💫 Pontes Imortais ― Capítulo 43

Quando nos reencontrarmos

Oito horas para a queda de Nivaria, vizinhos! Apertem os cintos!

No último capítulo… Maali voltou a Nivaria e foi… Preso! As informações confidenciais que ele tinha tirado da matriz (e deixado com Shu!) já eram de conhecimento dos monges. Mas os problemas jurídicos foram interrompidos por… um ataque. Quem? Por quê? E, acima de tudo, o que querem?

Música-tema do capítulo: Teto de Vidro, de Pitty (sigam a playlist oficial Pontes Imortais #2 no Spotify!)

Capítulo 43 — Quando nos reencontrarmos

Banjora, 8 horas antes da queda de Nivaria

— Quando te conheci, não achei que você fosse tão sentimental. 

— Não sou.

Yan tinha a voz afiada como uma adaga. Era baixa e discreta, como algo capaz de perfurar a carne sem dar aviso, como um alerta gentil demais para ser sentido antes que se enterrasse no alvo. A Shu, aquele traço da personalidade do curandeiro sempre chamou sua atenção, desde a manhã gelada em que se conheceram. 

Gostou dele por ser alguém atento o bastante aos arredores para notar um lagartinho morto na neve, gentil a ponto de usar seu dom para trazê-lo de volta. Acima de tudo, o que Shu mais gostou em Yan no primeiro dia foi ver que até mesmo alguém de aparência tão dócil trazia no olhar o discreto brilho da cobiça. 

Ele o ajudou, mas por qual motivo? Aquilo demorou um pouco mais para entender. Foi quando Yan o exibiu pela primeira vez como um lagarto mágico que ele havia trazido de volta dos mortos que compreendeu. Era a prova vida de seu dom e gentileza, um atestado de poder e caráter bem ali sobre seu ombro, que podia falar e confirmar a história.

Yan era a pessoa menos sentimental que conhecia e, ainda assim, Shu sabia o que significava aquele movimento agora, as repetidas vezes em que ele levava a mão até o rosto, por baixo dos óculos, esfregando impacientemente os olhos. 

— Eu tive um sonho horroroso — Yan explicou, lágrimas presas nos olhos inchados. 

Tinha dormido pouco. Aquela não era sua casa. Nenhuma delas. E o alojamento fornecido pelos banjorianos, apesar de luxuoso — como agradecimento pela ajuda enviada — era impessoal e frio. Naquela Cidade, Oz não era uma autoridade. Não podiam dormir juntos. Tinha ido de dormir com Oz e Maali para dormir em uma cabine privativa. Era sorte ao menos ter Shu para lhe fazer companhia, ou estaria bem mais aborrecido.

Uma ave colorida passou beirando o vidro da janela, emitindo um grasnado tão alto quanto um alerta. Se não estivesse desperto, aquilo o teria acordado, sem sombra de dúvida. Por trás das asas, cujas longas penas eram de um rosa cintilante, estendia-se um denso emaranhado de árvores cobertas por musgo, conectadas por grossos cipós pesados pelo peso dos morcegos que começavam a tomar seu lugar para dormir. O dia começava a ameaçar iluminar o céu de Banjora, não fossem as escuras nuvens que tomavam todo o perímetro no que parecia ser obra da ira de Silki, novamente. 

Francamente, pensava Yan, como era possível que cultuassem um Imortal tão birrento quanto aquele?

Os resultados da ira de Silki arrastavam-se pelos últimos dois anos. O Imortal parecia estar colecionando mortes e atentados, e aquela era a obra de nada menos do que um ser poderoso e mimado. Tinha ouvido a história no seu primeiro dia de viagem e sonhado com versões dela desde então — como naquela noite, quando foi acordado por um sentimento sufocante.

Para a honra de Silki, Banjora cultivou um jardim mágico, suspenso acima da região mais bela da Cidade. Segundo o jovem de cabelos verde-água que lhe contou a história enquanto trocava as ataduras da ferida que quase havia decepado sua orelha, o jardim era tomado por árvores de cuja casca os banjorianos produziam excelentes pares de tamancos, e o lar de milhões de larvas da seda, aranhas tecedeiras e mais uma infinidade de insetos asquerosos produtores de matéria-prima para tecelagem e que habitavam apenas Banjora — esse mérito, Yan tinha que dar ao ego de Silki. Odiaria que Nivaria ou Farkas fossem tomadas por aquelas coisinhas.

