💫 Pontes Imortais ― Capítulo 41

Pães doces e segredos

Capítulo quentinho como uma fornada de pães doces pra vocês!

No último capítulo… Maali pode estar começando a ficar paranoico, ou então Farkas está cheia de tramoias e segredos. O que vocês acham? E quanto ao Shu? Que história é essa de guardar coisas no próprio corpinho? Seria magia… ou loucura?

Música-tema do capítulo: Secrets, de One Republic (sigam a playlist oficial Pontes Imortais #2 no Spotify!)

Capítulo 41 — Pães doces e segredos

Farkas, 96 horas antes da queda da Nivaria

Havia um bom punhado de coisas das quais Maali dificilmente se esquecia, alertas munidos de formão e martelo que tinham esculpido imagens na sua memória. Dentre elas, a mais recente ainda vinha do último evento farkasiano, a reunião que havia oficializado ele, Oz e Yan como noivos. 

Ravi e Juno podem ter contido suas reações a ponto de manter o anúncio sob o controle deles, mas um caçador era treinado para ler olhares. Nos momentos que se seguiram à sua afronta, os dos líderes Farkas não eram diferentes dos de um caçador localizando um alvo a ser neutralizado. 

Além disso, Maali estava bem ciente do momento em que Ravi se dirigiu ao Mestre Inua. A postura firme do monge aliada ao nariz franzido pelo desgosto de Ravi eram uma mensagem quase tão translúcida quanto os lagos nivarianos na época do degelo.

Maali se levantou da cama onde passara as últimas horas sentado em silêncio e se dirigiu até a janela. A cortina instalada no quarto tinha sido um pedido seu para o Oz. Quando chegou àquele quarto pela primeira vez, a ausência de qualquer proteção nas janelas o havia deixado desconfortável, como se o líder Farkas quisesse ter sempre um caminho aberto para espionar o que se passava dentro dos seus aposentos. Tinha solicitado uma para Oz logo de cara, com a justificativa de que a proximidade com o vórtex deixara seus olhos nivarianos acostumados com outro tipo de luminosidade. 

Olhando pela janela, Maali não viu nada digno de nota naquela manhã. Um grupo de jovens discípulos farkasianos fazendo rota por dentro dos muros da propriedade da família, a sombra de uma parruda mariposa-do-sereno sobrevoando a região e o agradável som de pássaros, um dos seus detalhes favoritos sobre estar em um lugar de clima mais quente. 

Em um movimento suave, fechou as cortinas, tomando o cuidado de tapar as frestas nos cantos da janela, e voltou para a cama.

Tirados da Célula Matriz, os arquivos roubados da inteligência nivariana se pareciam com um punhado de bolinhas de vidro, cada uma do tamanho de uma bala, cuja superfície lisa, porém irregular, assemelhava-se à de um pequeno cristal lapidado. As informações que continham, apesar de delicadas, eram indecifráveis em mãos leigas. Ainda assim, Maali não tinha tido confiança para deixá-las desassistidas por um momento sequer. Costumava levá-las nas vestes, em um bolso protegido costurado no forro de tecido macio.

Meteu a mão por dentro da roupa, pegando-as e contando-as na palma, checando a quantidade e a superfície de cada uma, como fazia religiosamente sempre que ficava sozinho por algum tempo no quarto. Estavam todas ali e em perfeitas condições, mas até quando?  

Voltou a guardá-las no instante em que ouviu as batidas pesadas na porta. 

— Ei, raposo! — A voz empostada de Oz atravessou a parede com facilidade. 

Se não estivesse já bem desperto, o chamado faria o favor de tirá-lo de seu sono, como já tinha feito nas raras ocasiões em que o farkasiano se dignava a acordar antes dele. 

— O que é? — retrucou de dentro, no mesmo tom, o sorriso escondido no canto da boca revelando algum divertimento. — Já com saudade da minha cara? 

Se dirigiu até a porta, abrindo-a com um clique suave para encontrar a silhueta robusta de Oz parado debaixo do batente com um sorriso. O olhar dele foi de seus olhos da cor de geada até uma das orelhas pontudas de raposa, e então para a outra. Maali as mexeu num gesto divertido. Ainda o entretinha como Oz era desacostumado a ver orelhas nivarianas por ali. 

