💫 Pontes Imortais ― Capítulo 47

Nada deveria mudar a vida de alguém tão drasticamente

Mais uma sexta de planos e choro no Vórtex! A Bienal do Livro do Rio ainda está rolando e infelizmente foi mais um evento do qual não pude participar. Encontrou algum dos meus amigos por lá? Pedi pra que levassem brindes, mas foram bem limitados. Se você chegou aqui pelo minicard de divulgação da Bienal, chegou na hora certa! Estamos a dois capítulos do fim da temporada!

No último capítulo… Tomás tomou a frente e garantiu que Vi não se acabasse em lágrimas. Ele também parece ter entendido a mensagem criptografada de Niva, cuja revelação real será no fim da temporada. Por enquanto… alguém sabe do Lótus e do Yue? Veremos agora.

Música-tema do capítulo: When The Darkness Comes, de Shelby Merry (sigam a playlist oficial Pontes Imortais #2 no Spotify!)

Capítulo 47 — Nada deveria mudar a vida de alguém tão drasticamente

São Paulo, 2023

Yue não percebeu em que momento entrou no táxi. Ou como Lótus sabia o seu endereço, porque o nó em sua própria garganta o impedia de falar qualquer coisa. Os fantasmas, pensou. Os fantasmas das cidades sempre contaram para Kuí tantos segredos… Foi assim que ele se tornou o maior diplomata das cinco Cidades. Política sempre foi sobre poder e segredos. A voz em sua cabeça que lhe contava essas coisas era igual à sua, a voz que um contador de histórias precisava ter para sustentar a atenção de seu público. E poderia pertencer a ele mesmo, ou a Maali, ou a Li’a.

Sentir-se tão fragmentado não lhe traria qualquer benefício. Agora mesmo experimentava o completo pavor de Maali e o ódio pestilento de Li’a, tudo temperado com sua angústia que era tamanha a ponto de fazê-lo soluçar sem se dar conta, antecipando o choro violento que estava a caminho. 

Daria qualquer coisa para abraçar Victor naquele momento, se esconder contra seu peito até que ele dissesse que aquilo não era nada além de um pesadelo. Um pesadelo horrível. Yue se esconderia na presença de Victor, assim como Maali na de Yan e Li’a na de Kuí. 

— Chora se quiser — alguém disse baixinho, bem ao seu lado. Foi só aí que percebeu que era Lótus, a mão pequena sobre a sua, os dedinhos enfeitados com anéis enroscados aos seus, que eram longos e finos, formando um contraste tão bonito. Tão real. — Tudo bem chorar. 

Mas Yue fez que não, e não pareceu só alguém querendo parecer forte — ele se sentia bem longe disso, se sentia derrotado. Só não queria chorar naquele táxi com cheiro de umidade e aromatizador barato. Sua casa nunca pareceu tão longe, mesmo que já estivessem atravessando o viaduto do Glicério. 

Lótus assentiu, sem soltar a mão dele. Poderia deixá-lo quieto até chegarem. Seus olhos buscaram a janela ao lado, marcada por gotas d’água. A chuva sempre antecipava aquele aspecto de São Paulo, fazendo-a  parecer com a cidade fantasma em que se transformava tarde da noite — especialmente com as luzes amarelas dos postes e dos faróis de outros carros refletidas nas poças d’água. 

A madrugada sempre foi o horário favorito de Lótus, quando o mundo parecia parar e o ar fresco entrava pela janela, carregado pelo que ele entendia como sugestões. Sim, fantasmas. Agora era capaz de reconhecer. Não como os clichês de terror, surgindo na esquina de um corredor às três da manhã, mas como memórias de sons e vozes saídas de um sonho. Baixou a janela do carro apenas o suficiente para entrar um pouco de vento, que se enroscou em seus cabelos feito muitos pares de mãos lhe oferecendo afagos. 

Niva não pareceu tê-lo reconhecido. Não de verdade, o que nem chegava a ser uma surpresa. Na casa de Mãe sempre havia filhos demais, crianças que desapareceriam em pouco tempo e cujos nomes e rostos não valeria a pena gravar. Que um Imortal o reconhecesse pelo diplomata que se tornou, mas não pela criança que tinha sido, fez bem pouco por seu estado de espírito. Para Lótus, ter suas memórias de volta era uma brincadeira particularmente cruel porque não se limitavam aos anos entre a queda de Nivaria e o desfecho que tiveram em Farkas, mas a tudo que veio antes. Aquelas lembranças queimavam como a areia do deserto tinha queimado os pés do seu eu criança, e ele sabia o que viria depois: as bolhas doloridas, então as cicatrizes, e seria marcado novamente pelo que os Imortais eram capazes de fazer para manter a própria ascensão. 

