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đŸ’« Pontes Imortais ― Capítulo 39

Sem origens

Os Stray Kids mandaram avisar que entre um show e outro aqui no BR tem também o capítulo novo de Pontes Imortais! Vortexianos presentes no show?

No Ășltimo capĂ­tulo
 A oficialização da uniĂŁo de Oz e Maali foi um grande bafafĂĄ. Ravi achou que ia terminar a farra com um genro e os segredos tecnolĂłgicos de Nivaria, mas saiu com 2 genros, nenhum segredo e o orgulho ferido. Vamos deixar ele digerindo, porque quero mostrar pra vocĂȘs uma coisinha bem legal. 

MĂșsica-tema do capĂ­tulo: Life on Mars, de David Bowie, interpretada por Sophia Anne Caruso (sigam a playlist oficial Pontes Imortais #2 no Spotify!)

Capítulo 39 — Sem origens

Farkas, dez meses antes da queda de Nivaria

A ajuda de Yan nos primeiros dias tinha sido fundamental. Depois que o irmĂŁo se instalou de vez na residĂȘncia dos Farkas, no centro da Cidade, Nyan tinha tido dificuldade com algumas pequenas coisas que a mĂŁe jogava em suas costas. 

Primeiro, ela queria que descobrisse qual artesã produzia as melhores roupas típicas farkasianas, mas não podia ela mesma questionar as pessoas na cidade, porque “poderiam achar que está sendo uma esnobe”. Nyan não compreendia de que forma ter ele fazendo essa exata pergunta seria diferente.

A segunda coisa que ela pediu — ou mandou, porque a mĂŁe dificilmente aceitava uma negativa — foi para que observasse a rotina das madames da cidade. Juno era inacessĂ­vel, mas as esposas de amigos de Ravi e outras lĂ­deres distritais costumavam se reunir em pequenos grupos. 

Obviamente que sua mĂŁe tinha o desejo de se inserir. Ela havia ignorado a sociedade nivariana por birra, mas aparentemente o cenĂĄrio mudava agora que estavam em Farkas, onde Jiao queria firmar raĂ­zes.

Nyan havia conseguido se poupar um pouco de tempo ao descobrir que a artesĂŁ era tambĂ©m uma das madames com quem sua mĂŁe tanto queria contato. E ela havia achado adorĂĄveis as suas orelhas de hamster. 

Isso o levou ao terceiro pedido da mĂŁe: para que fizesse uma fornada de biscoitos de mel e especiarias e ofertasse Ă  madame artesĂŁ como um presente de chegada. Assim, poderia casualmente falar para ela sobre sua mĂŁe, uma aruviana agora residente em Farkas, cujo filho mais velho havia sido convidado por Ravi em pessoa para atuar como curandeiro da famĂ­lia de lĂ­deres, mas sobre o qual ela certamente jĂĄ ouvira, pois se tratava de um dos noivos do queridĂ­ssimo herdeiro de Farkas – para quem sua mĂŁe nĂŁo tinha nada alĂ©m de elogios, mesmo que tivesse trocado com ele algumas poucas palavras apenas. 

A histĂłria, Jiao dizia, era brilhante. NĂŁo havia chances de que nĂŁo fosse convidada para o cĂ­rculo social de madames tendo tamanho trunfo. Seria certamente paparicada por todas, inclusive, dado o novo status do nome Uki por aquelas terras.

Seu trunfo, no fim das contas, envolvia ela mesma e Yan. Nunca ele. Era como uma sobra na lista de louros da famĂ­lia, mesmo que Yan sempre tentasse fazĂȘ-lo ver que aquele pensamento era exclusivo de Jiao e de mais ninguĂ©m.

A cestinha pendurada em seu braço o fazia sentir como em um conto infantil que ouviu uma vez da boca de Maali em uma das contaçÔes de histĂłrias em Nivaria. 

