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💫 Pontes Imortais ― Capítulo 42
Solifania
Alerta: Faltam 72 horas pra queda de Nivaria! Se segurem porque talvez enfrentemos um pouco de turbulência no capítulo de hoje, mas reforço que o Vórtex é seguro para todos os leitores.
No último capítulo… Então quer dizer que Shu é capaz de esconder objetos… nas próprias manchinhas? Que tipo de magia de lagarto é essa? Espero que ele cuide bem dos segredos nivarianos que Maali deixou com ele. Sabe-se lá por quanto tempo esses segredos estarão sob sua guarda.
Música-tema do capítulo: Black, de Lim Hyunsik (sigam a playlist oficial Pontes Imortais #2 no Spotify!)

Capítulo 42 — Solifania

72 horas antes da queda de Nivaria
Maali nunca quis colocar os pés em Farkas. Sair de Nivaria implicava em uma mistura de desconfortos: enfrentar o balanço constante da ponte e a visão da morte em queda livre era só o mais óbvio deles. Mudanças bruscas agradavam-lhe bem pouco. Como caçador, tinha se acostumado à sazonalidade do mundo e seus padrões. Rastros na neve contavam uma história diferente daqueles que se formavam na lama fresca. Galhos quebrados e galhos torcidos não representavam a mesma coisa. Mesmo o cheiro do mundo se transformava conforme os dias corriam, e era fácil para um caçador treinado perceber a aproximação do degelo ou de uma nevasca pelo odor característico que permeava o ar feito um alerta silencioso.
Contudo, sua vida tinha virado uma espiral de ambiguidades desde que os Farkas entraram nela. Parecia haver um subtexto para tudo, e era difícil para alguém cuja educação sempre fora tão direta e rígida compreender tantas entrelinhas. Por exemplo: parecia uma gentileza que Ravi tivesse conseguido para ele um veículo a motor para que pudesse retornar a Nivaria. Que não tivesse movimentado um único discípulo para acompanhar o noivo de seu filho — o filho de um líder e futura coliderança de Farkas — em uma viagem potencialmente arriscada como aquela tinha ares de hostilidade.
Oz e Yan haviam partido mais cedo, e Maali fizera questão disso porque não queria que percebessem o quão assustado estava. A ideia de atravessar a ponte sozinho, mesmo que em um veículo seguro, embrulhava-lhe o estômago. As náuseas tinham-lhe acordado antes da hora e foi com muito esforço que participou do desjejum, segurando-se para não parecer enjoado diante dos olhos atentos de Yan.
Quando se despediu dele e de Oz percebeu: não queria colocar os pés em Farkas mas agora tampouco queria ir embora. Não sem eles. Tiveram a chance de uma única visita breve a Nivaria para oficializar o noivado também entre o seu povo, e por essa razão parecia errado que voltasse lá sem os dois.
— Se cuida, seu tonto — dissera para Oz, roçando o nariz em seu rosto como se precisasse memorizar o cheiro dele, então o mordendo na bochecha.
— Vai ficar tudo bem — Oz tinha respondido, segurando Maali pelos braços para afastá-lo de si.
O gesto desceu mal para Maali. Se fosse um pouco melhor para ler as entrelinhas, teria percebido o quanto Oz parecia agitado naquela manhã? Teria inferido a razão por trás daquilo? Encontrou uma gota de consolo ao notar que Oz usava o brinco com que o presenteara dias antes, e que ele ainda não havia estreado. Um mimo para que Oz não se esquecesse de Nivaria, de que tinha um lar além da ponte.
Amuado, buscou o olhar de Yan, que lhe sorriu afetuosamente, aproximando-se para acalmá-lo com um abraço.
— Eu cuido do tonto por nós dois — o curandeiro prometeu em voz baixa, beijando-o no rosto. Então enfiou entre seus dedos um saquinho de algodão cru recheado de ervas. — São para você não ficar enjoado durante a volta pra casa — Yan explicou, e Maali não pôde deixar de amá-lo um pouquinho mais por isso.
