. Parecia vazio a princípio, os passos ecoando no concreto. O cheiro úmido era pungente, mas agradável e fresco. Luzes de emergência presas ao chão iluminavam o espaço em lugares estratégicos, de forma que não chamassem atenção. Eles atravessaram um corredor estreito até uma portinha vermelha cheirando a tinta fresca. 

Tomás se imaginou como o personagem de uma aventura. Aquela porta era seu limiar: não havia garantias de retorno ao atravessá-la. 

Não era mais iluminado do outro lado, mas ali as luzes no chão eram vermelhas e púrpuras, criando grandes manchas coloridas nas paredes e no teto. Os graves da música que escapulia do sistema de som faziam seu corpo tremer. Tomás pensou que a fumaça densa no ambiente fosse gelo seco até perceber que tinha cheiro de almíscar e desabrochava de grossos incensos espalhados ao redor, emprestando ao ambiente um clima libidinoso que o deixou arrepiado. Vi estacionou atrás dele, as mãos envolvendo sua cintura para que ficasse fácil alcançá-lo com um beijo no pescoço. 

― Nunca pensei numa rinha clandestina como uma coisa tão… gay ― brincou, a voz escapando manhosa. Ele inclinou o pescoço para o lado, oferecendo mais espaço para os beijos de Vi. 

― A Jupi foi campeã de MMA. Tem um histórico foda. ― A voz de Vi soava abafada, os lábios colados à pele de Tomás numa trilha de beijos. ― Ela tem academia oficial, faz trabalho social, a porra toda, tudo nos conformes, mas se perguntar, também vai falar que ser subversiva tá na alma e precisa alimentar a coisa. 

― E se alguém se machucar a sério? ― Tomás questionou em uma dúvida honesta. 

― Tem médico de prontidão, tem viatura da polícia por perto com a mãozinha molhada pra dar uma força, tem tudo pensado. 

Era quase imoral, mas de um jeito bom, como se aquele espaço tivesse dado um nó no sistema e o feito funcionar às avessas, em favor de gente para quem esse mesmo sistema nunca olharia. Devia ser culpa do incenso, da música ou das luzes, mas Tomás se sentiu muito quente de súbito. 

― Me beija… ― pediu num quase ronronado, virando-se para ficar de frente para Vi. 

Victor tinha mãos grandes e quentes, do tipo que arrancam suspiros ao menor toque. Pelo menos funcionava assim com Tomás que, na ponta dos pés, se deixava ser envolvido pelo contato. Mantinha uma mão apoiada no peito de Vi. Era gostoso assim, mantendo entre os dois uma pequena distância proposital para que o rapaz deixasse escapar barulhinhos muito parecidos com rosnados sempre que tentava se aproximar demais. 

― Você tá me provocando ― Vi grunhiu. A linha dos lábios formava um sorriso satisfeito. 

― Estou? ― Tomás rebateu, fingindo inocência. Com a ponta dos dedos, circulou o contorno de uma das orelhas de Vi, passando o outro braço em volta de seu pescoço de forma que pudesse colar o peito ao dele. ― É pra parar? 

― Porra… ― Vi resmungou, puxando com os dedos o tecido da blusa que Tomás vestia sob a jaqueta. ― Porra! ― repetiu ao desviar os olhos por um momento, engatando uma risada. ― Manezão, há quanto tempo cê tá assistindo meu date, caralho?

Tomás não esperava encontrar rostos conhecidos naquele lugar. De maneira alguma o de Yue, mas era ele quem os encarava agora. As luzes tingiam o seu rosto com uma máscara púrpura, tornando difícil fazer qualquer leitura sobre sua expressão, mas Tomás o tinha reconhecido ainda assim, como se fosse uma coisa natural. Teve a impressão de que o mundo estava em câmera lenta quando Yue ergueu a mão para beber um gole da latinha de cerveja na mão. 

― Tomás, esse é o meu irmãozinho de que te falei! ― Vi continuou, empolgado. ― Manezão, esse é… 

― A gente se conhece ― Yue interrompeu. 

Nenhum deles viu a careta que ele fez ao ser chamado de irmãozinho. Ou ouviu o suspiro pesado que veio a seguir, abafado pela música pesada. 

― Ah, é? ― Vi pareceu atordoado por um momento antes de completar: ― Do hospital? 

― Do hospital ― Yue confirmou, fazendo um gesto com a mão. ― Perto. Não vou ficar gritando. 