— É considerada uma grande falta de educação encarar tanto as orelhas de um monge, sabia?

— Eu nem estava olhando para elas! — ele rebateu, na mesma hora descendo de volta os olhos para os de Maali, como se aquilo apagasse qualquer evidência do contrário. 

— E nem eu sou um monge. Não mais — Maali acrescentou, à beira de um sorriso. — De qualquer forma, essa norma deixou de existir há pelo menos um milênio, junto com o advento da fornalha doméstica.

— Então tudo bem eu olhar pra elas? — Oz confirmou.

— Tudo bem olhar pra elas — Maali garantiu, o sorriso finalmente lhe escapando pelo canto da boca quando bateu as orelhas num movimento rápido como o de uma raposinha das neves. — Você, não todos os outros farkasianos. Quando eles encaram, ainda acho bem rude e vou encarar de volta.

— Não me oponho — Oz concordou, abrindo espaço para que Maali saísse em sua companhia.

E então parou de andar, subitamente, pressionando os dedos ao redor do braço de Maali, como se demandasse sua atenção para algum perigo iminente. Maali levou por instinto a mão até onde carregava a aljava e o arco, mas não havia pegado seu armamento ao sair do quarto. 

Carregar armas de caça dentro dos muros do Hall da Conflagração seria um sinal claro demais de que se via — de certa forma — espreitado por inimigos. Era uma impressão semelhante ao que experimentara quando tinha visto, dias atrás, aquele jovem soldado carregando uma arma de fogo. 

— Sente — alertou Oz em um sussurro. 

Maali franziu a testa, rodando o olhar pelos arredores. O que deveria sentir? Não havia tremores, sirenes de alerta, corre-corre entre os discípulos internos. Não havia nada. 

 O coração treinado de Maali acelerou em descrença. O que era? O que os instintos indisciplinados de Oz tinham captado que passara despercebido por todas as outras pessoas e — especialmente — pelos seus próprios instintos treinados de caçador?

O peso das pequenas esferas na roupa era discreto, mas Maali se atentou para ele. Se houvesse um ataque, morreria com os segredos. Desde que estivessem fora do território nivariano, estariam quase que garantidamente seguros. 

Oz ergueu o nariz na direção do vento. Ainda não havia vestido aquele pesado adereço de crânio, que pendia de seu cinto. Quando inclinou a cabeça, o cabelo do farkasiano caiu para trás em cachos que se enroscavam na altura dos ombros, presos em um meio-rabo de cavalo tão displicente quanto sua atitude. 

— O que é? — exigiu Maali alarmado, aguardando direções do que no momento julgava como um futuro líder suicida. 

— Pães doces. Recém-assados — ele respondeu, abrindo um sorriso. — São desses que o Yan gosta, não são? Você não sente o cheiro?

Pães. Pães doces.

Sim, sentia o cheiro de leite adocicado, mas nunca pensou que aquele tom de alerta seria usado para algo tão trivial, tão… bobo.

Encarou o sorriso no rosto de Oz pelo tempo de uma respiração antes de atingi-lo no ombro com um soco e se afastar a passos pesados em direção ao salão de refeições.

— Ei! — Ouviu Oz protestar às suas costas. — Se você não gosta de pão doce é só não comer!

Entrar no refeitório era sempre uma experiência. Em Nivaria, refeições eram comumente feitas dentro dos núcleos familiares. Maali desconfiava que em Farkas fosse igual, ao menos fora daqueles muros. O Hall o lembrava — de uma forma bem distorcida e arrogante — da Cidadela da Neve Eterna. Era por lá que se realizavam grandes refeições conjuntas. 

O café da manhã dos discípulos e convidados farkasianos era igualmente comunitário — e confortável. Como noivo de Oz e, portanto, convidado de honra dentro daqueles muros, não era esperado que se juntasse aos discípulos. Mas fizera questão, e Yan o havia apoiado, o que significava que Oz também se juntaria ao trio. 

Nos primeiros dias, sempre encontrava já na porta um punhado de olhares apreensivos. Suas orelhas eram o primeiro alvo deles, de modo que Maali havia se acostumado a adentrar o salão com elas voltadas para trás e abaixadas, alheio a como aquela postura o fazia parecer mais intimidador do que já era.

