💫 Pontes Imortais ― Capítulo 48

Todas as peças

Sexta-feira, fim de mês e… ÚLTIMO CAPÍTULO DA TEMPORADA 2!

Nos últimos capítulos… Nosso grupo se dividiu em dois. Victor e Tomás; Lótus e Yue. Com as memórias reveladas, o tabuleiro está aberto e as peças tomam seus lugares. Todas elas?

Música-tema do capítulo: Papercut, de Linkin Park (sigam a playlist oficial Pontes Imortais #2 no Spotify!)

Capítulo 48 — Todas as peças

São Paulo, 2023

“O veneno não era para você! Estar morto é culpa sua!”

Quando acordou com aquelas palavras rodopiando os pensamentos, Tomás soube na hora que tinha sido mais uma noite de pesadelos. 

Teve algumas assim ainda no apartamento de Vi, nas noites em que compartilharam seus medos, só os dois. E teve mais uma, sozinho, na estreita cama de solteiro em seu quarto.

Estar sem Vi era estranho depois de tudo, mas o convenceu de que precisava voltar para casa, pelo menos por alguns dias, ou deixaria sua avó extremamente ansiosa. Quando espiou a tela do celular logo depois de colocar de volta os óculos, era dele a primeira mensagem que abriu, com um simples emoji de coração azul, um indicativo de que estava bem, ainda que a tivesse mandado cedo demais — era raro que Victor acordasse antes dele pela manhã, principalmente quando despertava cada dia mais cedo por aqueles pesadelos causadores de tormento. 

Respondeu o “💙” com um simples “💛” seguido de uma mensagem curta. “Vê se toma café, não energético”, digitou ainda sonolento, antes de enviar. O conselho valia para Vi e também para ele. Café da manhã, não energético; alguma coisa decente para o almoço no lugar de um miojo. Era difícil pensar em saúde quando tinham tantas coisas com as quais se preocupar, mas Tomás sabia — e Yan melhor do que ele — que precisavam de um corpo saudável se quisessem vitalidade. Era ela a origem central de qualquer magia das Cidades Flutuantes que quisessem reaver e controlar naquele mundo. 

Passou o olhar brevemente pelas outras conversas que tinha fixado: se antes a troca de mensagens com Yue já era lenta, a conversa agora era como um cemitério, quieta, quase um memorial; o grupo de estudos da faculdade acumulava um número exorbitante de mensagens que Tomás não teria o trabalho de ler; e a de Lótus seguia congelada na última mensagem que ele enviara, dias atrás — “Me chama quando pudermos conversar ✨”.

Quando, não se, naquela confiança irritante de Lótus de que era apenas uma questão de tempo para que Tomás o buscasse. Tinham se tornado os porta-vozes indiretos de dois lados de uma história, sem clima ou confiança para compartilhar versões. O nome de Lótus tinha ficado eternizado no contato ao lado do lacinho rosa que Tomás havia escolhido para representá-lo meses antes. Não tinha tido coragem ou energia para trocá-lo, de modo que olhar para o nome salvo como “Lótus 🎀” era um outro tipo irônico de sepultamento de sentimentos.

Ainda olhava para o celular quando uma notificação anunciou uma nova mensagem.

Vovó Annchi 🍚: “O café vai esfriar se você ficar enrolando.”

Tomás respirou fundo, deixando o aparelho de lado para finalmente se pôr em pé e calçar os chinelos para se enfiar no banheiro.

Quando finalmente chegou à cozinha, estava banhado, vestido e arrumado, a bolsa que levava para a faculdade cuidadosamente atravessada no corpo, meio murcha, como se estivesse parcialmente vazia. 

— Até que enfim vai à faculdade. Não dão diploma de médico pra preguiçoso, sabia? — ela ralhou, em um cantonês baixo e irritado, antes de completar em português: — A prioridade devia ser o seu estudo, não um namorado. 

— Eu expliquei por mensagem, mas acho que a senhora esqueceu — Tomás rebateu, o olhar baixo enquanto servia para si mesmo uma xícara de café. — Estava ajudando um amigo. A senhora não ia gostar se meus amigos me deixassem na fossa sozinho, ia? Então por que eu tenho que ser o amigo ruim?