Agitado, Vi se aproximou, bagunçando o cabelo de Yue, preso em um rabo de cavalo. 

― O cabelo, Victor. Porra ― ele resmungou, empurrando o amigo para longe com a mão. ― Sai, caralho. 

Reconhecia o brilho no olhar de Vi, um que dizia “viu só? Ganhei a aposta!”. De fato… Só não precisava ganhar justamente com o carinha de quem tava afim, o único que tinha parecido interessado nele em muito tempo.

― Faz tempo que cês tão saindo? ― perguntou, fazendo um gesto para que tentassem alcançar o bar improvisado que, àquela hora, ainda não se transformara em um pardieiro. 

― Pouco né, lindo? ― Vi puxou Tomás para perto pelos ombros. Era grande o bastante para abrir espaço na pequena muvuca, mantendo Tomás protegido contra si. ― A gente se viu pela primeira vez naquele dia do Fofão, mané. 

― Fofão? ― Tomás questionou, tentando se ambientar na conversa. Queria espiar Yue, ver se ele estava chateado demais, mas a linha dos ombros dele, marcada pela regata, era tudo que conseguia enxergar.

― Nem pergunta ― Yue pediu. 

― Já tá bêbado? ― Vi precisou perguntar ao ver a ênfase com que o amigo se apoiou no balcão do bar. ― A gente tem um x1 pra hoje, caralho. 

Yue pigarreou para espantar a sensação de que as palavras presas na garganta poderiam causar um estrago.

― Tô de boas ― respondeu com algum atraso. ― Já coloquei nosso nome, Jupi anuncia daqui a pouco.

Com cuidado, espiou Tomás parado ali perto, ao lado de Vi. Havia alguma coisa perto de desconforto em sua expressão, que nem de longe era o que Yue pretendia causar. Se esforçou para espantar a tensão dos ombros, comentando com um sorriso: 

― A breja tá gelada, é melhor pedirem logo antes que só sirvam da choca. 

― E vocês? ― Tomás arriscou, chegando um passo mais para perto de Yue assim que Vi tomou a dianteira para pedir as bebidas. ― São amigos de muito tempo? 

― Desde os quinze. ― Yue batucou os dedos contra o tampo do balcão, coçando o nariz logo depois, num tique. ― Mesmo cursinho de inglês. 

― E quem fala melhor? ― A voz de Tomás ficava mais baixinha a cada passo que dava para se aproximar dele. 

Se continuasse daquela forma, Yue poderia ter uma impressão bastante equivocada sobre ele, mas a quem queria enganar? Yue tinha a personalidade de uma concha do mar, escondido sob espirais de calcário. Qualquer chance que pudesse ter morrera no momento em que ele o viu beijando o amigo-irmãozinho-desde-os-quinze-anos. Imaginava que Yue era o tipo de pessoa que não compraria briga com o amigo por causa de um casinho. 

Então por que ainda era tão difícil resistir ao magnetismo que o arrastava na direção dele? 

― Quem fala melhor? ― Yue ofereceu um sorriso honesto. ― Os dois são péssimos. 

― Isso é verdade. ― Vi entrou na conversa, distribuindo cervejas para si mesmo e Yue, além de uma latinha de tequila e suco de laranja para Tomás. ― Foi o mais perto de uma tequila sunrise que consegui te arranjar, lindo. E a gente reprovou de nível umas três vezes, se pá. 

― Quatro ― Yue retrucou, e apesar da revoada de incômodos no peito, deu uma risada breve. ― Oficialmente. Mas a gente se safou da quarta lavando o carro da professora por um semestre. 

― Era o empurrão que eu precisava pra nunca comprar um carro na vida ― Vi admitiu, sorrindo. ― Coisa nojenta, um monte de cheetos engruvinhado debaixo do banco. Nem fodendo. 

A intimidade com que os dois compartilharam as risadas logo depois fez o coração de Tomás amolecer. A impressão de que poderia ouvi-los rir assim por horas, sem nunca cansar, parecia o vestígio de alguma coisa mais profunda ― quase como uma memória cercada por um calor alaranjado, repleto de conforto. 

Yue foi o primeiro a romper aquela bolha. Dando um passinho para longe, deixou o olhar correr de um para o outro, chegando a conclusões que não compartilhou. Deu um peteleco no ombro de Vi, comentando: 

― Vou dar um pião. A gente se encontra na gaiola daqui a pouco. 

Victor concordou, trazendo Tomás consigo até um canto do galpão, onde um sofá bordô acomodava um grupo espinhento de garotos. 