Agora estava sozinho diante do veículo. Era uma geringonça menos desajeitada do que aquela que seus pais costumavam usar. Em termos de veículos a motor, o Deserto tinha tecnologias bem superiores às de Nivaria.
— Você vai conseguir dormir durante toda a viagem — cantarolou alguém.
Olhando para o lado, Maali se deparou com a silhueta de Kuí a uma curta distância. Ao redor de seu pescoço, a dupla de cobras descansava com preguiça, mais parecendo um colar espalhafatoso. O jovem nivariano o recebeu com uma reverência profunda e respeitosa que fez Kuí esconder contra os dedos uma risada deliciada.
— Se me perdoa a falta de modos, Senhor Instrutor, eu estava mais preocupado com como usaria o banheiro — Maali confessou. Sua honestidade arrancou de Kuí mais uma risada.
— Imagino que Ravi já tenha dado as devidas explicações — Kuí comentou.
— Na verdade, ele só me entregou a chave do veículo e disse que a rota já estava ajustada, bastava ligá-lo. O banheiro, acabei encontrando sozinho.
Era realmente uma tremenda falta de modos ter aquele tipo de conversa com uma pessoa mais velha, e um diplomata, mas dada a expressão espirituosa de Kuí, ele não parecia ofendido. Maali não tinha conversado com ele a ponto de se considerar íntimo, mas gostava de como a presença de Kuí conseguia trazer para si uma leveza nova.
— Animado para voltar para casa, jovem mestre? — Kuí questionou. O jovem mestre, dito naquele sotaque do Deserto, deixava seu tom mais chistoso do que o normal.
— Sendo honesto, Senhor Instrutor, não sou capaz de afirmar.
O que o esperava em Nivaria que exigia um retorno tão brusco e insípido? Aquele sinal pelo menos era capaz de ler: estava às vésperas de cruzar mais um limiar.
— Às vezes as estrelas não parecem mesmo estar a nosso favor, queridinho — Kuí retrucou, os olhos no céu acima deles parecendo vasculhar algo invisível em toda aquela luminosidade laranja do céu farkasiano.
Quando voltou a encarar Maali, as fendas em suas íris pareciam ainda mais estreitas.
— Já ouviu falar sobre estrelas não ouviu, meu bem? Cria de Niva como é… Dizem que elas decidem o destino dos mundos e eu me pergunto se nós, que não temos uma estrela sequer sobre as nossas cabeças, temos direito a qualquer destino. Ou se… — Ele tocou o indicador contra os lábios cheios, o sorriso insinuando-se devagar por eles igualzinho a uma cobra armando o bote. — Ou se podemos fazer o que quiser com o nosso quinhão de destino. Mudá-lo, então mudá-lo de novo, quantas vezes quisermos. Isso certamente enlouqueceria os Imortais, não acha?
De alguma forma, Maali se sentia hipnotizado por aquelas palavras. Não era magia, ou não era como a sua magia, pelo menos — palavras forçando-o a fazer isto ou aquilo. Lembrava mais o efeito de uma pedra afundando devagar até alcançar o fundo de um lago, perturbando por um segundo o curso das águas mas mudando fatalmente o destino da nascente.
A risada infantil de Kuí quebrou aquele efeito logo depois.
— Te pareço um velho falando sandices, jovem mestre?
— De forma nenhuma, senhor — Maali se apressou em responder, assumindo uma expressão consternada quando Kuí fez um biquinho. — Fiz alguma besteira, Senhor Instrutor?
— Fez — Kuí concordou, voltando a sorrir na intenção de aliviar a postura rígida que o rapaz tinha assumido. — Continua me chamando de senhor, como se eu fosse mesmo um velho.
Ele ergueu a mão antes que Maali o torturasse com as desculpas que já começava a preparar.
— Estou brincando, meu bem. Você leva as coisas a sério demais, e hoje parece mais apoquentado do que o normal. Hmm… — Kuí desceu o olhar, parecendo só agora se dar conta do cantil que trazia preso ao cinto. Depois de soltá-lo, balançou o objeto diante dos olhos curiosos de Maali. — Que tal uma brincadeira, queridinho?