O jardim de Silki era todo projetado ao redor de uma árvore especial, um pé de jambo de cuja copa triangular pendiam pencas de frutas púrpura e que produzia, ainda segundo aquele mesmo jovem, um único fruto dourado por ano: o fruto de Silki. Os locais tinham entrado em um embate quando o garoto chegou a essa parte da história e Yan lhe perguntou se era apenas a cor que fazia desse fruto algo tão especial.

“Dizem que sem aquele fruto, Silki perde todos os seus poderes Imortais!”, confabulou o garoto, e foi respondido por um coro de banjorianos irritados, que aguardavam tratamento para pequenos ferimentos.

“Que baboseira”, sussurrou Shu, escondido sob seus cabelos, onde havia estado por toda a viagem até Banjora. 

A ira de Silki havia sido causada, segundo lhe contaram, pelos prestigiados guardas que deviam proteger o jardim mágico. Por um deles. 

“O garoto tinha um cargo de confiança, mas achou de bom tom devorar justo o jambo proibido! Foi bem feito que Silki o explodiu, se quer saber”, ralhou uma senhora de cabelos amarelo-gema e expressão irritada, quando Yan limpou a ferida em sua testa. 

“Mas ele não precisava ter explodido todos os outros guardas também. Nem continuar atacando a gente como se todo mundo aqui tivesse roubado ele!”, respondeu um homem mais jovem ao seu lado.

“Esse é ele questionando a sua ira, grande Silki! Não eu!”, acrescentou a velha e Yan suspirou, balançando a cabeça. 

Aquele era um festival ridículo de ferimentos desnecessários. Ao menos, segundo ouviu deles logo depois, apesar dos muitos feridos, as mortes haviam cessado, o que indicava que Silkie estava se abrandando. 

— Esse foi outro daqueles sonhos envolvendo o grandão barulhento e o raposo? — questionou Shu, trazendo-o de volta das memórias para o quarto.

Yan esfregou mais uma vez os olhos por baixo das lentes grossas.

— Foi — ele entregou. E desandou a contar o que havia sonhado. 

Sobre Oz se tornar algo descontrolado, como Silki ou como Ravi. O Oz que via em seus pesadelos era tão diferente do que conhecia que lhe causava tormento. Em muitos dos sonhos, ele e Maali evoluíam para um nível de embate que dava pouca margem para que intervisse. Naquele, em especial, Maali não estava em lugar algum e Oz — à mera menção de seu nome — entrava em um estado de raiva que deixava até mesmo Yan intimidado. 

— O raposo não estava no sonho porque não está aqui agora. Esse é só você sendo um chorão — Shu riu. E então protestou com uma ameaça de mordida ao peteleco que tomou no corpinho. — Mas o que você faria? Se o cachorrão acabasse trilhando o caminho do pai, o que você faria? 

— Isso não vai acontecer. Eu não vou deixar.

— O que exatamente acha que pode fazer? Controlar o emocional dele com amor? Ou com um chá de… ? 

— Shu! — Yan chamou, impaciente. — Não fale tanta grosseria. Estou te dizendo que tem muita coisa que eu seria capaz de fazer por ele. Pelos dois. Muita coisa… 

No fim daquele sonho — e essa parte, omitiu de Shu —, Yan tinha em mãos uma adaga. O caminho que a arma fizera no ar era direto como seus olhos. O som baixo com que se cravara na garganta de Ravi, afiado como sua voz. Acordou chorando não porque havia experimentado a sensação de matar em uma amostra de sonho, mas porque fizera aquilo na frente de uma dezena de olhos prontos para julgá-lo. Seria jogado no vórtex por assassinar um líder e não havia nada que Oz ou Maali pudessem fazer. 

Se um dia tivesse que chegar àqueles fins, pensou, teria que ser bem mais discreto. Bem mais efetivo

— E por mim, não faria nada? — Shu cobrou, seguindo Yan com o olhar enquanto ele se levantava para trocar a túnica de dormir pela roupa de curandeiro. 

— Veja só. No fim das contas, quem é o chorão? — Yan provocou em retorno com um sorriso de canto de lábios. — Vamos. Temos que acordar Oz. Tem muito trabalho a ser feito antes de podermos voltar pra casa. Você vem comigo ou quer ficar aqui hoje?

— Nem fodendo eu fico sozinho nesse lugar. Eu vou junto — exigiu Shu, e esperou que Yan apoiasse a mão sobre a cama para manquitolar por seu braço até ocupar lugar em sua nuca. 

Os cabelos de Yan haviam crescido um bom tanto nos últimos meses. Eram um excelente esconderijo para um lagartinho do seu tamanho. 

— Vai querer fazer graça pros banjorianos hoje como faz em Farkas ou vai passar mais um dia escondido?