Na fĂĄbula, era uma garota com um gorro vermelho. Nyan desejou que tivesse visto aquela coincidĂȘncia antes, assim teria vestido ele prĂłprio seu gorrinho vermelho para protegĂȘ-lo do sol quando saĂ­sse da cobertura das copas de ĂĄrvore do bosque que separava sua casa — instalada perto de uma pequena vila nos arredores da ponte para Nivaria — do centro de Farkas. 

Era coincidĂȘncia que, na histĂłria, a garota levasse consigo uma cesta de doces para a vovĂł, enquanto ele levava tambĂ©m uma cesta com doces para alguĂ©m que teria idade para ser sua avĂł — e que felizmente nĂŁo era. Se fosse para escolher uma madame para chamar de avĂł, certamente nĂŁo seria aquela. Nyan desgostava de seu tom de voz rouco e do tilintar dos anĂ©is e correntes que ela usava ao redor do pescoço. Desgostava tambĂ©m do aroma que exalava do ateliĂȘ, que rescindia a cigarro de ervas impregnado nos estofados, e do eterno fumacĂȘ de incenso mal preparado que nĂŁo ocultava e nem melhorava o cheiro de tabaco. 

Quando ouviu o farfalhar de folhas em um arbusto perto do fim da trilha, Nyan estagnou. Seu primeiro pensamento foi o Lobo Mau, personagem da histĂłria. Naquele momento, pensou que isso sĂł fazia com que o conto parecesse com uma propaganda anti-Farkas espalhada por antigos nivarianos receosos do que habitava o outro lado da ponte. 

Lobos em Farkas nĂŁo eram vilĂ”es. Assim como a criatura que mexia aquelas folhas nĂŁo era um lobo, mas uma garota de idade similar Ă  sua. 

— TĂŽ com fome — ela murmurou em voz baixa. 

À primeira vista, nĂŁo se parecia com uma farkasiana. Os cachos vermelhos e cheios contrastavam com a pele retinta e pareciam faiscar. A cor viva de chamas fazia Nyan pensar em Banjora, assim como as roupas de aspecto antigo, mas bem cuidadas, chiques como algo recĂ©m-saĂ­do de um ateliĂȘ fino. NĂŁo fazia sentido que alguĂ©m tĂŁo bem trajado tivesse fome, mas era possĂ­vel que ela tivesse se perdido. 

A garota fez um bico sentido, e ergueu o nariz no ar. O vento soprava de Nyan para ela, balançando suavemente os cabelos do garoto em direção ao rosto e afastando os dela para trĂĄs. 

— Que cheiro bom
 — ela voltou a murmurar, passando a lĂ­ngua entre os lĂĄbios. 

O olhar de Nyan desceu para a cestinha. O aroma dos biscoitos recĂ©m-assados ainda era marcante. Tinha atiçado a fome da garota com eles, mas jĂĄ tinham seu destino. NĂŁo podia dividi-los ou teria que ouvir da mĂŁe que nĂŁo conseguia fazer a ela o simples favor de entregar alguns biscoitos. 

Biscoitos que ele mesmo tinha assado. Para uma pessoa que ele mesmo tinha conhecido. 

Sua mĂŁe tinha um talento inato para fazĂȘ-lo acreditar que era um ingrato quando falhava em algo mĂ­nimo. NĂŁo queria lidar com ela naquele dia. 

— Desculpa. Eu preciso ir. 

Com uma reverĂȘncia rĂĄpida, deu as costas para a menina, apressando o passo em direção ao fim da trilha. JĂĄ tinha se afastado uns bons dez passos quando voltou a ouvi-la:

— Mas eu tĂŽ com fome
 

Nyan travou no lugar. Arrumada ou nĂŁo, ela dizia ter fome. Nem sua mĂŁe e nem a madame que ela queria agradar tinham isso, o que tornava o problema delas bem menor do que o da garota. Nyan tinha o coração macio, era o que Yan dizia. Um coração macio demais, justo demais. E que sempre colocaria a necessidade dos outros acima das suas prĂłprias. Nem podia negar, nĂŁo quando o pedido daquela garota era o suficiente para fazĂȘ-lo retroceder atĂ© perto dela, trazendo de volta a cesta de biscoitos. 

