💫 Pontes Imortais ― Capítulo 44

Eles nunca terão tudo que é nosso

Se segurem, vortexianos! Temos uma Cidade pra derrubar no Vórtex!

No último capítulo… Yan e Oz receberam a visita de Kuí durante a viagem a Banjora. E ele veio com uma bomba que só Oz ouviu: havia um lugar onde ele deveria estar.

Música-tema do capítulo: Tempo Perdido, Legião Urbana (sigam a playlist oficial Pontes Imortais #2 no Spotify!)

Capítulo 44 — Eles nunca terão tudo que é nosso

Nivaria

O alarme de ataque marcial era, para Maali, uma memória de treinamento; tinha sido, até aquele momento. E por mais estarrecedor que fosse ouvi-lo ser acionado em uma situação real, não era nada perto do som das explosões de canhão abatendo os pássaros-engrenagem um por um, fazendo a sirene de alerta tocar disforme, cada vez mais baixa, cada vez mais distante. 

Fosse qual fosse a natureza de uma conversa — e a sua com Mestre Inua se mostrava verdadeiramente séria —, teria que esperar frente a um ataque. E Maali podia não ter mais a sua posição entre os caçadores, mas não deixava de ser um nivariano treinado, cujo lugar seria sempre na linha de frente de qualquer defesa da Cidade.

A pior parte de ser preso tinham sido as horas longe de seu arco. Maali estava acostumado com o conforto de seu peso, que era como uma promessa: enquanto tivesse aquele arco, as coisas ficariam bem. Enquanto estivesse com ele, tudo daria certo. 

— Maali — Inua chamou, a mão ainda dentro do armário onde os oficiais da detenção guardavam os pertences dos prisioneiros. — Use isto também. 

O rapaz capturou o objeto no ar: uma máscara demoníaca cuja carranca vermelha e os dentes afiados à mostra trouxeram a Maali uma paz inesperada. Aquilo ele saberia ser de olhos fechados: um monge. Ali moravam todas as suas convicções. Assim que colocou a máscara no rosto, um visor se expandiu diante de seus olhos, mostrando as posições dos monges-caçadores em Nivaria. Um bom número deles se concentrava na entrada da Cidade.

— Vamos — Inua incitou, adiantando-se para a saída da prisão. Seu alce o esperava lá e depois de montá-lo, ofereceu a mão para que Maali subisse. — Fique de olho, não deixe nada nos tirar de rota.

Atravessar o Distrito na iminência de um ataque seria para sempre uma das piores memórias de Maali. O pavor estampado nos rostos das pessoas enquanto eram conduzidas para os abrigos fez seu estômago afundar. Estavam acostumados aos ataques de Fronteiriços e à velocidade com que os caçadores eram capazes de derrubá-los, mas um ataque marcial vinha acompanhado de uma aura de incertezas. Quem? E por quê? 

O pior era saber exatamente a resposta para uma daquelas perguntas. Nivaria tinha apenas uma ponte, a mesma que Maali atravessou há menos de três dias. 

Estava certo sobre os farkasianos e não em sua perspectiva mais recente, na qual Oz — e somente ele — tinha sido seu objeto de observação, fazendo-o baixar boa parte das suas defesas e colocado em sua cabeça que criaturas equivocadas e barulhentas podiam ser apenas isso, não intrinsecamente um problema. Estava certo quanto aos receios que tinha antes disso: que uma aliança política forjada por um casamento não seria o bastante para parar a ambição de Ravi e seu hábito de achar que Farkas tinha direito sobre todas as coisas que se erguiam acima do vórtex.

O rugido de uma explosão colocou seu foco de volta ao prumo. Perto demais, alto demais. De onde estavam já conseguia ver o fogo se alastrando pelas árvores próximas, que ladeavam o caminho até a Ponte e se expandiam para formar o bosque. Maali arrumou uma flecha no arco, fazendo uma varredura dos arredores. Com um piscar de olhos, fez o visor mudar a mira dos monges para a estrutura geral das montanhas. Nenhuma ameaça de avalanche. 