— Os Imortais me livrem. Daqui eu não saio até a gente voltar pra casa. Com um Imortal maluco à solta, eu não sou nem louco de mostrar minha cara. Não tô a fim de ser explodido, não. 

━━━━━━ • ❆ • ━━━━━━

O atendimento passou mais devagar naquela tarde do que havia passado durante a manhã. Quando ele e Shu saíram de sua acomodação, migraram diretamente até o galpão alocado para o cuidado com os feridos. Tinham feito uma pausa breve para o almoço — por insistência de Oz — e voltado. 

Aquele era um dos maiores galpões que Yan já tinha visto. Se assemelhava em tamanho e arquitetura a alguns pelos quais passaram ainda em território farkasiano, construídos na zona rural perto da ponte, para o armazenamento de produtos de exportação. Aqueles eram bem maiores do que qualquer galpão que vira em Nivaria durante toda a vida. 

— Eu acho que nunca perguntei… O que é armazenado aqui em dias comuns? — perguntou Yan para a moça que atendia, que tinha curtos e espetados cabelos cor de tangerina. 

— Tecido. Matéria-prima a ser exportada através da ponte — Shu respondeu em um sussurro bem perto de seu ouvido, antes de acrescentar. — Ouvi uns velhos comentando.

— Você é bem atento — Yan concedeu, depois de ouvir que a resposta da mulher casava perfeitamente com aquela. 

— Tenta não ser atento sendo comida de pássaro grande. Era pra um ratinho ter um discernimento melhor — ele atazanou do seu ombro. Yan precisou segurar o riso impróprio para o momento. — Sabemos que o seu é ruim. Fica se enroscando com lobos e raposas… O que vem a seguir? Uma cobra?

— Chega. Ou vou te dar de presente pra um bando de criancinhas brincarem — retrucou o curandeiro com um tom mais leve. 

As coisas estavam bem mais calmas do que tinha imaginado quando foram enviados. Não tinham topado com nenhum caso irrecuperável, o grande montante de ferimentos era leve e Banjora parecia bem encaminhada à recuperação. Não fosse a terra de sua esposa, duvidava que Ravi sequer cogitasse enviar ajuda humanitária para uma Cidade naquela situação. 

— Espero que não estejam lhe sugando toda a energia, queridinho. 

Era peculiar que justo aquela criatura aparecesse perante seus olhos a mera menção de cobras. Kuí, o Instrutor da Ópera do Fim do Mundo, trazia suas duas serpentes douradas sobre os ombros, o cabelo rosa cacheado preso na lateral da cabeça em uma trança. Apesar da coloração chamativa dos cabelos, não era banjoriano e nem mesmo estava ferido. 

— Como posso ajudá-lo, Senhor Instrutor? — cumprimentou cordialmente, com uma reverência polida. 

Criaturas influentes como aquela costumam ter o ego ferido ao menor sinal de desagrado. Yan fez um sinal educado para o aprendiz que controlava a entrada de pessoas, pedindo-lhe que aguardasse um momento e repassasse qualquer possível paciente para os curandeiros ao lado. 

— Não é incrível como banjorianos são capazes de erguer impérios apenas com tecido?

Yan concordou, ainda que a pergunta fosse curiosa. Atreveu-se a olhar em volta, como se não tivesse tido tempo de fazer aquilo antes. Poderia alimentar a vontade de um senhor influente de contar uma curta história, de sentir-se uma fonte de conhecimento. 

— É verdade.

Pelo tom da voz, Yan parecia ter notado apenas agora que estavam cercados de tecido. O galpão, ainda que robusto como uma construção, tinha sido erguido ao redor de toras de madeira grossa envolvidas por tecido rígido da aparência de couro, tão forte que podia ser esticado ao limite com o aspecto de uma parede de material sólido. Do teto, pendiam pesadas tiras que criavam as partições onde cada curandeiro poderia ver seus pacientes com o mínimo de privacidade.

Kuí tinha abordado Yan em uma delas. E se sentou, afagando a cabeça de uma de suas cobras. 

— Tem revivido muita gente por estas bandas? — questionou. 

— Tenho tido bastante trabalho, senhor. Como curandeiro, entretanto. Nada mais mágico do que isso — Yan respondeu, na falsa modéstia que havia tomado como seu tom mais comum. 

— Oh, o gosto dessas palavras é agridoce, querido — Kuí pontuou, levando a mão ao peito. — É um alívio, para o bem dos banjorianos, que seu dom especial não tenha sido usado. Ele é bem notório por estas bandas, se quer saber. Uma cortesia de meu amigo Ravi, eu imagino. Ainda assim… Eu me agarrava à curiosidade de vê-lo em ação. Espero ter a chance um dia. Outras formas de trazer de volta ou segurar a vida de criaturas no corpo são muito menos limpas do que ouvi falar sobre suas habilidades.