Aquele dia não parecia diferente, embora as atenções se dividissem com alguma atividade na mesa central, sempre reservada a eles. O burburinho se dava ao redor dela, Maali notou. Havia por ali um aglomerado de discípulos e funcionários internos do Hall, aqueles os quais os farkasianos chamavam de leva-e-traz — um nome horroroso, na sua concepção, mesmo que não parecesse incomodar nem mesmo os próprios funcionários. 

— O que acontece ali? — Maali questionou.

As primeiras pessoas que notaram a chegada dos dois foram progressivamente cutucando as outras, como um dominó, e o burburinho e o riso transformaram-se aos poucos no olhar sério ao qual já tinha se acostumado. 

— Bom dia, jovem mestre Farkas, jovem mestre Tyr — entoou a voz de um jovenzinho que ria a plenos pulmões até o instante anterior. Tentava soar oficial, embora o rosto vermelho ainda fosse um problema a ser contido. 

— Podemos saber qual é a piada? — Oz exigiu, em um tom que transparecia mais curiosidade do que liderança.

Só quando o caminho até a mesa se abriu, Maali notou a figura mirrada de Yan em seu lugar habitual. 

Seu sorriso se abriu, porque ele sorria. Sorria e abocanhava aos poucos um dos pães doces, aqueles cujo cheiro Oz tinha feito questão de apontar. Eram mesmo os favoritos dele, uma iguaria nivariana. Os cozinheiros tinham tentado replicar — ainda que de forma rudimentar — até mesmo o formato delicado de folhas. Maali não achava que pães doces de nozes combinavam com as demais especialidades da cozinha farkasiana, o que o levava à única explicação lógica: tinham sido um pedido de Oz, mais um pequeno agrado para Yan. Oz o cobria deles: mimos, presentes, pequenos detalhes que fariam Yan se sentir mais em casa num território novo. 

Yan notou os dois e acenou com os dedos melados de calda doce. Então Maali percebeu que, enquanto Oz fizesse Yan feliz com detalhes, também o faria feliz por tabela. 

— Você mima ele demais — sussurrou para Oz, contendo o sorriso.

— Claro que não! — Oz protestou, o sorriso se abrindo mais quando finalmente alcançaram a mesa. — Yan, gostou? Eu mesmo pedi a receita para o seu irmão quando ele estava aqui e entreguei na cozinha! 

— Você é a pessoa mais gentil das Cidades Flutuantes — Yan respondeu, lambendo o doce de um dos dedos. — Não concorda, Maali?

Maali não sabe o que foi, se o olhar abobado no rosto de Oz deixando-o com vergonha alheia ou a doçura na voz de Yan ao falar seu nome, mas seu rosto corou. Ele pigarreou, sem graça, mapeando o salão à procura de algo.

— Do que riam ainda há pouco? 

— O lagarto falante é mágico! — Um dos discípulos tomou a frente para responder, se apressando em completar quando notou o olhar sério e intrigado de Maali. — Ele faz os pães desaparecerem, jovem mestre!

— É mesmo?

Maali estreitou os olhos, um sorriso contido escapando-lhe pelo canto da boca. Seu coração, contudo, se agitava intrigado. Se uma coisa assim fosse verdade, seria a segunda vez que via aquele lagarto metido fazer coisas desaparecerem, e a primeira em que tinha testemunhas em vez de achar que estava enlouquecendo sem sono. 

— Achei que já tinham notado que o lagarto falante era mágico quando ele… falou — comentou Yan divertido, oferecendo a mão para que Shu escalasse de volta para seu ombro.   

— Espera — pediu Maali. 

Tomou na mão um pão doce ainda morno de uma das cestas que decoravam a mesa e o pousou perto dos dedos de Yan, de forma que Shu pudesse alcançá-lo com um chicotear do próprio rabo. 

— Eu gostaria de uma demonstração. 

— É, lagarto cuzão — Oz ecoou, tomando seu lugar no centro da mesa, os olhos fixos em Shu quando deitou o queixo nos braços. — Uma demonstração. 

— Ora, pra presenças tão ilustres, como poderia me negar? 

Shu manquitolou até apoiar as patinhas sobre as bordas do pão. A patinha direita não tinha qualquer firmeza e apertava a massa desajeitadamente, espelhando como podia o movimento da sua pata boa. 