— Detalhes? — exigiu, assim que a montaria alcançou o bosque que separava o Distrito da ponte, unindo-os ao esquadrão de monges que tentava conter o ataque. 

A família de Yan morava naquela região, Maali se lembrou, experimentando um curto alívio ao lembrar que Ravi os havia alocado em seu próprio território. Era uma parte a menos da sua família com a qual se preocupar naquele instante.

— Três carros — um dos monges respondeu, prontamente. — Eles estão tentando abrir caminho em nossas defesas. Estão armados com armas de fogo. Mestre Inua, se adiantarmos nossas unidades de defesa distrital, acredito que podemos pará-los ainda dentro do bosque. 

Aquele seria o melhor dos cenários: interceptar um ataque ainda na entrada da Cidade, neutralizá-lo em um ambiente com poucos civis, então subir as defesas nivarianas pela ponte para saberem com mais antecedência se houvesse alguma nova tentativa de ataque. 

Ao que parecia, Ravi quisera enviar um recado direto e deixar claro que Maali não era mais bem visto entre os seus, que deveria permanecer em terras nivarianas e qualquer acordo previamente estabelecido estava rompido. 

Nenhuma aliança sobrevive a tiros de canhões. 

Outro tiro cortou o ar. A bala de canhão, feita de minério fundido, atravessou a copa das árvores com força, colidindo contra um tronco grosso. O som de estalos e gritos de comando precedeu a queda da árvore morta não muito à frente de onde ele e Mestre Inua estavam. 

As orelhas de raposa de Maali se voltaram para trás instintivamente. Do arco de um monge ao seu lado, uma flecha voou de encontro ao primeiro dos carros, atingindo-o e causando uma explosão que consumiu em chamas o teto do veículo. 

— Defesas distritais, todas para perto da ponte — Inua anunciou pelos comunicadores. Então se voltou para o monge. — Como se aproximaram tanto antes que soassem os alarmes?

— Magia têxtil! — um monge respondeu. Maali seguiu o dedo dele até o local para onde ele apontava, para um pedaço de tecido destruído pelas flechas. — Estavam cobertos com aquilo, senhor. Invisíveis. 

O olhar de Maali se alongou para diante, como se pudesse ver a ponte de onde estavam, e todo o caminho espiralado de lá até Farkas. Ele estreitou os olhos, os pensamentos trabalhando a toda velocidade, de volta àquela estranha movimentação em Farkas, aos avisos agudos que sua intuição tinha lhe dado e que decidira ignorar.

— Precisamos recuar — ele sibilou, apertando o ombro de Inua. — Isso não é tudo que eles têm.  

Farkas não atravessaria a ponte escondendo seus veículos de guerra se não tivesse a intenção de devastar Nivaria.

— Fale claramente, Maali — Inua pediu, virando o rosto em sua direção. Seus ombros já começavam a ficar mais rígidos, como se a experiência do monge fosse capaz de fazê-lo compreender, desde então, o que Maali havia levado meses para observar. 

— Recue as defesas, Mestre! — reforçou, erguendo a voz para se sobressair a outro tiro de canhão, outra leva de flechas. — É uma armadilha!

Como se quisesse confirmar o ponto de Maali, o mundo ao redor da ponte foi preenchido por um som de pesadelo: um por um, canhões invisíveis dispararam contra a formação, caindo sobre eles como as estrelas cadentes das histórias de Niva. Maali não conseguiu fechar os olhos ou reagir enquanto via os colegas mais adiante serem obliterados pelas explosões, o cheiro de carne queimada ferindo suas narinas. O som dos disparos continuava a ecoar em seus ouvidos como um grito agudo, ininterrupto.  

A fumaça escura que se erguia da planície de Nivaria era diferente de tudo o que tinha visto. Estavam bem no período de degelo, quando a camada de neve dava lugar à terra em recuperação. Yan costumava dizer que aquele era o pior período, depois do inverno, para coletar novas ervas. As plantas mais delicadas pereciam durante a nevasca e ainda era frio demais para nascerem. 