— Eu tenho alguns biscoitos. Posso
 dividir com vocĂȘ. SĂł alguns, tĂĄ? 

NĂŁo esperou por uma resposta. Ela jĂĄ havia se queixado de fome duas vezes e aquilo era suficiente. Nyan se abaixou Ă  frente dela, nĂŁo se importando quando a garota repetiu seus movimentos e abraçou os joelhos. 

A atenção dela estava toda em si, mas Nyan tentou nĂŁo se importar quando apoiou a cesta no chĂŁo e retirou dela o embrulho de tecido com os biscoitos, abrindo-o sobre a tampa. 

— Aqui, viu? Eu divido com vocĂȘ pra vocĂȘ nĂŁo ficar com fome. SĂł nĂŁo pode comer tudo, tĂĄ? Porque eu tava levando eles pra uma pess
 Ah!

O gritinho de Nyan cortou o fim da frase. Ele se levantou e recuou um passo, ressentido, depois de as unhas da garota roçarem seu braço tĂŁo rapidamente que Nyan sentiu como se tivesse sido arranhado por um gato. No susto, ele puxou o braço e ela agarrou com força uma mĂŁozada cheia de biscoitos. 

Devia estar mesmo com fome, entĂŁo.

— Ei, vai com calma! — reclamou o garoto, olhando as linhas brancas feitas pelas unhas dela em seu braço. 

De perto da cesta, a garota o encarou firmemente, o olhar migrando do rosto de Nyan para seu braço e entĂŁo, por Ășltimo, para o punhado de biscoitos que havia agarrado. Suas garras, firmes, haviam esfarelado os cantinhos de alguns biscoitos, quebrado outros em alguns pedaços. 

Ela pendeu a cabeça para o lado, curiosa, entĂŁo ergueu do embrulhinho um biscoito com formato rudimentar de um esquilo. Seus dedos tinham destroçado o pescocinho de massa crocante. A garota trouxe o esquilo sem cabeça atĂ© perto dos olhos, arqueando as sobrancelhas. 

— O que Ă© isso?

— Um esquilo. Por quĂȘ?

Nyan nem pĂŽde evitar ficar um pouco defensivo. Aqueles biscoitos, adocicados com mel e exalando aroma de especiarias, eram sua especialidade. O sabor deles nunca tinha sido questionado, mas a aparĂȘncia
 Aquela sempre tomava um ou outro comentĂĄrio desnecessĂĄrio de sua mĂŁe. NĂŁo era seu ponto mais forte, mas estava tentando. E tinha tentado especialmente naquela fornada, com cada biscoitinho em um formato desenhado a mĂŁo. Estavam todos destruĂ­dos agora por culpa daquela garota esfomeada, entĂŁo esperava que ela nĂŁo fosse zombar do seu esforço ainda por cima. 

— Pra quĂȘ? — foi a pergunta que seguiu. E Nyan achou que o tom dela pareceu um pouco mais divertido, como uma provocação. Se aproximou de volta um passo.

A garota enfiou o biscoito na boca e o mastigou enfaticamente. Pelas frestas de seus lĂĄbios, Nyan entreviu os dentes afiados. 

— Nem tem gosto de esquilo — ela resmungou, e entĂŁo sorriu pelo canto da boca. 

— Mas Ă© claro que nĂŁo. VocĂȘ jĂĄ ouviu falar em biscoito com gosto de esquilo, por acaso?

As orelhinhas de Nyan se agitaram. A garota observava os movimentos delas como se estivesse hipnotizada. 

— E pra quĂȘ o formato, entĂŁo? Por que vocĂȘ faz biscoito em formato de esquilo que sĂł tem gosto de açĂșcar, garoto esquisito?