Annchi franziu a testa e crispou os lábios, acompanhando as palavras do neto com um menear desgostoso de cabeça. 

— Você tá diferente, garoto. O que aconteceu? 

Diferente. Tomás refletiu sobre a palavra. Sim, estava diferente, mas qual parte sua avó tinha tido tempo de absorver em uma conversa tão rápida? Ou a amargura de Yan tinha mudado consideravelmente suas palavras ou então era quase como se aquela velha tivesse poderes mágicos. Àquela altura do campeonato, não se espantaria se fosse esse o caso. 

— São drogas? — ela perguntou, erguendo o tom bem quando Tomás tomava seu primeiro gole de café, o que quase o fez engasgar antes de revirar os olhos. 

— Drogas seriam um alívio — sussurrou para si mesmo, com o cuidado de manter a voz baixa o bastante para que ela não o ouvisse. Então ergueu os olhos para se dirigir finalmente a ela. — Vó, eu falei com o pessoal da faculdade. Já peguei toda a matéria com eles e hoje vou passar o dia lá no campus estudando. A senhora não tem nada com que se preocupar. 

Mentiras, tantas delas. Tomás sempre foi bom em mentir, mas antes elas ao menos deixavam seu coração acelerado. Naquela manhã, não sentia nada. Poderia construir para si mesmo um castelo de mentiras e nem mesmo piscaria.  

Annchi se levantou em silêncio e Tomás soube que, por ora, ela tinha desistido de discutir. Bebeu mais um gole de café e se serviu de uma fatia do bolo de laranja aromático no centro da mesa, mordendo um pedaço grande, como se tivesse pressa. 

Quando sua avó voltou, foi com um pote em mãos, onde colocou mais duas fatias generosas de bolo antes de fechar. 

— Já que vai ficar o dia estudando, leva mais bolo. Tem uma fatia para você e uma para um colega, assim você não passa fome, mas também não engorda se entupindo de bolo.

— Vovó! — Tomás não conseguiu evitar o riso e um menear de cabeça de desaprovação.

Tudo o que ela falava soava como uma bronca, era uma das coisas mais básicas sobre ser criado pela avó. 

— E falando em bolo, quando aquele seu namoradinho bocudo vem visitar a gente? Sinto falta dele aqui pra ver minhas novelas. São três… É isso, menino? O bocudo, o calado e aquele da moto barulhenta que nunca se dignou a conhecer sua avó? — ela arriscou antes de concluir: — Não gosto desse. Mal-educado. 

— Eu vou falar isso pra ele e é capaz de ele te mandar flores, viu? Pra você parar de ficar julgando quem você não conhece — Tomás brigou, balançando a cabeça quando ela voltou a resmungar algo sobre falta de educação em cantonês propositalmente rápido demais. — E tá todo mundo muito ocupado, vó — voltou a mentir, porque era mais fácil, mas encaixou o pote de bolo com cuidado no espaço livre da bolsa. 

Sua avó tirou os pratos ao fim do café, recusando qualquer ajuda, como se dissesse que aceitar ajuda dele com algo mínimo como aquilo fosse assinar um atestado de velhice — do qual ela obviamente não precisava.

Tomás se encostou na parede perto da geladeira, com a desculpa de checar se a bolsa estava completa quando na verdade só queria… olhar pra ela. 

Sempre foram só os dois. Perdeu os pais quando era novo, mas pensar nisso era sempre mais uma projeção do que um vazio. Vovó nunca o deixou faltar nada, fosse em nutrição, estudo ou afeto. Era uma família completa em uma pessoa. Deixá-la para prometer a volta às Cidades Flutuantes só tinha sido uma escolha fácil por causa de Nyan. 

Seu irmão tinha ficado praticamente sozinho em uma Farkas comandada por sabe-se-lá-quem. Precisava saber se ele estava vivo. Nem mesmo sabia quanto tempo havia se passado naquele lugar.

Annchi cantarolava baixo uma música chinesa antiga e isso fez Tomás sorrir um sorriso triste. Aproveitaria com ela os últimos dias que tivesse, fossem quantos fossem. Devia trazer Victor até ali para que ela o conhecesse, deixar uma carta, mesmo que parecesse absurda. Só tinha o coração um pouco mais tranquilo porque ele e Vi tinham feito um plano, um no qual ela não ficaria completamente desamparada ou desassistida. Doía, mesmo assim.