Devia ser frio, pelo menos, mas tudo o que Maali sentia era calor, um calor aterrador de fogo e fumaça. Foi a primeira vez naquela noite que ele experimentou o sabor do desespero. Infelizmente, não seria a última. 

— Recuem! Defesas, recuem! — comandou Inua, encarando com o olhar alarmado, a devastação de suas forças. — Abandonem o bosque e se concentrem nos núcleos! Garoto, você vem comigo — anunciou ao fim, e seu tom de comando ainda era tamanho que Maali demorou a sair de seu estado de letargia e entender que o Mestre falava com ele. 

— Como é? 

No controle da montaria, Inua comandou o alce para que desse meia-volta, disparando pela estrada enquanto gritos de guerra emanavam da ponte. Maali se voltou para ver a destruição, encontrando — através da fumaça que se afinava — uma camada de corpos de monges e de animais e, mais ao fundo, um exército de farkasianos que abandonavam os carros para avançar à frente deles, aos gritos, cruzando os últimos metros pela ponte a pé enquanto a fileira de veículos, então visíveis, continuava a avançar para dentro de Nivaria. 

— Nós vamos para a Cidadela — a voz de Inua soava abafada, suas palavras se espalhando pela rede de comunicação dos monges. Seu visor apontava os monges restantes, devidamente identificados por um código numérico individual. Os pontinhos apagados davam às baixas uma distância objetiva, mas ainda assim dolorosa. — Alika, você assume as defesas distritais.  

Em treinamento, aquele procedimento era todo teórico. Os núcleos eram dois: o Distrito, onde se encontravam grande parte dos abrigos e dos civis; e a Cidadela, centro de toda a matriz tecnológica de Nivaria. A divisão das tropas era feita através do código numérico e pensar nisso fez o peito de Maali se contrair em ansiedade. Havia em seu visor um número baixo de monges ativos. Tinham perdido muitos na emboscada, tantos que toda a divisão teórica de tropas estava comprometida e não havia tempo para repensá-la com o exército farkasiano avançando em seus calcanhares. 

— Eu vou ficar no Distrito — Maali anunciou com a voz firme, momentos antes de saltar da montaria para fugir do alcance de Mestre Inua. 

Estavam bem na encruzilhada que dividia a estrada que levava de volta ao Distrito e a trilha que atravessava a porção da floresta até o pé da montanha, caminho para a Cidadela.

— Maali! — Inua exclamou, firmando a mão nas rédeas para controlar o alce agitado, mas tanto ele quanto Maali sabiam que o tempo para discussões havia acabado. 

— Cuide da Cidadela. — Maali ajeitou a aljava nos ombros. Tinha um punhado de flechas consigo, e poderia conseguir outras no Distrito. — Eu fico aqui para ajudar a conter o avanço deles. 

Mesmo no caos, ele arrumou espaço para um sorriso que Inua não conseguiria ver, mas perceberia pelo tom de sua voz. 

— Não importa o que aconteça, eles nunca poderão ter tudo que é nosso, Mestre. Eu não os trouxe comigo. Estão bem escondidos, fora de Nivaria.

Inua riu um riso triste, tão amargo quanto os remédios de ervas nivarianos poderiam ser. 

— Quando foi que você ficou tão teimoso, garoto? — ele questionou. E pela primeira vez nas últimas horas, Maali gostou de ser chamado assim. — Fique inteiro. Por Nivaria. 

— Por Nivaria! — Maali repetiu, e sem alongar mais aquela conversa, deu-lhe as costas, correndo para a entrada do Distrito. 

━━━━━━ • ❆ • ━━━━━━

As defesas distritais eram poucas em relação à velocidade com que os farkasianos avançavam. Embora a estrada até o Distrito obrigasse seus veículos de guerra a se aproximarem em linha reta, esquadrões de guerreiros farkasianos espalhavam-se a pé, empunhando armas, disparando tiros contra as forças de defesa de Nivaria e contra as casas mais à entrada do Distrito. 