― Vão catar outro canto pra vocês, cambada, bora ― disse, fazendo um gesto com a mão para os moleques circularem, no que logo foi atendido. 

― A gente podia ter arranjado outro canto ― Tomás criticou, emendando um grito breve ao ser puxado para o colo de Vi, equilibrando por pouco a latinha na mão. 

― Podia, mas esse é o meu canto preferido ― o rapaz argumentou, pousando um beijo gelado no pescoço de Tomás. 

O arrepio era tudo que precisava para esquecer o desconforto. Com jeitinho, Tomás se arrumou sobre as coxas de Victor até ficar quase de frente para ele, roubando um beijo que só ficou na superfície pelo tempo de que precisaram para mergulhar um no outro. 

― Você fica na minha casa hoje ― Vi sussurrou, roçando a barba por fazer contra o pescoço de Tomás apenas pela diversão de vê-lo estremecer e reclamar, manhoso. 

― É um convite ou uma ordem? ― O ouviu sussurrar, o que arrancou de si um rosnado. 

― Um convite ― respondeu, mordendo-lhe o pescoço — aquele tipo de mordida que deixa apenas um avermelhado suave, que desaparece rápido. ― E eu ia ficar feliz pra caralho se cê topasse. 

As covinhas charmosas ajudavam, enfatizando os lábios de Vi, erguidos de cantinho, no meio termo entre uma provocação e uma pirraça, mas o que fisgou Tomás foi o sorriso em si, repleto de uma aura que só as coisas inofensivas conseguem ter. 

― Eu vou ― garantiu, se ajeitando um pouco mais no colo dele, a cabeça meio apoiada contra seu ombro. ― Vem cá, eu quero uma foto. 

Para ficar de lembrança, é claro, mas para compartilhar com o Lótus também. 

“O cachorro tá sendo comportado 🐾”. 

*

Às vezes Yue lembrava-se de um comentário que seu pai fizera poucos anos depois de chegarem em São Paulo feito aves migratórias. Aqui a gente vai estar sempre lutando pelas chances com que algumas pessoas já nasceram, xiao Yu, dizia a voz de suas lembranças, jovial e doce. Então escolha bem os territórios que te pertencem e nunca abra mão deles. A memória vinha sempre acompanhada pelo sabor de bife a rolê temperado com gengibre, a comida preferida de Yue naqueles primeiros anos. 

A música era o seu espaço favorito, mas facilmente incluiria aquele octógono em cujas grades pintadas de lavanda estavam presas dúzias de fitinhas coloridas do Senhor do Bonfim. Eram lugares em que se sentia um herói ou um ídolo ― delírios de grandeza que mantinha domados no fundo da garganta porque ninguém precisava conhecê-lo assim tão bem. 

Não se comparava à metade dos lutadores da rinha, pessoas de ombros largos e músculos de halterofilista, moldados em academia e whey protein ― gente que usava o Clube da Luta como porta de entrada para campeonatos mais sérios (e legalizados). Yue era magro, mas atlético, com braços fortes que as tatuagens ajudavam a valorizar. Muitos novatos entraram naquela gaiola com sorrisos zombeteiros, achando que seria fácil lidar com uma mocinha. Eram incapazes de sustentar uns poucos segundos de encarada, e derrubados em bem menos tempo. 

― Tá mais sério que o normal hoje, bem ― Jupi comentou. Tinha acabado de entrar na gaiola depois de fazer o anúncio da primeira luta da noite. ― Tá passando mal? 

De braços cruzados, Yue alimentava uma postura altiva, o queixo ligeiramente projetado para frente. Trajando um short preto e curto, além de um top ajustado, com detalhes de redinha nas costas, lembrava um personagem de jogos de ação.  

― Tô ótimo. 

― Puta mentira da porra, guri ― ela escancarou com uma risada, dando um tapa no ombro do rapaz. ― Tá dodói que o teu boy trouxe outro pro rolê? Trazer casinho pra rinha é novidade mesmo. 

Yue ensaiou uma resposta atravessada, mas tudo que saiu foi um bufado impaciente. 

― Usa tua raiva a meu favor, bem. ― Jupi colocou uma mecha fina do cabelo de Yue atrás da orelha dele. ― Apostei uma graninha aí em ti. 

― Desde quando você aposta em mim quando tô no ringue com o Vi? 