Estimulado pela curiosidade no rosto do nivariano, continuou:
— É para te distrair. Também para dar um norte a toda essa rigidez monástica que me parece órfã de regras. Leve o meu cantil com você e o mantenha juntinho de si enquanto estiver lá. Mas… — Ele ergueu os dedos enfeitados com anéis nas falanges. — Não beba o conteúdo. Acredite em mim, bebidas do Deserto podem ser muito indigestas para jovenzinhos.
A alfinetada conseguiu arrancar de Maali uma risada breve.
— É só isso? Levar um cantil comigo como se fosse uma criança de colo?
— E trazê-lo de volta em segurança, é claro! — Kuí acrescentou. — É o meu cantil de estimação.
— Não sei se entendi o sentido da brincadeira, Senhor Instrutor… — Maali pontuou, a seriedade criando rugas de preocupação em sua testa que Kuí achou adoráveis.
— É só para testá-lo, meu bem.
— Testar…? — Maali estimulou, curioso.
— O quanto você é bisbilhoteiro, é claro. E o quanto é capaz de seguir ordens.
O diplomata estava bem perto agora, o bastante para que Maali pudesse sentir o cheiro fresco de rosas que vinha dele. Mais um pouco e seu rosto ficaria em chamas.
— Não pretendo atrasá-lo mais, jovem mestre. Faça uma boa viagem e dê um jeito de nos avisar que chegou em segurança.
Concordando com um aceno, Maali se apressou em abrir a porta do veículo, mas antes que pudesse entrar a mão de Kuí o deteve, segurando-lhe o pulso delicadamente.
— Um último aviso, jovem mestre: conte comigo como um amigo, sim? Se precisar, basta me chamar pelo nome. Uma coisa tão pequena em troca de qualquer gentileza de que precisar.
Parecia um flerte, um aviso e uma cortesia — tantos sinais ambíguos que Maali, incapaz de lidar com eles, abanou a cabeça antes de se soltar do toque e se enfurnar de vez no carro. De alguma forma, Kuí lhe pareceu tão perigoso quanto o vórtex naquele momento. E igualmente fascinante.
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Ravi não havia mentido sobre a velocidade do veículo. Carros de carga, do tipo que transportava algumas fileiras de vagões e que serviam para manter as trocas comerciais entre Farkas e Nivaria, comumente atravessavam a ponte em cerca de três dias. Aquele veículo, no entanto, cobriu a distância em um dia só, o que não serviu para tornar a viagem mais tranquila. Maali ousou olhar pela janela apenas duas vezes. Em ambas, sua pressão caiu de tal maneira que ele achou que seria encontrado desmaiado por algum monge-batedor quando o veículo chegasse em Nivaria.
Sem companhia para se distrair, sua cabeça vagava por pensamentos cada vez mais amargos. A distância de sua família ao chamá-lo de volta através de um intermediário que sequer respeitavam de verdade. A distância de Oz enquanto se despediam. As esferas que deixara com Shu… Estavam mesmo em segurança como imaginava? Aquele lagarto esquisito aceitara rápido demais uma tarefa sobre a qual sabia bem pouco. E se no fim das contas ele fosse algum tipo de espião farkasiano de olho nele e em Yan durante todo aquele tempo?
Sua cabeça, sempre voltada à praticidade das coisas, agora estava povoada por teorias da conspiração. O número de soldados e discípulos farkasianos dentro do Hall da Conflagração tinha mesmo diminuído na última semana, certo? E as cozinhas ficaram extremamente agitadas por dias, mas no fim das contas não viu nenhuma comitiva chegar — nem mesmo a Ópera, como Juni imaginara. A questão era que o território de Farkas era tão grande, e ele passara tanto tempo recluso ao Hall, que se sentia incapaz de ter certeza sobre qualquer movimentação estranha.