Eram rápidos e barulhentos, desordenados como um exército de saqueadores mais do que como o poder militar da mais opulenta das Cidades. Eram bem o tipo de guerreiro que Maali esperava que fossem. Se tivessem números, poderiam se defender; se fossem numerosos como os invasores, eles não teriam chance frente ao treinamento dos monges. Mas não tinham e essa percepção era sufocante a ponto de fazê-lo querer tirar a máscara.

Quando a estrutura de uma casa explodiu perto da estrada, atingida por uma bala de canhão, Maali estava logo atrás, forçado a recuar novamente em meio a uma nova nuvem de fumaça.

— Alika! — chamou pelo comunicador. — Precisamos de ordens!

A resposta demorou para vir, o silêncio se alongando o suficiente para que Maali buscasse o número dela no visor. Ainda aceso. Ainda próximo. E uma sombra rompeu a fumaça pouco depois: o metal esverdeado do alce autômato brilhando ainda mais depois do contato com o fogo. A figura sobre ele usava a própria túnica como escudo contra as chamas ao redor, atirando-a para longe assim que se afastou o bastante do caos. 

Sem a túnica pesada, feita para o frio, Alika contava apenas com as roupas mais finas que os nivarianos costumavam vestir por baixo. As escarificações dos braços expostos cintilavam suavemente — um vestígio suave de magia para ajudá-los onde a tecnologia falhava em protegê-los. 

— Formação em pinheiro! — a voz rouca de Alika explodiu nos comunicadores, acompanhada da tosse causada pela fumaça e pó erguidos da última explosão. 

A marcha ao redor era uma mistura do trotar de alces e dos passos dos monges sem montaria, todos movendo-se como um só para assumir suas novas posições. 

— Alika, fica na retaguarda. Eu assumo a frente — rebateu Maali, preocupado com o som da respiração pesada da caçadora que arranhava seus ouvidos. 

— Eu ainda dou as ordens, Tyr Maali. Vá se foder se não puder segui-las! 

Maali franziu a testa. Alika, Inua, até mesmo seus pais deviam vê-lo como um rebelde àquela altura, como se não tivesse dedicado cada ano da sua vida a servir Nivaria e ouvir cada ordem dos superiores. Ter estado na companhia de Oz por poucos desses anos parecia ter derrubado sua reputação alguns degraus para baixo — auxiliado por suas próprias escolhas, é claro. E até mesmo Maali teria a humildade de reconhecer que tinha uma pitada de rebeldia, se tivesse cabeça para aquilo agora. 

A formação em pinheiro era uma das estratégias básicas de defesa nivariana, criada especialmente para cobrir a entrada do Distrito contra ataques vindos da direção da floresta e da ponte. Era, prioritariamente, uma estratégia de caça contra Fronteiriços de nível quatro ou acima, e Maali tinha suas dúvidas quanto à efetividade da formação no combate a vários alvos, como um exército armado. Mesmo assim, era melhor segui-la do que não seguir porra nenhuma.

— Quero todas as agulhas para cima! — Alika comandou, avançando com seu alce para a ponta da formação, a respiração cada vez mais ruidosa. 

Os arqueiros agiram num gesto gêmeo: flechas saindo das aljavas, encaixando-se rapidamente nos arcos. A mira não era clara, cercados de fumaça como estavam, mas o melhor que poderiam fazer era atirar para diante. 

— Mantenham as posições — ela disse com o punho erguido. Parecia ser capaz de enxergar o que acontecia logo à frente, mas o que tinha a seu favor eram as orelhas de cachorro e sua ótima audição. — Atirem! 

O céu se encheu de flechas cortando o vento, zunindo como um enxame de abelhas. E a sequência de explosões que sucedeu o movimento, seguida de outra maior, arrancou dos guerreiros nivarianos um uivo vitorioso. 

Tinham conseguido derrubar um dos carros de Farkas, transformado a estrutura metálica em uma bola de fogo que lançou aos ares mais um punhado de invasores farkasianos que avançavam pelos flancos. 