— Pão! — ele ergueu a voz, falando subitamente enquanto levantava ambas as patas no ar tentando causar impacto. Oz arregalou os olhos, esperando algo acontecer enquanto o lagarto agitava as patas no ar como uma bruxa sobre um caldeirão. — Pão, pãozinho, pãozão… Desapareça agora e não te dou um… mordidão. Rá!

Às suas costas, Yan revirava os olhos para a sequência ridícula de palavras mágicas. Mas foi ali, bem diante dos olhos ansiosos de Oz, que o pão subitamente desapareceu, como se guiado por um novo toque das patas do lagarto. 

— Que porra…! — Oz arregalou os olhos, jogando o corpo para trás. — Raposo! Raposo, você viu essa porra?

Maali não respondeu. Estava atento aos detalhes, mapeando cada milímetro do corpinho roliço daquele bicho com seus olhos de caçador. 

Foi como notou um detalhe. 

Nas costas de Shu, uma das pintas da sua constelação de manchinhas marrons ficou diferente. Os contornos se iluminaram por um piscar de olhos, num dourado discreto como um fio de ouro. Então a faísca sumiu, dando lugar a uma mancha levemente maior. 

— Estou impressionado — Maali reagiu, genuinamente. E parou por aí. 

Dentre os farkasianos, a surpresa era tão espontânea e curiosa quanto a que via no rosto de Oz, então foi naquelas esferas mágicas cor de âmbar dos olhos de Yan que Maali encontrou cumplicidade. 

— Shu é mesmo mágico — Yan comentou com um sorriso que logo se desfez. 

— Abram caminho para o Senhor dos Lobos! — anunciou alto um dos discípulos perto da porta. 

Oz se apressou em arrumar a postura, como se temesse ser a faísca para algum desentendimento. Espiou por cima do ombro bem a tempo de ver a silhueta corpulenta de Ravi atravessar a porta, bloqueando por um instante a passagem de luz. 

Manteve os olhos nele até se certificar de que só quem o acompanhava era uma pequena equipe de leva-e-traz e discípulos internos. Ouviu o patejar pesado de um lobo e logo tinha Nix ao seu lado. Esperava ver os demais lobos chegarem com o pai, mas assim que Ravi terminou de atravessar a porta, a passagem ficou vazia. 

Oz franziu a testa, curioso, levando à mão até a cabeça da loba antes de oferecer a ela um gordo pedaço de pão. Chegava a ser uma coincidência engraçada aquela: que Nix voltasse para o seu lado bem quando se encontraria com Ravi. Era quase como se a loba quisesse evitar que se encontrasse com o pai longe de seus olhos protetores.

— Algo com você. Ou comigo — sussurrou para Maali ao seu lado, então recuperou o sorriso displicente que quase sempre tomava seu rosto quando queria parecer casual. — Bom dia, pai. Resolveu ter nossa companhia para o desjejum?

A ideia era improvável. Sem Juno, absurda. Não se lembrava da última vez em que tomara o desjejum na companhia dele. Em nenhuma das suas memórias, Ravi havia descido até ali. Ele sempre ordenava que levassem suas refeições escadaria acima, exceto, é claro, na ocasião dos fartos encontros com lideranças, para os quais ordenava um banquete privativo.

— Podemos ter uma palavra? — disse Ravi, depois de oferecer uma sombra de cumprimento a todos os presentes.

O tom era impessoal e brando demais para que fosse com ele, então Oz voltou a espiá-lo para confirmar com quem falava. Os olhos que esperava encontrar voltados para Maali estavam em Yan.

— Com ele? Por quê? — começou, ameaçando se levantar da mesa, mas parou ao receber um sinal breve de Yan, seguido de um aperto gentil no pulso. 

— Claro, Senhor. 

Ravi precisou recuar de volta até o lado de fora. Sua presença parecia invocar algum tipo de fronteiriço do silêncio, que se arrastava por todo o grande cômodo como uma corrente de névoa pesada, fazendo com que as rodas de conversa, antes agitadas, se desfizessem. Daquele modo, cada mísera palavra que proferiu seria ouvida por todos. 