Por instinto ergueu a mão, tocando o enfeite de vidro com que prendia os cabelos. A superfície gelada do objeto conseguia arrefecer um pouco a sua ansiedade. Contornou-lhe os detalhes até o topo enfeitado e tentou sorrir. Encontrou aquele presente dentro de sua bolsa de viagem, em um estojo requintado, acompanhado de um recado na letra de Yan. “Oz e eu achamos que combinava com você: bonito e afiado.”
Oz e ele. Os dois.
O som de um trovão ecoou ao redor de Maali, que se encolheu, apertando o braço do banco como se esperasse que a ponte fosse ficar instável. Ela continuou firme, no entanto. Firme, como sempre esteve desde que as Cidades nasceram de dentro do vórtex e todas as pontes se formaram. Uma ponte só se quebraria por decreto dos Imortais, foi o que sempre ouviu. Uma ponte só seria destruída se a nação conectada a ela cometesse uma transgressão imperdoável. Essa era a justiça dos Imortais e, pela primeira vez, Maali não teve tanta certeza de que gostava dela. As sementes sobre criar o próprio destino começavam a germinar no solo de seu coração nivariano — e este parecia muito mais fértil do que os campos de sua Cidade natal.
Esses pensamentos, aliados ao cansaço, o conduziram devagar para um sono sem sonhos do qual só despertou horas depois. Na verdade, teria dormido muito mais, mas foi acordado por um som que bem poderia ser outro trovão. Naquele estado entre o sono e a vigília, porém, mais pareceu com a canção de um tambor de guerra.
O carro tinha reduzido a velocidade e se aproximava do final da ponte. Pelo vidro da frente, ligeiramente esfumaçado, Maali discerniu os picos de algumas das montanhas mais próximas. Em quase todos conseguia ver o brilho alaranjado e difuso dos módulos de atração. Estrelas. Estrelas de outros mundos decidiam o destino de um povo; as “estrelas” de Nivaria eram capazes de atrair Fronteiriços e, se estivesse deduzindo corretamente, também poderiam atrair guerras.
Os módulos eram um método de caça muito mais seguro. Arriscar-se à beira do abismo para chamar a atenção de monstros poderia ser uma brincadeira boba para a maioria dos jovens nivarianos, mas sempre gelou o sangue de Maali. De que forma os farkasianos conseguiam ver naquela tecnologia uma forma de superar os deuses era incapaz de entender mas, fosse como fosse, este conhecimento estava protegido consigo.
Com Shu.
Avistou a pouca distância as silhuetas de alguns monges montados em alces. Pareciam inquietos com a aproximação do veículo, como se não tivessem sido avisados de sua chegada. O que pareceu detê-los foi a bandeira encarapitada no capô, com as cores de Farkas.
Maali ajustou a faixa da túnica escura, então buscou o manto com pelos para colocá-lo sobre os ombros. Fora presente de noivado dado por algum líder cujo nome Oz se lembraria melhor do que ele. Era estranho usar roupas civis em Nivaria. Ainda mais estranho foi o olhar surpreso dos monges quando saiu do veículo.
— Tyr Maali — um dos monges barrou a sua passagem, encarando-o de cima. O céu nivariano começava a escurecer, embora ainda fosse cedo, de forma que Maali foi incapaz de reconhecer com precisão com quem falava. — A Cidadela da Neve Eterna tem um mandado de prisão em seu nome. Ele seria emitido ainda hoje, mas ficamos felizes que tenha retornado por conta própria.
— Por que motivo? — Maali retrucou, tentando não parecer tão assustado e confuso quanto se sentia naquele momento.
— Por roubo de material sigiloso e suspeita de traição.
— Seus pais ficaram presos na Vila Charco — disse a líder Han, que viera recepcioná-lo assim que Maali fora levado à casa de detenção nas adjacências do Distrito.