— Agulhas em posição — bradou Alika novamente, nada inclinada a comemorar enquanto tropas continuavam a avançar em direção à Cidade.

— Precisamos de um alvo melhor! — Maali voltou a se intrometer.

Fosse aquele um treinamento, Alika já o teria atingido na cabeça com uma coronhada do próprio arco. 

— Me dê um alvo melhor então, Tyr Maali. Ou fecha o caralho da sua boca! 

Maali rosnou, irritado. Não teriam flechas suficientes para seguir aquela estratégia. Quando a fumaça das explosões abaixou, a fila de carros avançando para dentro do território ainda era tão longa que tentar contá-los era um esforço sem propósito. Morreriam brincando de tiro ao alvo.

— A torre de transmissão — ele disse por fim, apontando para um dos prédios maiores, dos que ficavam nas pontas das espirais. 

O prédio era um gigante feito de camadas de vidro maciço fundido com o mesmo metal que utilizavam para os artefatos nivarianos. Ficariam sem comunicação, mas teriam colocado uma barreira bastante efetiva entre os farkasianos e o Distrito. 

— Isso é maluquice… — ouviu Alika comentar e enquanto ela avaliava as opções, era perceptível como sua respiração tinha chegado ao limite do doloroso. Maali supunha que, no mínimo, ela havia quebrado algumas costelas. — Vamos fazer isso. 

— Monja Alika! — alguns dos outros monges retrucaram no comunicador. Não tinham o costume de entrar em batalhas sem os equipamentos necessários. 

— Levaríamos semanas para restabelecer a comunicação! — se indignou um dos caçadores mais velhos, na ponta da formação. 

— Ou morremos todos e te poupamos do inconveniente! — Maali retrucou em um rosnado. 

— Eu juro por Niva, Tyr Maali, que se sairmos vivos desta merda, te atropelo com a porra do meu alce por ser tão bocudo! E vocês todos também se ficarem me retrucando no meio de uma emergência! Agulhas, atirar!

O último comando de Alika veio forte demais, urgente demais para qualquer outra resposta. Quando os arcos nivarianos voltaram a se erguer em mira e disparar uma saraivada de flechas que atingiram a torre, o primeiro sinal de sucesso que tiveram foi a estática nos comunicadores, as luzes que indicavam os números dos caçadores ativos se apagando de uma vez, tornando as máscaras obsoletas. E então a torre pendeu, placas de vidro explodindo conforme a gigantesca estrutura despencava em direção ao Distrito, bloqueando a entrada em uma queda tão sonora que ofuscou os gritos dos farkasianos atingidos. 

A pequena revoada de pássaros-engrenagem que sobrevoava a formação foi caindo, um por um, obrigando os monges a desfazerem a posição para evitar serem atingidos. Diretamente conectados à torre de transmissão, se desligavam na ausência de sinal. A mesma coisa teria acontecido às montarias autômatas se não tivessem baterias independentes.

Maali soltou do rosto a máscara de demônio, lançando-a no chão sem cerimônia. Se lembrou instintivamente da vez em que ele, Oz e Yan derrubaram o Fronteiriço na floresta, da forma como Oz enfrentara o inimigo naturalmente sem o uso de qualquer tecnologia ou magia de guerra. Tinha tirado a máscara naquele dia para evitar as ordens de Alika e tido uma visão bem mais orgânica da cena. Era como se a ausência do equipamento liberasse em Maali um novo lado que era pouco monge e bem mais feroz; que os farkasianos fossem habituados a combater com aquele nível de crueza era ao mesmo tempo seu grande ponto fraco e sua maior vantagem. 

Sem a máscara, a formação de defesa era bem menos eficaz, mas a manteve, pelo menos por ora, enquanto tentava ver a cena que se montava do outro lado da estrutura caída da torre. 

Impossibilitados de avançar sobre o Distrito com os carros, os farkasianos se viam obrigados a escalar ou contornar a estrutura metálica por conta. Viu alguns serem derrubados daquela forma por flechas. Não era o suficiente. Naquele volume de monges-caçadores, não teriam flechas para todos. Precisava de mais alguma coisa. Um trunfo. 