— VocĂȘ tĂĄ errada!

Ele foi mais firme quando falou dessa vez. A garota não pÎde deixar de reparar como as mãos delicadas dele se fecharam em punhos. Aquele era um garoto acostumado a trabalhos leves. Dali de onde estava podia ver a pele fina, as mãos macias. Imaginou que ele ficaria ofendido por ser chamado de esquisito, mas então se surpreendeu com o resto da reação dele:

— NĂŁo sĂŁo de açĂșcar. Esses sĂŁo adoçados com mel. Seu paladar que Ă© uma porcaria. Eu nĂŁo devia ter dividido com vocĂȘ. — Franziu a testa. — E vocĂȘ que Ă© esquisita. 

Se abaixou, puxando as pontas do embrulho para voltar a fechĂĄ-lo, como se fosse metĂȘ-lo de volta na cesta e seguir caminho. Uma rĂĄpida olhada no conteĂșdo e soube que nĂŁo poderia fazer isso. Seus biscoitos estavam destruĂ­dos, quebrados, esfarelados. Se sua mĂŁe ouvisse que levou biscoitos naquele estado para uma madame, nunca mais teria paz. 

Nyan gostava de paz. Ou, ao menos, era o que pensava naquela Ă©poca. 

Voltar e fazer mais seria um transtorno. Mas entregĂĄ-los assim e ouvir chumbo depois seria um transtorno ainda maior. Escolheu a primeira opção, entĂŁo empurrou o embrulho com pano e tudo para as mĂŁos da garota. 

— Aqui, pra vocĂȘ nĂŁo ficar reclamando de fome, agora que jĂĄ destruiu tudo mesmo. 

O olhar de Nyan localizou um pedaço de biscoito que havia voado para fora do embrulho: a cabecinha decapitada do esquilo. VĂȘ-la caĂ­da na grama puxou dele uma expressĂŁo triste. 

— E pra sua informação, ele parecia um esquilo sĂł pra ficar bonitinho. Porque eu gosto. — Ele suspirou. — Comida nĂŁo precisa ser sĂł gostosa, ela tambĂ©m pode ser bonita. Isso deixa as pessoas felizes. 

Comida podia ser bonita. Aquela informação fez a garota assentir com a cabeça. Achava que compreendia a sensação. 

— Desculpa. — Ela pediu logo antes de devolver o sorriso para o rosto. — Eu não queria destruir sua comida bonita.

— Tudo bem — Nyan concedeu, ainda parecendo bem defensivo. EntĂŁo se forçou um suspiro e esfregou o rosto com as costas da mĂŁo. — Tudo bem. VocĂȘ estava com fome. 

— Tudo bem destruir comida bonita por causa da fome? — ela confirmou, curiosa. 

— É, acho que sim. — Nyan ergueu os ombros. — Eu nĂŁo sei. Nunca senti fome. 

Nunca tinha sentido. Sua mĂŁe podia ser uma dose desconfortĂĄvel de arrogĂąncia e exigĂȘncias desnecessĂĄrias, mas nunca tinha deixado faltar comida. E Nyan aprendera desde novinho com o pai a cozinhar, e pegou gosto por doces e pĂŁes. Sempre podia contar com seus prĂłprios preparos, frescos e deliciosos. SĂł precisava ir atĂ© a cozinha. Definitivamente, nĂŁo sabia o que era sentir fome. 

Podia ser mais compreensivo com a garota. 

Ela o encarou em silĂȘncio. A risadinha que se seguiu fez Nyan pensar que ou era maluca ou a fome tinha tirado um pouco do seu juĂ­zo. Ainda achava estranho. Por mais que se queixasse de fome, a garota tinha uma aparĂȘncia saudĂĄvel, cabelos bonitos, o rosto corado. 