Em certa medida, era como a Casa de Repouso: uma construção afastada do cotidiano local, relativamente silenciosa. Ainda assim, tratava-se de uma repartição pública, portanto não era tão vazia e solitária. Ao contrário dos outros prédios comunitários, aquele era feito de vidro escuro, que não permitia ver o que acontecia lá fora. Para os nivarianos, ser apartado da vida comum já era uma punição por si só.
— Uma avalanche fechou a estrada de volta, mas já enviamos alguns núcleos autônomos para fazer a limpeza. Logo devem estar de volta — ela continuou, entregando a Maali uma xícara de leite cremoso, salpicado com canela. Falava com ele num tom conciliador que começava a irritá-lo. Mais parecia estar se dirigindo a uma criancinha travessa.
A Vila Charco era uma das poucas vilas que circundavam o Distrito. A maioria dos nivarianos gostava do estilo de vida comunitário que o Distrito proporcionava. Já outros davam preferência à calmaria das vilas ou até mesmo escolhiam morar isolados, como Jiao tinha feito. Maali imaginou por muito tempo que, quando estivesse velho demais para caçar entre os monges, se isolaria na floresta para viver o resto de sua vida. Parecia um bom plano.
Antes de Oz e Yan.
— Líder, foi a pedido da Cidadela que os meus pais me chamaram de volta? — Maali questionou. Não tinha se rebelado contra a acusação de roubo; contudo, não era um traidor. Bastava ter a chance de explicar aos líderes e Mestre Inua suas intenções.
A mulher o encarou com estranheza.
— O aviso da Cidadela chegou hoje ao Distrito, depois que seus pais já tinham partido — ela respondeu, remexendo-se na poltrona alta em que tinha se sentado. As celas da detenção eram pequenas, de um conforto austero, mas não desagradável. — Já enviamos um aviso a Mestre Inua e ele não deve demorar para chegar.
E depois de beber um gole demorado de chá a nivariana acrescentou:
— Maali, as acusações são verdadeiras?
O rapaz não respondeu, alimentando seu silêncio com um gole de leite. Não falaria diante um líder sem que os demais estivessem ali para ajudar a pesar suas palavras. Ou Mestre Inua.
Han suspirou, frustrada.
— Como soube que precisava voltar, então?
— O líder Farkas — ele respondeu, seco. — Ele me disse que eu estava sendo chamado.
— Talvez a Cidadela tenha falado com ele antes de falar conosco… — a líder ponderou, sendo cortada por uma risada seca de Maali.
— Isso é besteira e um absurdo.
— Talvez seja — ela respondeu, séria. — Mas que outro motivo ele teria para te mandar de volta, menino? O mundo nivariano está mudando muito desde o anúncio do seu casamento.
— Não sou um menino — Maali retrucou, quase rosnando.
A resposta da líder Han foi reprimida pelo som do sistema de alerta da Cidadela. A sequência de dois apitos longos e um curto se repetiu três vezes, antecipando a mensagem trazida pelo sistema de som dos pássaros-engrenagem.
Anomalia identificada no vórtex. Anomalia identificada no vórtex. A Cidadela prevê o prolongamento do período de escuridão por vários dias. Pedimos aos cidadãos nivarianos que permaneçam em casa o maior tempo possível. Saiam apenas em grupos.
O aviso se repetiu três vezes, reverberando pelos ossos de Maali. A líder Han, já de pé, assumira uma postura pétrea.
— Já fazia um tempo… — ela sussurrou de si para si, o olhar migrando em seguida para Maali. — Aqui é seguro. Descanse. Não importa o que tenha acontecido, vamos resolver da melhor forma. O importante é que você está em casa.
Em casa.
Mas aquela não era a sua casa. Era uma cela de prisão, um espaço sem sequer um forno central para fazê-lo se sentir mais acolhido. A iluminação foi diminuída como parte do protocolo para não sobrecarregar o sistema elétrico, caso precisassem dos geradores funcionando por mais horas que o normal, mergulhando a cela numa luz mortiça que não ajudou a melhorar o humor de Maali. Incapaz de descansar a mente agitada, buscava formas de se distrair. Às vezes, tirava o enfeite de cabelo para girá-lo entre os dedos, vendo como a luz baixa se refletia em sua superfície, mas logo voltava a recolocá-lo, temendo derrubá-lo sem querer. Noutras, batucava os dedos contra o cantil que Kuí lhe dera, tentando adivinhar seu conteúdo pela forma como o som reverberava através dele.