Que bom que fosse assim. Que bom lembrar-se de tudo, dessa forma nunca poderiam acusá-lo de agir sem propósito. Sem ética, sim. Nunca sem propósito. 

— É aqui? — o taxista perguntou, trazendo Lótus e Yue de volta para a realidade. 

— Sim — Yue respondeu, tateando os bolsos para caçar o cartão, mas Lótus o interrompeu com um gesto, inclinando-se para cuidar ele mesmo daquele assunto. 

Dali a pouco já estavam na entrada da casa: uma casinha bonita e simples, com a luz da entrada acesa feito um farol. 

— Minha tia sempre deixa ela acesa quando eu saio — Yue explicou, abrindo a porta sem fazer barulho logo depois de apagar aquela luz. 

A sala tinha o cheiro pesado e quente de uma casa fechada, com um odor residual de incenso. Não estavam completamente no escuro porque a luz da cozinha mais adiante também estava acesa. Feito um caminho de migalhas, Lótus pensou. Uma luz aqui e outra acolá para que Yue sempre pudesse achar o caminho de volta para uma casa que dormia com seus sons particulares: um ressonar tranquilo num quarto, um roncar pontual noutro, o ploc-ploc de uma torneira precisando de conserto. 

Ali nada tinha mudado. Seria muito fácil para Yue se apegar à habitualidade das coisas e atrapalhar a volta deles. Lótus tocou-lhe a mão novamente e Yue enfim se deu conta de algo:

—  Cê tá gelado — sussurrou, trazendo Lótus para junto de si, esfregando as mãos contra as dele. 

— Estou? — Lótus retrucou. Não tinha percebido e lidaria com os efeitos daquela noite no próprio corpo depois, mas se Yue usava aquele gancho para se aproximar então se agarraria a ele. Era inteligente deixar que o outro fizesse o primeiro movimento. — Acho que nós dois estamos. 

A risada que escapou de Lótus pareceu deslocada até para ele mesmo. 

— Achei que só iria sair com os meus crushes e o crush deles pra comer umas coisinhas gostosas de festa junina e ouvir música questionável, e acabo num enredo de fantasia digno de série. Nada deveria mudar a vida de alguém tão drasticamente… 

Usou aquele tempo para tomar fôlego, ciente de como Yue absorvia suas palavras devagar. Quase conseguia ver o processo, como elas primeiro esmagavam sua casca rígida e então invadiam aquele coração feito de lava só para esfriá-lo pouco a pouco até transformá-lo em algo mais leve, mais fácil de carregar. Se voltariam para as Cidades, se um Imortal se materializara diante de si apenas para passar esse recado, então seu trabalho ainda não tinha terminado. 

— Você está bem? — perguntou mais manso, pousando a mão no peito de Yue, assoprando a ferida que acabara de mordiscar. 

— Tenho a impressão de que nunca mais vou sentir que estou bem novamente — Yue respondeu. 

Finalmente aquela sensação de inevitabilidade que flutuou ao redor de sua vida durante semanas tinha se materializado. Quis acreditar que era apenas a ansiedade natural em alguém que precisava lidar com coisas demais: a doença do pai, os bicos instáveis, a falta de perspectiva… E agora que estava diante da realidade, era incapaz de ignorá-la apesar da vontade de fechar os olhos e fugir. 

Oz tentou matá-lo. Li’a matou Yan. E como poderia odiar Oz quando ele era o Vi, quando ele era o seu amor, o seu melhor amigo? Como poderia julgar Tomás pelo tapa, pelo ódio, por tudo, quando enredera Yan nas mentiras daquela vingança? E como poderia continuar sendo só Yue sabendo de todas essas coisas com que não concordava, mas que ainda sentia porque também eram parte de si? Como não enlouquecer, como continuar caminhando, como…? 

— Seu quarto é por aqui? — ouviu Lótus perguntar e mais uma vez era ele quem o guiava naquela noite, firme como se nada pudesse abalá-lo. 

— Depois da cozinha… No final do corredor. 

Um quartinho pequeno e mais quente do que o normal depois daquela tempestade. Na ponta dos pés, Lótus abriu a janelinha de nada e então ligou o ventilador cansado de guerra que encontrou num canto. Pensou que era sensato convencer Yue a tomar um banho depois daquela chuva toda, mas tinha a impressão de que ele não aguentaria ficar de pé por muito mais tempo, por isso só ajudou a tirar as roupas molhadas. 