Da entrada do Distrito, se estendia a estrada que levava às montanhas, desbloqueada. A fila de carros farkasianos que avançava por aquele caminho o encontrava livre de bloqueios e com poucas defesas. Dali do Distrito, Maali via alguns deles serem atingidos por flechas e pedras vindas de cima, lançadas pelo escasso grupo de monges que havia seguido Inua naquela direção. Voltou a rosnar, flexionando as orelhas de raposa para trás. E foi então que o viu: um carro que se destacava entre os demais, como uma formiga rainha a se deslocar entre as operárias.

O ego ridículo de Ravi, que transformava num circo cada uma de suas ações ou demonstrações de poder, dava as caras novamente. Daquela vez, contudo, Maali se sentia especialmente grato: ali estava o seu trunfo. 

Não lhe ocorrera, nem por um momento, que Oz estivesse envolvido naquele despropósito. Ainda restava no coração de Maali um bom punhado de confiança em seu parceiro, na criatura que pudera desvendar nos dois últimos anos. E se não pudesse se apegar a isso, pelo menos poderia se apegar ao instinto guerreiro de Oz. Se ele estivesse envolvido naquela emboscada, a batalha não aconteceria sem ele — e com ele, seria muito mais organizada, ainda que igualmente barulhenta. 

Se derrubasse Ravi, Oz se tornava o próximo líder. Se o derrubasse, as forças farkasianas seriam obrigadas a obedecer às ordens de Maali, por ser o noivo prometido de Oz, ou ao menos teriam que cessar fogo e aguardar ordens diretas do novo Senhor dos Lobos. Ainda tinha quatro flechas consigo. Seria o suficiente para pôr fim àquilo tudo de vez. 

— Alika, eu tenho um plano! — anunciou com um grito, assim que saiu da formação, acenando para o guerreiro mais ao fundo, para que tomasse sua posição na formação de defesa. 

Não deu a Alika tempo para protestar ou impedi-lo. Irrompeu por entre os destroços da torre portando apenas seu arco e a aljava, mal se importando quando um grande fragmento de vidro, ainda preso a uma viga de metal, arranhou sua cauda enquanto passava e fez os pelos se empaparem em sangue fresco. Aquilo não era nada se ignorasse a dor, e a adrenalina da batalha tornava aquela uma missão fácil.

Escalou a estrutura, ágil como a raposa que era, e ajustou o arco na mão da forma mais rápida que pôde para garantir precisão.

A primeira flecha atravessou o vidro fumê do veículo, estilhaçando as janelas dos dois lados e explodindo mais adiante, contra o tronco de um cedro. Precisava confirmar que Ravi estava mesmo ali dentro, que fora burro o bastante para se expôr daquela forma. E riu sem emoção quando o líder farkasiano o encarou lá de dentro, mostrando os dentes numa expressão enfurecida. Ao seu lado estava um guerreiro farkasiano, ainda pálido de susto. 

Saltou de cima da estrutura para desviar de um tiro que por pouco não o pegou, então usou a segunda flecha como um artifício, disparando-a propositalmente em uma árvore no caminho entre eles e os soldados farkasianos mais próximos. A fumaça que se ergueu da explosão prejudicava sua visão, mas criava, em contrapartida, uma forma de se deslocar mais para perto do veículo, sem que fosse facilmente atingido por tiros dos invasores.

Despontando do bosque o mais perto possível do veículo de Ravi, Maali armou a terceira flecha com velocidade, mirando-a contra um dos pneus do carro. Não ia dar àquele desgraçado a chance de fugir. O pneu explodiu num estouro dolorido que feriu-lhe os tímpanos, fazendo o carro perder a direção, chocando-se contra uma árvore. 

A última de suas flechas estava reservada para ele e não a desperdiçaria. 

Se aproveitou novamente da nuvem de fumaça e da confusão para contornar o carro, se embrenhando entre as árvores no lado mais denso do bosque, usando — como aprendera em uma infinidade de treinamentos de combate — as árvores como seu esconderijo. 