— Vovó, vou indo — avisou ao calçar os sapatos, voltando a passos rápidos para a cozinha para dar-lhe um beijo entre os cabelos. Ela cheirava a cravo e alecrim, como se tivesse banhado os cabelos com chá. Não duvidava. 

Quando atravessou a porta e saiu para a rua, a Liberdade ainda começava a acordar, os sons de carros e ônibus circulando à distância, os transeuntes ainda escassos se comparados ao movimento daquelas ruas durante o fim de semana. 

“Tô indo pra lá agora”, avisou Vi por mensagem depois de curtir a foto do sanduíche que ele mandou como resposta à sua mensagem do café da manhã. 

“Tem certeza que não quer que eu vá?”, ele respondeu em poucos segundos.

“Não. Vai ser melhor se eu estiver sozinho”, garantiu, antes de guardar o celular e ajustar a alça da bolsa para seguir caminho. 






A cafeteria Latte Mia ficava em um dos possíveis caminhos até o ponto de ônibus e tinha se tornado sua favorita ao longo dos anos, não só pela qualidade inegável do café e dos lanchinhos cheirosos que sempre o arrebataram já desde a calçada, mas também porque tinha uma aura de casa no melhor dos sentidos — a aura de um espaço no qual se sentia estranhamente tranquilo, como se sempre estivesse com a família, ainda que, na grande maioria de suas visitas, estivesse sozinho. 

Na porta, foi recepcionado pelo logo engraçadinho da cafeteria, que misturava um cachorro e um gatinho acompanhados de um copo de café, e pela música que escapava pelas janelas abertas, uma versão lo-fi de uma música de K-Pop da segunda geração, que Tomás levou algum tempo para reconhecer como Lucifer, do SHINee.

Empurrou a porta com um toque suave da mão, fazendo soar o sininho pendurado sobre o batente. Até pouco tempo atrás, aquela porta costumava ficar aberta, presa no lugar por um almofadão pesado em forma de gato, mas tinham enfrentado uma situação com cachorros de rua há poucas semanas, que agora entendia ter sido mesmo causada pela presença de Victor, o que quase conseguiu melhorar seu humor o suficiente para que emitisse uma curta risada.

Bernardo surgiu de trás do balcão no mesmo instante, um mar de cachos azul-turquesa presos com um elástico em um rabo de cavalo fofo. Ele arregalou os olhos, surpreso, assim que seus olhos encontraram os de Tomás, e então abriu um sorriso largo. No rosto bonito de pele retinta, o sorriso se destacava tanto quanto o pequeno corte no meio da sobrancelha. 

— Veio cedo hoje, Tomás! — ele pontuou. — Um macchiato pra animar a viagem até o campus? Ou, quem sabe um matcha? Você parece alguém que quer um matcha hoje!

— É a bebida do dia, né? — Tomás rebateu, divertido, e olhou ao redor. 

Àquela hora, o movimento era tranquilo. Esperava encontrar a cafeteria vazia, mas um grupo de garotos parecia animado rindo de alguma coisa em uma mesa no canto. Suas mochilas escolares faziam Tomás pensar se era um grupo matando aula ou só enrolando para atrasar um pouco, talvez perder o primeiro período. Pelos rostos, deviam mesmo ser colegiais. 

— É, sim. Eu tenho meta de venda desses hoje. Me dá essa moralzinha… — ele pediu, e o bico que fez era o bastante para que Tomás se sentisse convencido. 

— Vou esperar ali na mesinha, vou beber aqui mesmo porque estou sem pressa — anunciou, enquanto guardava de volta a carteira na bolsa para tomar seu lugar em uma das poltroninhas mais confortáveis do salão. 

Sem clientes na fila e com a caneca na mão esquerda, Bernardo saltitou até a bancada interna, onde se enfileiravam uma infinidade de pós e essências para bebidas. O cheiro acentuado do matcha se misturou ao de café no ar no instante em que abriu o pote, depois de pousar a caneca sobre o tampo. Por todo o tempo, e como sempre, sua mão direita se mantinha ora enfiada no bolso do avental, ora performando alguma pequena tarefa simples como apoiar um pote ou empurrar delicadamente a caneca um pouco mais para trás. 