Ela voltou a pegar um dos biscoitos entre os dedos — um no formato de um coelhinho — e mordeu fora seu rabo de pompom. EntĂŁo sorriu enquanto Nyan observava o coelho agora sem parte do corpo. 

— VocĂȘ que fez? VocĂȘ cozinha bem assim pra tudo ou sĂł sabe fazer isso? 

Ela era rude. Nyan sentiu as prĂłprias orelhinhas se agitarem. Ela notou o agito e sorriu, como se achasse interessante o movimento daquelas orelhas de hamster. EntĂŁo arrancou as orelhas do coelho de biscoito em outra mordida. 

Nyan tinha bochechas salientes, gordas e marcadas, com covinhas fundas que apareciam quando sorria. Quando estava irritado, ficavam mais cheias, a boca reduzida a um biquinho contrariado. Era essa a expressĂŁo que a garota via quando o encarava, ainda com as orelhas do coelho de biscoito trituradas na boca. 

Podia ter respondido de forma atravessada, mas lembrou do que tinha pensado nĂŁo mais do que alguns minutos antes, sobre ter paciĂȘncia. Parte daquela pergunta tinha sido um elogio, certo? Ela tinha dito que cozinhava bem. 

— VocĂȘ gostou, entĂŁo? — perguntou, forçando um sorriso que surgiu devagar. 

— NĂŁo — ela respondeu. E entĂŁo riu do bico irritado de Nyan voltando instantaneamente para o rosto. — VocĂȘ tem uma cara engraçada quando fica bravo, sabia? Parece um pĂŁozinho. 

Aquilo fez Nyan corar subitamente, bem quando estava prestes a responder a provocação. Perdeu a linha de pensamento e as palavras. EntĂŁo abriu e fechou a boca, tentando recuperĂĄ-las. 

— E vocĂȘ parece uma
 — começou, descendo o olhar da cabeça aos pĂ©s dela. NĂŁo conseguiu pensar em nada. — Que saco! — resmungou, abraçando os joelhos. Acocorado assim, parecia menor do que era. — Qual Ă© o seu nome, afinal, garota esfomeada? 

— Eu gosto desse.

— Esse qual? 

— Garota Esfomeada. Achei minha cara. — Ela segurou o sorriso de provocação no canto da boca enquanto se servia de mais um biscoito. Ganhava confiança conforme Nyan parecia mais sossegado Ă  sua frente. — E vocĂȘ, posso te chamar de PĂŁozinho? 

— NĂŁo — Nyan resmungou, bravo. 

— Mas eu vou chamar mesmo assim, viu, PĂŁozinho? AliĂĄs
 VocĂȘ tem gosto de pĂŁo ou de menino? 

— É claro que
 — ele começou, estarrecido, entĂŁo balançou a cabeça, indignado. — Que tipo de pergunta Ă© essa? E vocĂȘ por acaso sabe que gosto tem um menino? VocĂȘ nem sabe diferenciar gosto de mel e de açĂșcar! 

Ela arregalou os olhos e Nyan estagnou. Achou que a resposta viria em forma de grosseria. Que ela parecesse mais curiosa do que injuriada foi outra surpresa. 

— Qual Ă© a diferença?

— O quĂȘ?

— Entre mel e açĂșcar, qual Ă© a diferença? — ela perguntou.

Nyan respirou fundo. Qual era? Quando pensava no sabor, a diferença era Ăłbvia. O gosto do mel escorria pela lĂ­ngua, enchia a boca, o deixava confortĂĄvel. AçĂșcar tinha um gosto mais crocante, concentrado, o cheiro doce cristalizado pinicava o nariz. Mas como poderia explicar isso para outra pessoa? Para ela?

— Mel tem um gosto quente. O açĂșcar Ă© mais frio — concluiu. NĂŁo era uma questĂŁo de temperatura. Esperava que fizesse algum sentido para ela. 

— Quente como sangue? — foi a resposta. 