— Eu vou acabar com você, moleque! — ouviu Ravi rugir. Tinha um corte feio na testa que sangrava profusamente, e embora tivesse conseguido sair do carro munido de uma arma que disparou para o nada algumas vezes, ainda estava tonto da colisão. 

Maali prendeu a respiração, aproximando-se devagar. Mesmo entre gritos, a floresta parecia-lhe inquietantemente silenciosa, como se um predador maior e mais forte o rondasse enquanto ele próprio rodeava Ravi. 

— Por que você não sai desse esconderijo, raposinha safada, e vem se resolver comigo de uma vez por todas? — Ravi tornou a falar. Olhava na direção do Distrito, como se esperasse que Maali viesse por ali. 

— Pss — Maali sussurrou. E já tinha sua última flecha pronta quando Ravi olhou em sua direção. Só tinha uma chance.

A flecha teria explodido seu crânio se o farkasiano não tivesse largado a arma e erguido a mão por instinto. Em vez disso, atravessou-lhe a palma, a ponta afiada cintilando perto demais. Ravi teve a presença de espírito de afastá-la do rosto segundos antes de a flecha explodir, transformando sua mão numa massa confusa de carne e ossos fragmentados, o grito de Ravi sobrepondo-se a todos os outros sons. 

Maali arregalou os olhos. Sua mira tinha sido perfeita. Ainda assim, tinha falhado. Precisava ser rápido se quisesse desaparecer novamente na floresta, mas, quando ouviu o som de uma arma sendo engatilhada, sabia que já era tarde. 

— Espere! — bradou Ravi em um rosnado. 

Apertava a mão dilacerada com força, tentando ao máximo conter o sangramento. Seu rosto, empalidecido pela dor, também estava deformado pelo ódio, embora uma fagulha despontasse de seus olhos. Essa, Maali notou com o coração disparado, tinha um brilho vitorioso.

Ao seu lado, um soldado farkasiano tinha Maali na mira. A única coisa impedindo o tiro era o comando de seu líder. 

— Olhe para mim, raposa desgraçada — ordenou ele, entredentes. — Não pretendia ser parte da minha família? Agora não é capaz de me encarar sem uma arma?

Maali o encarou. Não deixaria que aquele homem tivesse sua submissão na memória. Ao redor deles, não podia contar com nenhuma força nivariana, nada. Estava longe de qualquer formação. Fizera uma aposta e a tinha perdido. Agora teria a postura de encarar a consequência. Ao menos, levara a mão do desgraçado consigo.

— Onde estão Oz e Yan? — exigiu saber, a voz se erguendo conforme o fogo em seu peito se tornava mais forte. — Eu espero que você não tenha sido covarde de encostar a mão no Yan, seu cretino! 

— Aquele ratinho? — Ravi tentou um riso sarcástico, que virou um rosnado de dor bem na hora. Ele pressionou mais os dedos ao redor da mão destruída. — Eu devia mesmo ter trazido aquela coisinha comigo. Ia me ser muito útil agora. Mas não se preocupe, ele vai ter muito trabalho em Farkas cuidando dos nossos feridos depois da vitória.

O sorriso dolorido de Ravi se ergueu dando-lhe o aspecto de uma carranca. 

— Quanto ao meu filho… Ele estava logo atrás de você esse tempo todo. 

O pavor sem nome que o estivera rodeando até agora finalmente tomava forma. Ou era físico o bastante, pelo menos. Potente como primeiro golpe que o atingiu pelas costas, roubando de Maali todo o ar. Foi como ser atingido por uma marreta ou algum dos instrumentos que só conhecia dos livros, aqueles utilizados para extrair minerais. 

Seu corpo pendeu para frente, incapaz de resistir. Maali tossiu, manchando de sangue a terra seca, sem vida. Achou que aquela dor já seria forte o bastante para apagá-lo, mas continuou consciente enquanto era montado nas costas, uma mão grande pressionando seu rosto contra o chão enquanto os socos vinham numa sequência nauseante. 