Uma brincadeira para descobrir o quanto era bisbilhoteiro e capaz de seguir ordens… O riso frágil que escapou de seus lábios era quase triste. O que tinha sido aquilo? O diplomata tinha antecipado por códigos o que Maali encontraria de volta à Nivaria? Ou era apenas uma coincidência?
Interpretou errado as conversas dos monges tantos meses antes? Aquela visão que teve no Hall, deveria tê-la levado tão a sério? O certo e o errado, as verdades e as mentiras começavam a se confundir em sua cabeça junto com as horas que se arrastavam, morosas.
Ele pensava nos pais… As unidades de limpeza não precisavam da luz do dia para cuidar da neve nas estradas, mas seus pais não voltariam em uma situação assim, quando o risco da aproximação de Fronteiriços tendia a aumentar.
De súbito, sentiu muita saudade deles. Uma saudade avassaladora, apertando-lhe o coração da mesma forma que uma Sereia apertava as garras afiadas ao redor de um peixe recém-capturado, antes de voltar para o ninho. O choro quis abrir caminho e Maali mordeu os lábios para segurá-lo.
Aquilo era solifania, era o medo da solidão que só o escuro prolongado de Nivaria parecia ser capaz de evocar. No escuro, as horas eram mais longas. No escuro, todos os laços pareciam frágeis demais.
Deve ter dormido, ou talvez apenas piscado os olhos por um longo tempo, porque a próxima coisa que viu foi Mestre Inua entrando na cela com uma expressão tempestuosa.
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— Eu esperava tamanha infantilidade de muitas pessoas, mas não de você! — Inua atirou as palavras com a mesma força com que arremessava blocos de neve endurecida em sua juventude. — Quieto! — ordenou, vendo Maali abrir a boca para retrucar. — O que você tinha na cabeça, garoto? No que estava pensando quando roubou o seu próprio povo?
— Decida se quer uma resposta ou se quer que eu fique em silêncio — Maali redarguiu com bem pouca educação, e as narinas de Inua se abriram numa demonstração de raiva.
— Ter passado tanto tempo ao lado daquele farkasiano nos dois últimos anos parece ter te emburrecido — o monge rebateu.
— Cuidado com o que insinua sobre o meu noivo, Mestre — Maali respondeu num tom mais baixo, a cauda de raposa se agitando. — Não ponha sobre Oz a culpa sobre as minhas ações. Eu roubei a Cidadela. Sozinho. E se isso foi tão fácil para mim, se só agora perceberam o resultado das minhas ações, se o conhecimento que capturei está em segurança até agora, então nos restam duas opções: ou sou mais esperto do que pensam, ou vocês são mais estúpidos do que acreditam.
— Cuidado você com o que diz, Maali — Mestre Inua explodiu, espalmando a mão pesadamente sobre uma mesinha próxima. — Tem ideia de como cada coisa que faz e fala soa como traição? Por acaso tem ideia do esforço que tenho feito para manter as garras farkasianas longe do nosso conhecimento? Aquele líder Farkas nos rodeia feito um lobo faminto, testa nossa paciência, estimula brigas internas, e você acha de bom-tom, acha correto, roubar o que tentamos proteger como se um garoto sozinho fosse capaz de enfrentar uma matilha em seu próprio território.
— Não sou um garoto. — Maali conteve a vontade de gritar. Os mais velhos pareciam ter chegado à mesma conclusão: tratá-lo como a uma criancinha, e isso o irritava.