― Desde que vi teus olhinhos de raposa furiosos agora há pouco. É com a coisa bonitinha ou com o grandão tapado? ― Ela o empurrou de leve, num gesto amigável. ― Aposto que é com o grandão. A coisa bonitinha é bem teu tipo também. Os dois juntos são bem uma mistura que dá vontade de devorar mesmo. 

O rosnado de aviso do rapaz fez Jupi erguer as mãos, gargalhando. 

― É brincadeira, guri. Sou casada, lembra? ― Bateu o dedo contra o anelar, mostrando a aliança bonita em ouro branco. ― Minha senhora é ciumenta de marré deci. Fora que carninha nova não é minha onda, mas você bem que podia se pavonear um pouco mais, bonito do jeito que é. Se o grandão não olhar, aí é problema de vista dele. Escuta… 

A pausa foi para berrar que alguém da staff arrastasse logo o Victor para a gaiola, do contrário ela declararia a vitória de Yue. O aviso arrancou gritos e vaias do público que se acomodava como formigas ao redor da gaiola.

― Tu também é burrinho, guri ― Jupi completou, retomando o papo. ― Fica ligado, bem. E mostra sua cauda! ― completou com um gesto das mãos, imitando o movimento da cauda de um pavão.

― Tá tentando comprar a árbitra com o sorriso, mané? ― Vi berrou, pulando para dentro da gaiola. 

Sem camisa, ele expunha o peito forte e um corpo musculoso, marcado pelo abdômen proeminente e duro. Do ombro direito ao peito, tinha tatuado um lobo em perfil, com os dentes à mostra na iminência de um ataque. Ao fundo, uma lua cheia completava o quadro. 

Se as apostas eram o território de Yue, as rinhas eram o dele. Sempre caminhava para dentro da gaiola com a confiança de um gladiador invicto. 

― Não te tiraria essa honra ― Yue sussurrou. O sorriso pequeno e oblíquo não abria espaço para gentilezas. 

― Se as comadres já trocaram trivialidades, eu tô querendo começar essa luta ― Jupi os interrompeu, indicando os cantos do octógono. 

Os amigos se deram as costas, deixando que a equipe de Jupi os ajudasse com as bandagens de proteção nas mãos e os protetores bucais. Àquela altura, a fumaça dos incensos era densa a ponto de arder nos olhos. A gaiola estava iluminada por luzes brancas, mas tudo o mais ao redor fora mergulhado num vermelho indecoroso. 

― Bem-vindos à mais uma edição da Gaiola, gente bonita! ― Jupi começou, colocando-se no centro do octógono. Sua voz grave se projetava sem que precisasse usar um microfone. ― A gente abre hoje com coisa de qualidade pra vocês, porque não tem enrolação na casa de Júpiter. 

Fora do octógono, em um canto menos lotado, Tomás se agarrava às grades com crescente interesse, os olhos pulando de Vi para Yue. Na mão livre, carregava uma garrafa d’água que bebia aos poucos. Um grupo animado de pocs discutia as próprias apostas, e de longe aquela era uma das cenas mais incríveis que Tomás assistira ― a Gaiola realmente desvirtuava a ordem das coisas, colocava em lugares inusitados o que parecia estar em caixinhas bem definidas do lado de fora.  

― Os primeiros desafiantes da noite são gente antiga da casa e pra fazer jus à fama dos dois, todas as apostas feitas na mesa oficial valem o dobro a partir de agora. 

Mais uma salva de gritos e vaias se misturou ao som de muitos pés batendo no chão. O som reverberava até os ossos de tal forma que arrancou um rosnado de Vi e um barulho baixo e rouco de Yue. Para os dois, a graça do Gaiola sempre tinha sido aquilo: o quão animalesco tudo se tornava às vésperas de um combate. 

― Relembrando as regras da casa ― Jupi continuou, contornando o octógono com a graça de um mestre de picadeiro. As luzes brancas de dentro da gaiola faziam o strass da sua roupa faiscar como se estivesse pegando fogo. ― É proibido golpear o adversário nos olhos, espinha, nuca e garganta. Agarrar a traqueia, mordidas e fish-hooking também são motivos para expulsão sumária de qualquer evento posterior. ‘Tamos entendidos? ― gritou, rindo com o “sim” uníssono que os engoliu dentro da gaiola. ― E vamos ao primeiro desafiante da noite, do meu lado direito, o demônio com pés de vento, com doze vitórias, Yue! 