Bernardo sempre foi duas coisas: sorridente e empolgado com o trabalho na cafeteria e visivelmente canhoto.

Quando serviu a Tomás a caneca de matcha quente decorada com um gatinho feito com leite vaporizado, tinha no rosto o mesmo sorriso com que o recebeu, os mesmos olhos abertos demais, que agora pareciam exalar ansiedade pelo feedback que receberia pela bebida. 

— Uma delícia — Tomás logo anunciou. — Mas dá até dó de estragar o gatinho de espuma. 

— Essa é uma coisa legal sobre o meu trabalho: aprendo a fazer os bichinhos bem o bastante pra que o cliente fique com dó de tomar, assim ele fica mais aqui dentro. E gasta mais — pontuou, erguendo um dedo no ar, antes de se afastar com a bandeja de volta até o balcão. 

Tomás se serviu de mais um curto gole, ainda evitando deformar a arte do barista. O sabor do matcha trazia uma memória antiga à tona: o gosto amargo da bebida de ervas que Nyan mais gostava, sempre servida com uma rasa colher de creme. Em gosto e aparência, bem lembrava um gole de chá verde, mas ali, na Latte Mia, Bernardo sempre a preparava com uma dose generosa demais de açúcar. Agradava paladares brasileiros, mas pouco fazia pelas memórias nivarianas de Yan. Quando Nyan teimava em adoçar a bebida — com uma gotinha de mel, naquele caso — Yan precisava de reforços para terminá-la. O próprio Nyan preferia bebidas levemente adoçadas, assim como Oz e Kuí. E também Shu, que sempre tinha reclamações sobre seu corpinho de lagarto não tolerar mais do que uma golada mixuruca. 

Já estava nos últimos goles quando o grupo de adolescentes barulhento passou por sua mesa a caminho da porta, deixando a Latte Mia imersa em um silêncio confortável que pertencia apenas a Tomás e seu matcha, a Bernardo no balcão e ao novo lo-fi que tocava baixo pela loja, agora em uma versão de Aju Nice, do Seventeen.

Tomás encarou, no fundo da caneca quase vazia, os contornos ainda quase intactos do gato de espuma, então virou o restante da bebida em um gole, destruindo-o de uma vez antes de se levantar. 

— Tchau, tchau, Tomás! Entre Lattes e Mias, tenha um bom dia! — entoou ele, numa despedida nova que parecia especialmente orgulhoso de ter criado. 

Saindo da mesa, Tomás trouxe até o balcão a caneca vazia, pousando-a ao lado da gôndola de salgados, perto da pia. Bernardo espiou o fundo da louça de propósito, só para se certificar de que o gatinho havia sumido, então sorriu em agradecimento antes de tomá-la na mão para que pudesse pousá-la com cuidado na cuba. 

Quando Tomás, contra suas expectativas, ocupou uma das banquetas rentes ao balcão em vez de se retirar, o sorriso de Bernardo vacilou pela primeira vez. 

— Você pode me fazer um café especial? — pediu Tomás, apoiando o rosto na mão, os olhos cor de âmbar mapeando cada discreto traço do rosto de Bernardo. — Algo pela nossa amizade — reforçou. 

O silêncio voltou a tomar seu espaço, acompanhado apenas pelo tom animado da música que naquele momento parecia tão distante quanto uma memória. 

Quando Bernardo finalmente pousou a nova xícara perto das mãos de Tomás, a espuma do café veio decorada em um novo desenho: o de um pequeno e roliço lagarto. 

— Por que você nunca me disse que era banjoriano? — Tomás começou, as mãos se aquecendo nas laterais da xícara, tomando um momento para acompanhar o tremor da espuma na superfície do líquido antes de mirar seu acompanhante com olhos mais sérios. — Hein, Shu?

Continua… Na temporada 3!

Ainda não temos data, então fiquem de olho nas redes e entrem no Canal do Vórtex no Telegram pra não perder nenhum detalhe de Pontes Imortais!

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