— Vamos apenas agradecer que minha ajuda nestas terras seja valiosa. Banjorianos demais já sofreram pelo erro de um. 

— Acho que todos concordamos neste ponto, meu bem. Continue com o bom trabalho. 

Yan acenou em retorno com um sorriso contido. Seu olhar seguiu Kuí tenda afora em curiosidade. 

— Tem alguma coisa errada, não tem? Por que ele estaria aqui? — Yan sussurrou, os olhos presos à nuca de Kuí até perdê-lo de vista. 

— Vigiar seu trabalho? — Shu sugeriu.

— A pedido do líder Farkas? Acha que um diplomata importante se prestaria ao papel de garoto de recados? — Yan franziu o nariz. Se Kuí fosse esse tipo de diplomata, teria bem menos respeito pela figura dele. Tinha um forte instinto que o dizia o contrário, entretanto. E era forte o bastante para deixá-lo mais ressabiado. 

Sinalizou mais uma vez para o aprendiz, espiando a fila de pessoas aguardando atendimento. Não havia nada urgente. 

— Um minuto, por favor. Só vou buscar um medicamento que esqueci nos meus aposentos — informou ao jovem, esboçando um sorriso calmo para os senhores que o aguardavam. — Não levo mais do que alguns minutos. Peço desculpas pelo inconveniente. 

Fez questão de mover as orelhinhas nivarianas enquanto falava. Se as palavras de Kuí estivessem certas e sua reputação fosse notória até mesmo ali, então o grupo de banjorianos não se incomodaria de esperar alguns minutos para serem atendidos pelo curandeiro nivariano mágico vindo de Farkas. 

— Nós vamos segui-lo? — Shu questionou, levemente aflito. 

— Só até vermos o que ele veio fazer aqui. Maali teria concordado que não era bom perder de vista uma figura tão importante com atitudes curiosas.

Veria com quem ele veio falar. E podia comentar com Maali quando estivessem novamente juntos sobre seu receio de ter sido observado em trabalho por alguém próximo do pai de Oz. 

Saiu do galpão-tenda, empurrando discretamente para o lado a porta de tecido mais maleável, e buscou as madeixas rosas de Kuí de um lado, depois do outro, sem encontrá-las. Suspirou, frustrado, antes de botar o pé pra fora. Tinha perdido ele de vista, mas haveria de encontrá-lo se andasse rápido. 

━━━━━━ • ❆ • ━━━━━━

Oz sempre ficava maravilhado quando vinha a Banjora. Primeiramente, pelo clima, indiscutivelmente superior ao de Farkas; também, pela riqueza de flora da Cidade e suas árvores impossíveis; por último, por como tudo era tão rico em magia e personalidade. Frente ao cenário básico onde havia nascido, era como encarar de frente o paraíso, mesmo em uma época como aquela, na qual a ira de Silki havia pesado tanto sobre seu fiel povo temeroso. 

De onde estava, na ponta da montanha, podia ver o galpão de atendimento médico a uma curta caminhada de distância e, bem mais à frente, a sombra do jardim suspenso de Silki, cujas raízes de árvores atravessavam a terra, se esticando até o chão da Cidade e se retorcendo por entre construções. 

Quando visitou aquela área pela última vez, estava com a mãe. Ela o havia mostrado a beleza das tecelagens que decoravam aquelas raízes, feitas pelas mãos de gerações de tecelãs que concentravam nos dedos o alto poder da magia têxtil de Banjora.

Tinha se pegado pensando em diversas ocasiões no que seria dele e de sua mãe se houvessem vivido em Banjora em vez de Farkas. Quem poderia ter sido o filho de Juno se não o herdeiro de Farkas? Alguém mais voltado à magia? Alguém capaz de ver, ainda que discretamente, um lampejo de orgulho naqueles olhos sempre tão duros?

Fechou os olhos e suspirou. Sua mãe teria sido mais feliz se tivesse continuado naquela terra? Ela era feliz agora

— Espero que não se importe que eu o roube do mundo das ideias agora, Jovem Farkas. Temos algo sobre o que conversar.

Oz reabriu os olhos na hora e se virou a tempo de encontrar Kuí sentado em uma das redes da pequena praça. Franziu a testa e esteve a um instante de rebatê-lo com alguma grosseria, mas só até absorver o semblante sério com o qual ele o encarava. 

— O que eu e você temos a conversar? 

— Nivaria.