Maali tentou impedir quando Oz se levantou para seguir Ravi e Yan, mas, como ele desviara o braço de seu aperto, acabou se vendo forçado a segui-lo para controle de eventuais problemas.

— Do que se trata? — Oz questionou ao abordá-los. 

A carranca que Ravi lhe direcionou parecia preceder alguma grosseria que o homem conteve no fim das contas, subitamente convencido de que não valeria a pena estourar com o filho por um recado como aquele.

— A ira de Silki deixou novos feridos em Banjora. Tem sido um problema cada vez maior atender a todos, especialmente pelo tempo absurdo que isso dura — Ravi bufou, então coçou o queixo por baixo da barba. O assunto parecia pinicar sua pele feito o ataque de um pequeno formigueiro. — Os banjorianos foram obrigados a requisitar ajuda humanitária. Por enquanto, apenas de Farkas… E seria interessante que se resolvesse dessa forma.

A última frase tinha tons de ameaça. Ravi não era apenas casado com uma filha de Banjora, mas era o líder da mais proeminente das Cidades e casado com uma das herdeiras de uma poderosa linhagem banjoriana. Se Banjora fosse obrigada a pedir ajuda à sua outra vizinha, Aruvi, Farkas teria falhado em lhe prestar socorro. Ravi preferia claramente arriscar o bem-estar de Banjora a enfraquecer o nome de Farkas. 

— Está dizendo que trarão feridos banjorianos para os cuidados de Yan? — Oz questionou, parado entre Maali e o curandeiro.

— Estou dizendo que enviaremos ele e uma equipe de curandeiros da cidade para Banjora. Não creio que seria uma viagem longa, se é saudade que te aporrinha, garoto. 

— Eu vou junto — Oz rebateu, atropelando as últimas palavras do pai — para liderar a equipe de segurança que certamente vai acompanhar os curandeiros. É melhor, não é, pai, que sejamos capazes de manter nossos curandeiros seguros da ira de Silki? Ou a minha ida seria um problema? 

Na carranca de Ravi, uma expressão indistinguível fazia seu nariz se franzir, carregando com ele um leve sorriso de escárnio. Ele mapeou os rostos sérios dos dois nivarianos, como se buscasse neles qualquer sinal da rebeldia que seu filho manifestava. Ele não era letrado em microexpressões nivarianas, entretanto, ou teria tido ao menos a chance de ler a sombra de alerta nos dois pares de olhos que o observavam em retorno. Pareciam controlados o bastante para um farkasiano habituado a embates acalorados. 

— Se quer ir, vá, garoto — ele respondeu, descendo a mão pesada sobre o ombro do filho. — É apenas um filhote. Farkas pode sobreviver a algum tempo da sua ausência. Avisarei o encarregado que você deseja acompanhar o grupo.

— Oz — Yan chamou em voz baixa e alcançou discretamente a mão dele em um afago. Não deixaria que Ravi o tirasse do sério e já sentia a tensão na postura dele, mesmo que só o visse pelo canto dos olhos. 

— Você deveria ficar — Maali retrucou, mais firme. — É o herdeiro desta Cidade, não um batedor, muito menos um sentinela. Eu posso acompanhar Yan. Não creio que seria um problema. 

Ravi voltou a vasculhar o rosto de Maali como se buscasse alguma faísca de subversão. Voz firme, postura altiva e olhos afiados. A mera existência daquele jovem poderia ser lida como uma afronta por lideranças frágeis. 

— Infelizmente, meu jovem, isso não será possível. Sua presença foi requisitada em Nivaria. 

— Por qual motivo? — ele questionou. — E por quem?

— Essa é toda a informação que eu tenho. É melhor discutir os detalhes com suas próprias lideranças. Estou certo de que não faltam líderes na sua Cidade para mantê-lo informado quando chegar. 

— Você vai ver o que eles precisam, eu vou com o Yan e nos reencontramos em alguns dias — Oz garantiu. Falava baixo desta vez, em um recado que era apenas para os dois ao seu lado.

— Bom, então estamos definidos — concluiu Ravi, impaciente. — É um problema para você, curandeiro? 

— De forma alguma — respondeu Yan. E chacoalhou o cabelo para aliviar o puxão incômodo das patinhas de Shu. — Quando parte a comitiva?