Tinha visto aquelas mãos em ação, destruindo a carcaça dura de um Fronteiriço como se não fosse nada. Também as sentira por seu corpo em carinhos que nunca tinha imaginado experimentar e que se tornaram os seus preferidos muito rapidamente. Agora aquelas mesmas mãos transformaram suas costelas em pó, os pulmões atingidos implorando por um ar que Maali já não conseguia mais puxar, apesar de todo o esforço. Ele arranhou a terra em uma tentativa tão ridícula de lutar que acabou arrancando de si lágrimas frustradas. 

Pior do que morrer cercado por inimigos era morrer pelas mãos de um grande amor. 

Por algo assim, nunca seria capaz de perdoar Oz. Pela dor. Pela traição. Pela mesquinharia de avançar contra a sua Cidade daquela forma estabanada e cruel, escondido feito a merdinha de saqueador que era. Igual a qualquer outro farkasiano. 

— O que fazemos com ele, Senhor? — questionou um dos soldados. A voz parecia distante, como se vinda de outro plano, e ecoava disforme como um enxame de abelhas. — Quer que a gente corte a cabeça dele?

— E pra quê, estúpido? — respondeu Ravi. — Pra encurtar o sofrimento dele? Deixe-o aí. Ainda temos coisas a fazer. Nem ao menos encontramos os pais dele ainda. — Não precisava vê-lo para saber que Ravi sorria. Maali apertou as unhas quebradas contra a terra. — Vamos! E alguém me arrume uma merda de um curandeiro!

Maali já estava no limite da inconsciência quando aquele peso finalmente saiu de suas costas. Com muita dificuldade, virou o rosto. Queria olhá-lo nos olhos, queria ver se havia algum vestígio de culpa em Oz, mas tudo o que viu foi uma cachoeira de cachos escuros. Quando sua vista se apagou, o último som que ouviu foram os gritos sobrepostos, apavorados, que vinham da direção de um dos abrigos.

Só voltaria a acordar muito tempo depois, com tanta dor que era um milagre ainda estar vivo. Parecia-lhe que sua alma se recusava a partir assim, a abrir mão de si própria tão facilmente. A garganta ardia de tão seca. Os dedos moles tatearam os arredores, seguindo uma memória própria, até alcançarem o cantil que o Instrutor lhe emprestara. No fundinho da cabeça, pensou em como era engraçado ainda estar com ele até agora. Não o tinham tomado na casa de detenção. Não o tinha perdido durante a batalha. 

Estava com tanta sede. Tanta. Com muita dificuldade, girou a tampa do cantil. O diplomata precisaria perdoar-lhe a indelicadeza de não seguir suas ordens quanto àquilo — ou poderia ir cobrá-lo após a morte, se preferisse. 

Tentou trazer o cantil aos lábios, mas o braço se recusava a obedecê-lo. Havia bem pouca energia sobrando em seu corpo para desperdiçar assim, mas não queria morrer com tanta sede. Arrastou o braço contra o chão num gesto tão lento que Maali não se surpreenderia se tivesse levado horas naquilo. E apenas para descobrir que não havia água nenhuma no recipiente quando finalmente alcançou a boca. 

— Kuí — gemeu num misto de riso e dor. — Você prometeu… que eu poderia contar com a sua ajuda… seu cuzão. 

Eram as últimas palavras mais ridículas que ainda poderia falar. Maali se sentia a criatura mais ridícula das cinco Cidades e se tivesse uma única chance, só mais uma, nunca mais seria tão insensato. 

Se tivesse mais uma chance, destruiria aquele mundo inteiro.

E esse foi, em definitivo, o seu último pensamento. O jovem nivariano sequer sentiu quando seu corpo quebrantado foi envolvido por algo muito semelhante a um lençol de água fresca. 

Continua…

No próximo capítulo… E se eu disser pra vocês que vamos atravessar o Vórtex de volta para São Paulo e reencontrar criaturinhas que acabaram de recuperar as memórias?

O Capítulo 45  — Relógio-Cuco chega em 06 de junho de 2025!

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