O movimento do público, como uma onda, quase jogou Tomás de cara contra a grade do octógono. Com um ofego, ele abriu espaço de volta para si, bastante tentado a mostrar os dentes feito um bichinho feroz. Lá dentro, Yue fez um gesto charmoso com a mão, incitando as pessoas a gritarem mais alto. 

― Do meu lado esquerdo, o desafiado: nosso lobo com punhos de ferro, com vinte vitórias, Victor! 

Estar ali era ensurdecedor. Vi colocou a mão em concha na orelha, rindo com a gritaria que só aumentava. Tomás não soube em que momento começou a gritar, mas acompanhava a manada, eufórico e quase arrependido de não estar com alguma coisa alcoólica na mão. Deveria ter apostado? Se tivesse dinheiro sobrando, com certeza. Apostaria um pouquinho nos dois, só pela diversão. 

― E como a casa manda, o desafiado escolhe a música que vai tocar durante o fight. A luta dura o tempo da música. 

Nos quatro cantos do galpão, placas de neon acenderam com um contador que começava em 2:49. Foi a primeira coisa que fez Yue torcer os lábios. Quase interpretaria como um desafio, não fosse Jupi avisando ao público que a música era Bonekinha da Gloria Groove. 

Não era um desafio, era uma piada

Talvez julgasse as coisas com menos seriedade se o desconforto no peito não fosse do tipo que queimava, incendiando uma raiva que se esforçara para não sentir até aquele instante, e que agora se erguia imensa, como uma fogueira. 

Era sempre a porra duma piada. Os bicos com fantasias ridículas, a falta de jeito com as palavras, o mundo reduzido a um quarto quente e solitário, na companhia de um peixe, e Victor ainda tinha se assanhado pra cima do seu crush, tratando Tomás daquele jeito bonitinho com que tratava todo caralho de boyzinho que decidia ter, menos ele. 

A vida era a merda de um paraíso para Victor, e ainda metia aquela musiquinha para cima dele, feito pirraça. O Clube era bastante amigável, tendo Jupi como dona e gerente, mas não a ponto de impedir uma galera de olhar para Yue e enxergar aquilo: uma mocinha para derrotar, coisa fácil. 

Ia se sentir um merda por todas aquelas conclusões tortas assim que a pira de cólera virasse nada além de brasas, como costumava acontecer depois de uma crise de raiva, mas seria um problema para o Yue do futuro. O Yue dentro da gaiola estava disposto a fazer valer a oração de Gloria Groove: o desgraçado ia beijar a lona. 

― Combate! ― sinalizou Jupi, se afastando para arbitrar. 

Normalmente Yue nunca fazia o primeiro movimento. Era seu estilo de luta, temperado em anos de prática de sanda: deixar o adversário puxar o combate para que então pudesse estudar os pontos fracos. Mas aquele era Vi, afinal, e ele conhecia todos os pontos fracos do filho da mãe. 

O soco reto pegou Victor de surpresa, acertando sua boca. O corte se abriu como flor, desabrochando um filete de sangue. Ele recuou com um ofego, armando a defesa. 

― A bonequinha sabe brincar ― Yue grunhiu, baixo o suficiente para que apenas Vi, que o rodeava de defesa erguida, pudesse ouvi-lo sobre a gritaria. 

― Ficou puto? 

A resposta foi um chute firme que o atingiu na lateral do corpo e que Vi devolveu com a mesma potência, forçando Yue a tomar distância. Os dois tinham uma trocação harmoniosa. Lembravam dois bailarinos, muito acostumados aos movimentos um do outro. Victor queria brincar naquela noite, uma luta rápida para se exibir com o amigo, mas os planos de Yue eram diferentes. 

Em um movimento ágil, cobriu a distância entre os dois com uma sequência de cruzados. Victor afastou-se dos primeiros e usou o cotovelo para bloquear o último, aproveitando-se da vantagem que era a guarda aberta de Yue para golpeá-lo com o cotovelo no lado desprotegido do rosto. Sentiu o atrito de pele contra pele quando abriu o supercílio do amigo. 

― Responde, caralho! ― Vi exigiu, rodeando Yue. 

Visou um soco na cabeça de Yue, girando o quadril para emprestar mais força ao movimento. Yue o recepcionou com um contra-ataque, o golpeando na articulação do cotovelo. A dor elétrica que atravessou seu braço fez Victor recuar, tentando retomar o controle da luta com um chute frontal. Yue capturou sua perna, quebrando a distância com perícia, forçando o ombro de Vi para baixo ao mesmo tempo em que o dava uma rasteira na base instável que o único pé proporcionava. 