Nyan franziu a testa e pensou na Ășltima vez que assaram carne no fogo. O sabor do sangue ficava escondido por baixo da crosta quente. Combinava com o mel, agora que tinha parado para pensar. 

— Sim, tipo sangue. 

A menina ergueu as sobrancelhas em espanto. 

— NĂŁo esperava que vocĂȘ soubesse essa — confessou. — Que tipo de esquilinho vocĂȘ Ă©? 

— Eu sou um hamster, não um esquilo!

— Por isso vocĂȘ nĂŁo tem um rabĂŁo! VocĂȘ tem um rabinho curto debaixo dessas roupas? — O sorriso voltou a crescer no canto da boca. — Posso ver? 

— Não!

Nyan sentiu o rosto quente. Vermelho como um pimentĂŁo, se levantou, dando rĂ© para afastar-se da garota, como se tivesse receio de dar-lhe as costas e ela puxar suas vestes na esperança de espiar sua cauda. 

— NĂŁo tem ou nĂŁo posso? Deixa
 NĂŁo precisa responder. Eu tenho quase certeza de que tem. 

Ela descansou o rosto na mĂŁo, parecendo cansada. Rodou outro biscoitinho entre os dedos. Aquele tinha um formato peculiar. Sem saber que Nyan o havia cortado imaginando um urso, ela pensou que podia muito bem ser um hamster. Pensou em guardar aquele biscoito para mais tarde. 

Sua barriga roncou. NĂŁo poderia poupar o hamster. 

Enfiou o biscoito de uma vez na boca enquanto se levantava, entĂŁo bateu a grama seca grudada no vestido. Vistas com atenção, suas belas vestes pareciam extremamente deslocadas: de Farkas, do bosque, de tudo. 

— Como vocĂȘ veio parar aqui? — Nyan perguntou, vendo-a se levantar. 

E arregalou os olhos em seguida quando ela se abaixou para recolher com uma Ășnica mĂŁo uma pedra grande meio enterrada entre a relva. 

— Nossa, vocĂȘ Ă© forte! 

— Sou — ela respondeu, abrindo mais o sorriso. Os olhos perderam o brilho naquele instante, assumindo a aparĂȘncia afiada do par de olhos de um predador. 

— Forte mesmo, benzinho
 

A voz misteriosa veio do meio das ĂĄrvores. Nyan achou que a reconhecia. Era a voz de um diplomata, um daqueles que esteve na comitiva farkasiana. Teve certeza disso quando reconheceu os cachos rosa clarinhos presos em tranças e as duas cobras enroladas ao redor de seus braços. 

Devia saber quem ele era. E seu nome. Yan o repreenderia por nĂŁo reconhecer a alcunha de alguĂ©m importante. Mas ele era bom nisso, nos contatos. Nyan costumava ser popular entre crianças e senhoras de idade, nĂŁo entre autoridades. 

Mas fez o que o irmĂŁo diria para fazer: curvou o corpo em uma reverĂȘncia respeitosa. 

— Boa tarde, senhor. Precisa de alguma coisa? 

A garota recuou, assustada com o recĂ©m-chegado. A pedra escorregou de seu aperto enfraquecido e caiu de volta no chĂŁo. NĂŁo tinha sentido qualquer sinal de aproximação daquela criatura. Nenhum som, nenhum aroma. Nada, atĂ© o momento em que ele se apresentou, surgindo sorrateiramente por entre as ĂĄrvores como se tivesse se materializado de uma nuvem de nĂ©voa. 

— Preciso: levar essa jovem encantadora para casa. — KuĂ­ respondeu, acariciando a cabeça de uma das cobras com um toque delicado. — E vocĂȘ, filhotinho? NĂŁo tem outro lugar onde precisa estar? Ou tem gosto por se arriscar em bosques, tal qual seu irmĂŁo? 