— Achei que ia te deixar pelado assim em uma situação mais agradável — Lótus cantarolou para fazê-lo rir um pouco, e Yue ergueu mesmo um sorriso que não durou mais que uma fração de segundos. — Toalha? 

Yue pegou duas no alto do guarda-roupas, além de um camisetão limpo para Lótus vestir que arrancou dele um sorriso. 

— Convite aceito — ele brincou, enxugando primeiro os cabelos ensopados antes de se livrar das roupas molhadas com uma facilidade constrangedora. O blusão cheirava a amaciante e o tecido leve era um conforto bem-vindo. 

Sentou na beirada da cama de Yue, observando o aquário em que um koi nadava devagar. Aquele aquário tão grande e elaborado numa casa simples como a de Yue parecia uma coisa deslocada. Yue percebeu aquela dúvida margeando os olhos de Lótus. 

— Quando nos mudamos de Yunnan, meu pai trabalhava em uma multinacional — começou a explicar, sentando-se perto de Lótus, com as pernas cruzadas. Também tinha vestido um blusão que, pelo tamanho e pelo perfume, devia pertencer a Victor. — Ele era líder da área em que trabalhava, foi o cara por trás do desenvolvimento de um processo essencial pra companhia e quando abriram uma filial aqui no Brasil, lógico que queriam que ele viesse. E o meu pai topou porque, sei lá, talvez tivesse memórias demais por lá. Da minha mãe. A gente veio primeiro, só nós dois, e quando ele sacou que ia passar tempo demais trabalhando pra deixar uma criança sozinha, convidou a irmã dele pra morar com a gente. 

Aqueles anos foram bons, apesar dos choques culturais. Viviam em uma casa confortável, Yue estudou em uma ótima escola, teve apoio para aprender português, fez o cursinho chique de inglês em que conheceu Vi, cuidou de um laguinho nos fundos da casa com alguns kois, foi aprovado para o conservatório de música e até mesmo frequentou o primeiro semestre.  

— Aí veio o diagnóstico de Alzheimer. Ele foi desligado, então a gente passou por toda a barra da aposentadoria e descobriu que não existia um puto acordo previdenciário que tornasse válido o tempo de trabalho do meu pai fora do Brasil, e a doença dele avançou tão rápido que eu e minha tia nem tivemos cabeça pra lutar juridicamente por isso, daí que ele se aposentou por invalidez com o tempo de trabalho daqui, o que não era muito.  

E Yue precisou largar tudo pra cuidar do caos que a vida dos três tinha se tornado: vender a antiga casa, quase todos os móveis, os kois — exceto por Juca, que sempre foi o seu favorito e que Vi não deixou que vendesse —, os instrumentos e os vinis que colecionavam… Seu pai não foi um grande poupador, e Yue preferiu não mexer nas economias que tinham restado porque elas ajudariam a pagar o plano de saúde, os remédios, qualquer emergência com o pai e a tia. 

Nada disso foi tão ruim quanto ver o brilho do pai se apagando aos poucos sem que pudesse segurá-lo entre os dedos, protegê-lo como à chama de uma vela. Os médicos disseram que a doença avançaria lentamente, mas não era isso que Yue via acontecer. Era como se o pedaço de seu pai que ainda estava consciente tentasse se desligar de dentro pra fora numa velocidade arrasadora.  

— Vocês não pensaram em tipo… voltar? — Lótus questionou, inclinado na direção dele, o olhar tão francamente interessado que chegava a ser comovente. — Pra… Yunnan. Não têm parentes por lá que ajudariam? 

— A gente ensaiou essa volta por quase um ano… — Yue respondeu, o olhar sobre a janelinha no topo do quarto como se pudesse ver um mundo inteiro através dela. — Temos alguns parentes que nos receberiam, sim, mas… É que você não viu meu pai. Ou a minha tia. Eles já têm bastante idade… Meu pai tava com 45 anos quando eu nasci, e os parentes do outro lado não são muito mais novos. A gente ia continuar fodido e sem grana, apertados numa casa com muita gente, pouco espaço e um senhor doente que ninguém tinha certeza de que aguentaria bem uma viagem de tantas horas.

Ali tinham toda a pequena comunidade de imigrantes, que sempre lhes deu o apoio que podiam. E Victor… Porra, nunca passaram perrengue demais porque tinham ele, acima de qualquer coisa, e esse pensamento arde feito brasa agora. 