Visto do chão, o olhar de Yue era irritante de tão bonito, chispando o mesmo frenesi que já havia notado durante a trocação. Sem voz, ele acompanhava a música que anunciava a bonequinha tá fora da caixa, ensaiando uns passinhos de funk para delírio de um público que já gritava palavras de apoio para Victor. 

― Segura essa contagem aí, Jupi! ― Vi rosnou, se forçando a levantar depois de conferir que ainda tinha um minuto para tentar retomar a vantagem. 

Avançou com um rosnado, a sequência de jabs e cruzados forçando Yue a se fechar na defesa, recuando em um dos cantos. Yue sustentou os socos, protegendo o rosto com os braços até achar uma brecha para uma fuga pela diagonal. 

Quarenta segundos para o fim e ao redor o mundo era uma massa densa de vozes cantando ela é zika, ela esculacha. Victor voltou a agir, querendo encerrar a conversa com socos retos, os dedos tão apertados contra o punho que doíam. Yue oscilou, ligeiro, e na primeira abertura, se lançou para frente, ultrapassando Victor para agarrá-lo por trás, lançando os dois ao solo. 

― Arrombado! ― Vi xingou, tentando se livrar do aperto das pernas de Yue. Ouvia a respiração cortada dele no ouvido. 

Se tinha uma coisa que Yue sabia bem demais era que Vi era um lutador cego de chão. Um pedacinho muito pequeno de si pensou que poderia apertá-lo assim até quebrar todos os seus ossos. Esse pedacinho achava que Victor merecia, e tinha uma raiva tão mais abrasadora que quase fez Yue afrouxar o golpe. 

O Clube da Luta explodiu em algazarra quando o sino anunciou o fim do combate. Não era um nocaute, mas era tão emocionante quanto. 

― Solta, caralho, acabou! ― Vi pediu no meio do caminho entre uma risada e um grito. 

Yue soltou o aperto, livrando Victor. Os dois ainda continuaram naquela posição por mais uns segundos, recuperando o fôlego. 

― Cara, eu te chateei com a música? 

O toque de Vi puxou em Yue um arrepio inesperado e forte. Rolando para o lado, ele inspecionou Yue com uma expressão séria, vendo-o esconder o rosto nas mãos com um suspiro. 

― Só tô estressado. 

A raiva começou a evaporar, deixando uma vergonha pungente em seu lugar. Andava sendo um merda. Vi era seu melhor amigo, não podia culpá-lo por coisas de que ele sequer sabia ― coisas que nem mesmo Yue conseguia entender direito sobre si. 

Quando baixou as mãos, o sorriso de paz que ofereceu foi sincero, um dos raros, daqueles que quase o deixavam de olhos fechados. 

― Eu sou zika mesmo, né? ― Yue completou, quase rindo. A voz soava abafada por ainda estar com o protetor de boca. 

― Pra caralho, moleque. ― Vi usou a mão errada para se apoiar e aquela dor elétrica voltou, arrancando dele um xingo. ― Porra, Yue, meu braço de dar carinho. 

Com bom-humor, ele se ergueu, oferecendo a mão boa para o amigo levantar. 

― Vem, eu preciso achar o Tomás ali naquele furdunço e a gente pode tomar umas juntos mais um tempo. 

O lampejo no olhar de Yue foi difícil de ler. Ainda mais quando ele voltou a sorrir, negando com a cabeça. 

― Não vou ficar de vela, porra. Vai pro teu date, vou me arranjar por aqui.

Com um gesto insistente da mão, Yue o enxotava para longe. 

― Vai logo, tá geral pirando. Não deixa ele sozinho nessa loucura. 

Confuso, Victor inclinou a cabeça, momentaneamente tentado a arrancar Yue dali com ele, apesar das negativas. Um gritinho mais fino o despertou. De longe, viu Tomás tentando arranjar um buraco na multidão para sair e concluiu que Yue estava certo. 

Lançando um último olhar para o amigo, se livrou do protetor bucal e mergulhou no mar de gente para resgatar Tomás. 

Continua…

Na próxima semana… Todo mundo aqui viu o Vi convidando o Tomás pra casa dele, né? Duvido que vocês tenham deixado passar esse detalhe. Na semana que vem, teremos nossa primeira cena hot 🔥 da história. Vem aí as Pontes IMORAIS. 🔞

O Capítulo 11 (parte 2) — Mostre sua cauda! chega no dia 10 de novembro às 12h! 

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