— A sua posição em Farkas era política! — o homem continuou, ignorando-o. — E em vez de respeitá-la, você brinca de desafiar Ravi ao incluir mais um noivo em seu contrato bem debaixo dos bigodes dele. Faz arruaça pela cidade ao lado de Oz, desafia os costumes farkasianos se deitando com seus noivos antes do casamento. Ou achou que esses boatos não se espalhariam, que não chegariam até nós?
— Bobagens… — Maali começou a falar.
— Apenas se ignorar a única razão por que vai se casar! — Inua objetou, incrédulo. — Ou acha que Oz te ama? Acha mesmo que ele não tem ordens tão diplomáticas quanto as que seus pais te deram? Fui contra esse casamento desde o começo porque te conheço melhor do que ninguém, você e esse vulcão em seu peito, garoto.
— Me chame de garoto outra vez… — Maali começou em tom de ameaça, abaixando as orelhas.
— Então pare de agir como um! — Inua devolveu, erguendo a voz um pouco mais. E após esfregar as mãos contra o rosto, questionou: — Onde estão as esferas?
— Não estão comigo, mas estão em segurança — foi toda a resposta que Maali deu, assistindo em silêncio o rosto do tio ficar arroxeado de fúria.
O monge andava de um lado para o outro. Também estava agitado, a cauda avermelhada esbofeteando o ar.
— O que acha que vai te acontecer agora, Maali? — Inua disse. — Por que voltou? Em Farkas, poderia pedir abrigo político assim que recebesse o nosso mandado, e a situação seria intermediada por aqueles benditos diplomatas, mas você voltou por vontade própria para Nivaria e está sob as nossas leis a partir de então. Comunicar que não vai voltar para junto de seus noivos implica em comunicar a razão. E o que faremos então? Mentimos para os farkasianos e torcemos que acreditem ou contamos a verdade e deixamos que eles vasculhem cada centímetro daquela Cidade até que encontrem o que você levou?
— Eu voltei porque vocês pediram que eu voltasse!
Maali gritou bem poucas vezes na vida, a primeira delas quando avistou um Fronteiriço pela primeira vez, ainda uma criança. Ninguém nunca havia feito a associação — ou pelo menos ele tinha acreditado que não —, mas a criatura fora abatida facilmente pouco depois. Os caçadores da época comentaram sobre como o Fronteiriço parecera, de súbito, muito atordoado. Naquele momento, Maali e sua magia foram apresentados um ao outro. Desde então, ele mantivera a voz sempre moderada, as palavras muito bem pensadas.
Para Inua, o grito foi como um soco. Seu corpo bambeou e o monge se apoiou na parede para não desabar. Preocupado, Maali correu em seu socorro, apoiando o corpo do tio contra o seu.
— Perdão, Mestre… — sussurrou, vendo o homem abanar a cabeça.
— Nós não te chamamos de volta — Inua disse. A informação, mais do que o grito, o abalara demais. — A minha intenção era ir pessoalmente para Farkas falar com você, protegê-lo dessa situação, pensar em uma saída que ficasse apenas entre nós nivarianos…
— Mas o líder Farkas disse… — Maali começou.
Os alarmes nivarianos soaram uma segunda vez. O coração de Maali primeiro se encheu de alívio, imaginando que a anomalia no vórtex tinha passado e a luz do dia voltava a raiar. A tranquilidade durou uns poucos segundos.
Aquele padrão de alarme, um apito longo e um apito curto, Maali conhecia apenas na teoria. Porque apenas na teoria Nivaria entraria em guerra contra outra Cidade. Não tinham um exército, ou recursos bélicos, para se indispor com os vizinhos. Foi por isso que toda aquela história começara afinal: evitar uma possível guerra casando-se com o futuro líder de Farkas.
Nivaria está sob ataque marcial, os pássaros-engrenagem avisaram uma vez, depois outra. Então começaram a ser abatidos um por um sob o ronco de canhões.

Continua…
No próximo capítulo… Maali está em Nivaria durante um ataque, mas Oz e Yan foram enviados a Banjora. Será que a notícia chegará até eles?
O Capítulo 43 — Quando nos reencontrarmos chega em 9 de maio de 2025!

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