— Você tem razão — Yue sussurrou, voltando os olhos para Juca e aquele aquário que sempre seria pequeno demais para ele. — Nada deveria mudar a vida de alguém tão drasticamente… 

— Deita — Lótus pediu, se inclinando para buscar algo na bolsinha molhada: o celular e os fones de ouvido. 

Checou o celular por memória muscular, embora soubesse que não haveria mensagem nenhuma de Tomás. As últimas horas de vida dos dois naquele outro mundo tinham sido reveladoras demais para que sequer cogitasse qualquer tipo de perdão. Uma pena. Gostava dele: como Kuí e como Lótus, por isso esperava que ele não acabasse se tornando uma pedra em seu caminho.  

Lótus se encaixou contra o corpo de Yue, colocando um dos fones em seu ouvido. Então apoiou a têmpora contra a dele, colocando música para tocar no aplicativo, que deixou rodar baixinho. 

— Parece que tô caindo num poço sem fundo — Yue sussurrou, fechando os olhos. E quando não pareceu suficiente, apertou as mãos contra os olhos. 

Se os arrancasse, isso levaria embora as memórias das últimas horas em Nivaria? Se cortasse os dedos um por um, seria o suficiente para que nunca tivesse machucado Yan? Se apunhalasse o coração, deixaria de amar Oz o quanto amava, tanto que foi incapaz de fazer qualquer coisa contra ele quando a hora chegou? 

— As Cidades… — sussurrou, aturdido com mais aquela memória. — Elas devem estar… Devem estar destruídas agora. 

O olhar procurou Lótus no escuro. Ele permaneceu de olhos fechados, mas tocou seu rosto em um afago. 

— Não era o que queríamos? Acabar com todas elas, pelo silêncio, pela submissão resignada a um massacre?

— Era, Kuí? Era mesmo? 

Ouvir o próprio nome fez com que ele abrisse os olhos. Por um momento, o verde escuro que fazia Yue pensar em cana-de-açúcar e coisas doces pareceu se transformar num verde intenso, ofídico.

— Lembra do que te falei? Quando você acordou depois de tudo aquilo? 

Yue lembrava, é claro. Semanas tinham se passado depois da queda de Nivaria e abrir os olhos só lhe trouxe dor. Das memórias do massacre, pontuadas por gritos de guerra e gritos de angústia; do próprio corpo preso a uma cama, amarrado porque qualquer movimento poderia matá-lo de vez. Só respirava porque Kuí arranjou uma versão portátil de um pulmão artificial. Os seus tinham ficado arruinados e Maali precisara passar por algumas intervenções para que voltassem a ser minimamente viáveis. Os ossos das costelas ainda estavam se recuperando das fraturas. Só conseguia pensar que preferia estar morto. Por que não estava morto junto com os seus? Não queria aquele corpo arrebentado nem as memórias daquela traição. 

Kuí foi a primeira criatura que viu, sentado ao lado da cama com o olhar interessado de quem contemplava um espetáculo silencioso. Por que você está aqui? Maali perguntou com um fio de voz. Você me chamou, e eu vim, Kuí tinha respondido. E parece que eu sou incapaz de te deixar, então se segure em mim se precisar de algo em que se segurar

Maali tinha se segurado. E agora Yue também apertava Lótus contra si, assustado. 

— Segura em mim se precisar de algo em que se segurar — Lótus disse em voz baixa, parecendo ler as memórias dentro da cabeça de Yue. — Eu sustento nós dois quando você não puder se sustentar.  

E por mais que aquela promessa fosse confortável a ponto de quase fazê-lo ceder, Yue sentia que era o momento de ser sua própria base. Não Oz ou Yan ou Kuí, nem mesmo a Cidadela ou os pais ou as memórias de uma Nivaria arruinada, nada atrás do qual se esconderia. Seu coração estava arrebentado como o corpo de Maali estivera tantos anos atrás, num mundo que nem saberia como acessar, mas ainda estava vivo. 

Juntaria os pedaços de Maali, Li’a e Yue para criar alguma coisa diferente. Aprenderia como lidar com aquela nova realidade.

Continua…

No próximo capítulo… Algo. Sim, esse é o teaser. Confiem em mim. Estarei aqui, como sempre estive. 

O Capítulo 48 — Todas as peças chega em 27 de junho de 2025

Não, não teremos Bunny Hour este mês. Não sou malvado o bastante pra deixar vocês sem capítulo bem nessa hora!

Ei, vizinho! Não esquece de me acompanhar nas outras redes! 💫

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