Uma palavra. Oz não esperava ser rebatido tão prontamente com um misto de resposta e enigma. Buscava em silêncio nos olhos outrora irritantes de Kuí por algum tipo de zombaria, como se carregasse no fundo das pupilas de cobra uma informação que ele devia ter e não tinha. Só encontrou seriedade, daquela vez. Apenas curiosidade legítima, como se Kuí tentasse mapeá-lo.

— Me confunde com outra pessoa, pelo jeito. Se quer informações sobre cultura nivariana, qualquer um dos meus noivos seria fonte melhor — respondeu, ríspido, antes de cruzar os braços. 

Kuí ergueu as sobrancelhas. Imaturo, ainda que aparentemente fosse forjado de material bem mais maleável do que o pai. 

Quando olhava para Ravi, Kuí via a rigidez de um homem forjado em pedra. Havia vocalizado a impressão com essas mesmas palavras em uma de suas reuniões, às quais Ravi brindou ruidosamente com uma risada antes de um longo gole de cerveja. Kuí não as havia proferido como elogio, entretanto. Maleabilidade era a virtude dos prósperos e dos sobreviventes, algo que via em demasia naquele pequeno curandeiro, um tanto menos em seus dois noivinhos cabeça-dura. 

Tinha observado as interações entre os três a uma distância segura, com curiosidade. O que antes parecia apenas um acordo pautado em jogos políticos havia evoluído para um laço verdadeiro. Era como assistir ao longe a evolução de uma peça de teatro. Uma tragédia. E estaria assistindo de camarote, porque tinha uma gentileza a devolver nas cenas finais.

— Há um lugar onde você precisa estar, e não é aqui — Kuí acrescentou. — Podemos ficar aqui perdendo tempo com explicações ou pegar a estrada. E já adianto que eu viria comigo se fosse você, garanto que não há qualquer carro farkasiano que seja tão rápido quanto o meu.

— Oz, o que está acontecendo? 

Segurando com cautela a barra das vestes brancas para que não se manchassem com a terra que recobria os degraus, Yan subia pela escada de pedra que levava ao ponto mais alto, onde Oz e Kuí conversavam.

— Jovem Farkas — chamou Kuí, segurando-o discretamente pela manga —, devo aconselhá-lo que este é o melhor lugar para um curandeiro nivariano no momento.

Oz não sabia o que aquilo significava, tampouco confiava nas palavras daquele diplomata, sempre tão próximo de seu pai, mas na eventualidade de aquilo ser uma armadilha para separá-los, já tinham caído nela. Maali não estava com eles. 

— Yan, venha aqui — chamou, se soltando do toque suave de Kuí para envolver um braço na cintura do nivariano, se afastando com ele mais para o canto, onde pudessem conversar mais a sós. — Vou precisar voltar antes para Farkas. 

Se lembrava da reprovação nos olhos de Maali no dia do ataque de Fronteiriço em Nivaria, quando deixou que Yan o seguisse de volta até a floresta. Ele não é um guerreiro. Não foi treinado como um. Não gostaria de ver aquele olhar no rosto de Maali novamente, quando o encontrasse. 

— Eu volto com você — ofereceu o nivariano, ao que Oz negou com um menear de cabeça.

Precisam de você aqui — reforçou. — Fica. Só mais uns dias. Logo, vamos estar juntos de novo e você e o Raposo vão poder voltar a perder a paciência comigo — acrescentou, em brincadeira. 

E o trouxe para perto, beijando-o primeiro na testa, então perto do nariz, e por último nos lábios, de um jeito mais demorado. Yan o mordeu em resposta, como Maali também tinha feito quando se despediram. Era como se Nivaria criasse seu próprio exército de selvagens, com manifestações de afeto bem diferentes das suas. Oz amava aquilo.

Tinha se habituado a muitas coisas ao longo dos dois últimos anos, até mesmo àquele lagartinho insuportável que acompanhava Yan quase o tempo todo. Tinha um jeito bem diferente deles dois. Claramente não era nivariano e Oz pensou, pela primeira vez antes de partir, que não fazia ideia de onde aquele bicho tinha vindo. Fez uma nota mental de que deveria perguntar aquilo para Yan quando voltassem a se encontrar, os três, em alguns dias. 

Mal sabia, quando pisou no carro especial de Kuí e começou a travessia da ponte, que aquele pensamento seria varrido de sua memória por ventos tempestuosos. E pela lembrança dos gritos que ouvira quando chegaram ao destino. 

Eram quase tão altos quanto o som da ponte se rompendo. 

Continua…

No próximo capítulo… Nivaria cai no vórtex..

O Capítulo 44  — Eles nunca terão tudo que é nosso chega em 23 de maio de 2025

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