Nyan fez uma caretinha. Podia dizer que nĂŁo esperava que aquele bosque fosse arriscado, bem no territĂłrio de Farkas, ou que KuĂ­ podia cuidar das suas cobras e deixar que ele — que nĂŁo era filhote coisa nenhuma — cuidasse de si mesmo. Mas novamente respirou fundo e repensou suas escolhas. 

Yan ficaria orgulhoso. 

— Preciso ir para casa assar uma nova fornada de biscoitos. 

Mirou a garota com um olhar amargo, deixando claro que se ia perder um precioso tempo daquela tarde, era por culpa dela. EntĂŁo temperou o olhar com um breve sorriso em uma promessa de trĂ©gua doce. 

— Ele Ă© importante — murmurou sem voz, Ă s costas de KuĂ­, deixando que o olhar entregasse que sussurrava para ela informaçÔes importantes. — Rico. 

Era o que podia fazer: oferecer os biscoitos, sua paciĂȘncia, informação. Se fosse esperta, entĂŁo a garota talvez se desse melhor. Conseguiria coisa mais farta para se alimentar com um diplomata importante do que na cesta de biscoitos de um garoto. 

KuĂ­ se virou, os braços cruzados contra o peito, as cobras deslizando ao redor dos ombros atĂ© envolverem cada uma uma das tranças, rodeando os cabelos do diplomata como um par de adornos de ouro. 

— Por muito pouco nĂŁo devorou o rapazinho — ele comentou, a voz macia como calda, os olhos seguindo a silhueta de Nyan que se afastava por entre as ĂĄrvores, jĂĄ ao longe. — Como foi que uma criaturinha como vocĂȘ aprendeu a caçar dessa forma? Disse o quĂȘ para aquele garotinho, hm? Que estava sozinha e com fome? Com essas roupas pomposas, sĂł vai mesmo enganar os jovenzinhos mais ingĂȘnuos.

— SĂŁo os meus favoritos — ela respondeu com um breve riso. 

Nunca tinha visto aquele indivĂ­duo, mas havia algo na forma como aquele par de cobras se enrolava em seu cabelo que dava a ele um subtom especial, uma carinha de maluco, de que descobriu que gostava.

— VocĂȘ nĂŁo pode devorar aquele ali.

— E por que nĂŁo? Ele parece doce. — A expressĂŁo de desafio dela fez KuĂ­ rir. 

— Eu digo pelo seu bem, queridinha. Seu conhecimento sobre relaçÔes Ă© ralo, mas em alguns lugares, como aqui, ele Ă© a coisa mais preciosa que podemos conquistar. — KuĂ­ tapou a boca com as costas da mĂŁo, escondendo contra os dedos uma risadinha. — Olha sĂł, parece que simpatizei com vocĂȘ. É assim que Ă© uma adoção, sabia? Devia aceitar o convite de um honesto diplomata e juntar seus trapinhos com a Ópera do Fim do Mundo antes que devore alguĂ©m que nĂŁo deveria e seja caçada por um exĂ©rcito farkasiano. PodĂ­amos te chamar de Tapisa, o que acha? É forte e sem origens, assim como um filhotinho do vĂłrtex como vocĂȘ. 

Tapisa.

Ela refletiu, mesmo que nĂŁo tivesse muitos argumentos para uma negativa. Uma casa com um diplomata, comida, status? NĂŁo achava que tinha feito nada para merecer tamanha fortuna e ainda assim lĂĄ estava ela, se revirando por entre suas garrinhas. SĂł precisava agarrĂĄ-la. 

— Depende — respondeu, afinal. E sorriu ao se balançar sobre os calcanhares. — É verdade que vocĂȘ Ă© rico?

Continua


Maali tem certas coisas a descobrir por Farkas, ou pelo menos a paranoia vai fazĂȘ-lo acreditar nisso. Afinal, qual o preço de criar inimizades? E, espera
 É possĂ­vel que atĂ© lagartinhos tenham segredos?

O CapĂ­tulo 40  — Uma memĂłria inventada chega em 11 de abril de 2025

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