━━━━━━ • ❆ • ━━━━━━

Na manhã seguinte não foi uma resposta fácil de absorver. Tinham só mais um dia e estariam separados até sabe-se lá quando. Ravi poderia chamar a viagem de curta e Oz poderia garantir e repetir o quanto quisesse que estariam juntos novamente em poucos dias. Ainda assim, não havia garantia alguma sobre o tempo, principalmente quando a ida de Yan a Banjora era tão intrinsecamente ligada à ira de um Imortal instável como Silki e a natureza do retorno de Maali à Nivaria ainda era totalmente desconhecida. 

Achava que se houvesse a necessidade de voltar, seus pais o informariam através de uma carta, como a que recebera de Mestre Inua. Tirava seu sono que o chamado tivesse vindo por intermédio de Ravi. Era como mais uma peça de um quebra-cabeça que não se encaixava.

— Vou sentir sua falta, você sabe, como senti em todas as suas outras partidas — Yan sussurrou, ocupando o lugar ao lado de Maali, próximo ao batente da grande janela.

Tinham se decidido por dormir os três no mesmo quarto novamente naquela noite: no de Oz, o maior de todos, um espaço opulento como era da natureza farkasiana e desorganizado, como era a dele. 

Com a cabeça deitada no ombro de Maali, os lábios de Yan se ergueram em um sorriso discreto assim que botou os olhos sobre o amontoado de papéis que repousavam sobre a estrutura de madeira, protegidos contra o vento por uma pedra. Eram trechos de anotações, soltos, fora de ordem, mas ainda que a caligrafia de Oz refletisse boa parte da sua personalidade, eram compreensíveis. 

— Ele anda estudando — Yan sussurrou. Sobre o aprendizado que teve em terras nivarianas, sobre a cultura e estrutura política deles. Oz nunca se gabou por estar aprendendo aquelas coisas, mas ainda assim, estava tudo ali. 

— Eu vi. Resisti ao impulso de organizar essas anotações com alguma lógica.

— Talvez esteja na lógica dele. Nunca arrume as coisas de outra pessoa — ele ralhou, segurando o riso. — Eu ficaria louco se alguém mexesse na organização da minha bolsa de viagem.

— Sua bolsa é boa o bastante. Isso aqui é só caos puro — Maali retrucou. Ele próprio tinha na boca uma sombra de riso.

— Só porque você não vê uma ordem, não significa que ela não exista. — Yan pontuou o ombro de Maali com um beijo suave. — Você e eu fomos treinados para seguir a ordem criada por outros, então é fácil reconhecê-la. Oz não foi criado dessa forma. Ele é imprevisível, o que pode ser um problema ou…

— Um trunfo. Eu sei — Maali suspirou. — Droga, eu vou sentir falta disso. Desses seus puxões de orelha e do caos dele. 

— Parece que você vai ter que voltar a puxar suas próprias orelhas por um tempinho. E criar seu próprio caos. 

Maali sorriu mais. Olhou pela janela, assistindo o vento correr por entre a copa das árvores logo do outro lado dos muros que cercavam o Hall. Era a noite mais fresca que tinham visto em Farkas até então. Nem seria um trabalho vestir algo por cima da túnica de dormir se precisasse ir até a cozinha sem escandalizar farkasianos mais velhos.

— Volta pra cama. Tá frio demais pra você ficar pegando vento assim na janela. 

O dorso nu de Yan parecia um detalhe que Maali tinha escolhido ignorar até então, para manter a conversa. Ao dizer isso, entretanto, se inclinou, distribuindo pequenos beijos por seu ombro descoberto. 

— Frio? Em Farkas? — Yan brincou, tocando os cabelos negros de Maali em um afago que atraiu dele um riso breve.

— Droga. Eu já falo como um farkasiano. 

— Fico feliz, então, que você vai voltar um pouco para Nivaria. Eu só consigo lidar com um farkasiano por vez, não dois. Não fique acordado até de manhã. Espero te ver na cama quando abrir meus olhos de novo — Yan acrescentou antes de se despedir com um beijo, voltando para a larga cama onde Oz dormia e tomando o lugar no meio dela, entre seus braços. 

— Eu vou logo — Maali garantiu, seguindo-o com o olhar. 

Se manteve na janela por mais algum tempo, assistindo a performance do vento do lado de fora. Foi só quando se convenceu de que Yan tinha adormecido que calçou os sapatos, vestiu um manto por cima da túnica e deslizou para fora do quarto. 

Havia algo mais sério do que saudade tirando seu sono. 

Tão tarde da noite, as áreas internas do Hall da Conflagração não eram percorridas por tantos discípulos. Alguns sentinelas, dedicados a soar o alarme caso algum fronteiriço fosse avistado ou caso Farkas precisasse erguer suas defesas contra ameaças. Dadas as boas relações que a Cidade mantinha com as demais, permeadas por comércio e negociações, ataques sorrateiros eram inesperados o suficiente para permitir noites tranquilas. 

Maali se utilizou disso para descer o trecho de escadarias sem ser visto, sorrateiramente atravessando o pátio em direção à ala dedicada aos aposentos de visitantes. Seu quarto ficava naquela direção, mas não era seu destino.

Assim que abriu a porta, mapeou o ambiente com os olhos treinados. Era o quarto de Yan, iluminado apenas pelo abajur de cabeceira ao lado da cama que o permitia enxergar um pouco na penumbra. Esperava encontrar a silhueta do lagarto ocupando o travesseiro, como Yan havia dito que ele gostava de dormir, mas não havia nada ali, só o travesseiro moderadamente afundado, denunciando uso. 

— E aí? — a vozinha de Shu entoou ao seu lado, pegando Maali de surpresa. 

Acomodado em uma almofadinha sobre uma mesa redonda, Shu tinha nas patas um pedaço de pão, do mesmo tipo dos que foram servidos naquela manhã, na mesa do desjejum. Mordeu um pedaço, encarando Maali com curiosidade. 

— Não é fácil ser lagarto, viu? Fico com fome o dia todo — comentou o bichinho, enfiando na boca mais um farelo grande de pão. — Por que está aqui?

Maali franziu a testa. Não entendia o que ele queria dizer com isso, mas conhecendo Shu o mais possível era que fosse uma piada. Não tinha humor para elas naquela noite.

— Procurando por você. — Se aproximou, se abaixando de frente para o lagarto que o olhava com os olhinhos bem abertos. — Quão capaz você seria de esconder um objeto e guardar um segredo?

— Muito capaz — respondeu Shu, interessado. — O que é?

Com uma sombra de relutância, Maali enfiou a mão nas vestes, tirando delas novamente as bolinhas de vidro, exibindo-as na palma para que Shu analisasse. 

— Ninguém sabe que estão comigo. E nunca vão desconfiar que deixei com você. Não posso arriscar levar isso de volta para Nivaria — sussurrou. Porque seria lido como um traidor se fosse pego com algo assim. — Se tudo der certo, são só por alguns dias.

Shu assentiu. Maali esperou que ele dissesse algo, perguntasse alguma coisa, mas só assistiu enquanto ele em silêncio fez sumir cada uma das esferas, algumas das manchas nas costas se iluminando antes de ficarem levemente maiores. 

Os olhos cor de geada acompanhavam cada movimento do lagarto com expectativa e em silêncio, como se ele esperasse ouvir uma frase específica para ficar mais tranquilo. Shu suspirou. 

— Yan não vai saber. 

— Eu fico te devendo por isso — Maali prometeu. — O que você quiser. 

— Discutiremos o preço depois, dependendo do tempo. — Shu brincou, voltando a atenção para o pão doce como se fosse a coisa mais interessante naquele quarto. — É bom você torcer pra viagem ser curta, ou seu segredo vai custar caro.

— Espero estar de volta logo, por vários motivos — Maali desabafou enquanto voltava a se levantar para voltar ao quarto antes que sua ausência fosse sentida. 

Esperava conseguir dormir um pouco, pelo menos, antes da partida.

Continua…

No próximo capítulo… Maali se vê obrigado a voltar sozinho para Nivaria três dias antes de sua queda. Mas o desastre era previsível? 

O Capítulo 42  — Solifania chega em 2 de maio de 2025

⚠️ ATENÇÃO! Ela está de volta! Sim, semana que vem teremos edição da BunnyHour, portanto nada de capítulo por aqui e retomamos em maio!

Ei, vizinho! Não esquece de me acompanhar nas outras redes! 💫

Reply

or to participate.