💫 Pontes Imortais ― Capítulo 30

Não se esqueça do presente

No último capítulo… O relatório de Tyr Maali registrou duas coisas muito importantes: a primeira delas que a atitude do herdeiro farkasiano deixa muito a desejar em termos de disciplina; a segunda, que o sorriso dele parece ter cativado até o mais rígido dos nivarianos.

Música-tema do capítulo:Walking in the Air, Nightwish (sigam a playlist oficial Pontes Imortais #2 no Spotify!

Capítulo 31 — Avisos que se repetem como eco

Nivaria, dois anos antes da queda da Cidade

Cada trança nos cabelos de um monge representa um Fronteiriço derrubado. Não qualquer Fronteiriço, mas os de Categoria 4 em diante — os voadores, que pulam para fora do vórtex prontos para destruir tudo que encontram pelo caminho, carregando em suas carapaças todo tipo de pestilência. E a melhor forma de combatê-los… 

Oz fez uma careta tão intensa para si mesmo que espantou alguns dos juniores ao redor. Que estivesse há vidas naquela escola sem graça já era castigo o suficiente, mas ter a ladainha daquele metido de nariz empinado rodeando a sua cabeça já era demais. 

— Ele é bem bonito mesmo… — alguém comentou ao seu lado, fazendo Oz lembrar-se de onde estava: na disputada varandinha da biblioteca, de onde tinham uma vista privilegiada de parte do Distrito e de um pedaço de Espinho de Cristal. 

Agora que o degelo finalmente tinha dado as caras, não precisavam ficar enfurnados nos salões internos. Ao redor deles, Nivaria inteira parecia estar despertando de um cochilo prolongado, daqueles que deixam em seu rastro dor de cabeça em lugar de descanso. Os cristais de neve presos às folhas das coníferas já tinham quase todos se transformado em poças de lama. 

— Quem? — Oz encarou a garota sentada de pernas cruzadas diante de si.

Era pelo menos quarenta anos mais nova, e o rosto arredondado acentuava-lhe a juventude. Seu nome era Sesi e tinha colado em Oz desde o primeiro dia em que ele pusera os pés ali, como uma irmã mais nova e insuportável. 

— O Maali, ué. É quem você tá aí comendo com os olhos, ou não? 

Só então ele se deu conta de que estava encarando Maali, no pátio do andar inferior. Diante dele, um bando de jovenzinhos tomava lições de caligrafia, os bicos das penas agudeando palavras complexas. 

— Seu vocabulário é bem chulo pra uma monja — ele rosnou, desviando os olhos com tamanha ênfase que tornou o esforço óbvio e fez Sesi rir, chutando-o no joelho. 

— Eu ainda não sou uma monja — Sesi pontuou. — Nem tenho a intenção de virar uma monja interna e viver lá no topo do fim do mundo pra sempre, o que significa que não preciso tomar tanto cuidado assim com o meu vocabulário. 

Mesmo sem olhar para onde ela tinha apontado, para enfatizar as próprias palavras, Oz sabia sobre o que falava: a Cidadela da Neve Eterna, cuja sugestão de silhueta entreviam dali. 

Jogando o corpo para trás, Sesi se apoiou nas mãos, esticando as pernas por baixo da mesinha para chutá-lo mais uma vez no joelho, ao que Oz respondeu com um rosnado de aviso. As felpudas orelhinhas de gato da menina se mexeram, animadas. 

— Eu quero continuar aqui no Distrito, Oz! E atravessar a ponte, como os monges mercadores. Quero conhecer as outras Cidades, todas elas, e você vai me levar pra dar uma volta em Farkas sempre que eu te visitar — exigiu, oferecendo-lhe um sorriso selvagem. 

Oz não tinha irmãos, mas pensou que se tivesse, gostaria que fossem como Sesi. 

— Oferecida — ele resmungou, sentindo os olhos irem para baixo mais uma vez contra sua vontade. — Aposto que naqueles dicionários imensos da biblioteca eu encontro uns cem sinônimos pra sem graça e nenhum dá conta daquele ali. 

A testa se franziu logo em seguida. Tinha uma dúvida há bastante tempo e decidiu ignorar a risadinha gaiata de Sesi para externalizá-la: 

— Por que ele tem tranças? 

Três tranças contornavam a cabeça de Maali, do lado esquerdo, unindo-se ao mar de cabelos que sumia atrás das costas do rapaz, formando ondas suaves logo abaixo dos ombros. Quando não saía para caçar, ele sempre as enfeitava com pequenas contas coloridas. 

— Uai, Oz! — Sesi gargalhou. — Não banca o burro pra cima de mim, você sabe a razão. 

Pela primeira vez, Oz considerou o peso da palavra imprudência. Parecia bastante insensato que um caçador jovem se arriscasse a derrubar Fronteiriços de categorias muito altas. Quando pensava no assunto, chegava à conclusão de que aquilo era o tipo de risco que apenas os mais velhos e os loucos ousavam correr. E isso fez o rapaz perceber que Maali talvez fosse mais interessante do que parecia. Ou que caçar Fronteiriços fosse menos trabalhoso do que os professores lhe fizeram pensar até então. 

Ia apostar na segunda alternativa. 


Quando o degelo atingia seu ápice, o céu nivariano ganhava cores ainda mais incomuns, e um verde-esmeralda profundo desenhava ondulações caprichosas contra as nuvens. O espetáculo, que já era incrível, tornava-se memorável quando o manto da escuridão acrescentava aos desenhos no céu um brilho amarelado, como se um milhão de vagalumes estivesse reunido para uma conferência. 

Era assim a noite nivariana durante a Festa de Luzes. 

Oz não sabia com o que estava mais impressionado: com o céu que mais parecia uma pintura, com as tochas de fogo colorido que marcavam o caminho até o largo onde a festividade aconteceria, ou com o quanto se sentia mal-vestido agora que prestava atenção nos trajes nivarianos com suas estampas complexas e franjas coloridas, e seus acessórios feitos de ossos e sementes. Em um dia normal, qualquer nivariano comum já se enfeitava com um charme único, mas pelo visto se esforçavam ainda mais em dias de festa. 

Oz pensou que ao menos tinha aquele pesado crânio de lobo, que o fazia se sentir dentro do tema. Enquanto ajeitava o adereço sobre a cabeça — pela primeira vez, não porque o pai ordenou ou para se destacar como um Farkas, mas porque era bonito e combinava com uma data festiva —, teve orgulho dele. Apertou o rabo de cavalo e jogou as pontas dos cabelos sobre os ombros, deixando o casaco de pele grosso em destaque. 

— Eu acho que nem conseguiria me mexer em um casaco desse tamanho — Yan comentou, assim que o abordou. — Mas fica bonito em você.

Ele trazia nas mãos um prato com um polpudo pão cozido a vapor, que exalava uma fumaça de aroma doce. Algo como carne de porco, com mel e especiarias, talvez. O cheiro deixou Oz interessado. Tinha aprendido dia a dia os pequenos pontos de intersecção entre a culinária nivariana e a da sua própria terra. Que eles pegassem algo que amava, como as carnes, e transformassem em um recheio doce com especiarias para pães era algo que gostaria de poder levar de volta para casa, um detalhe de que sentiria falta quando voltasse a Farkas, porque nem ao menos sabia se voltaria para Nivaria tão breve. 

— Você aguenta. Olha. 

Tirando a camada externa das vestes, Oz passou a pesada capa ao redor dos ombros de Yan, envolvendo-o com ela para que sentisse o peso. Ele riu, reclamando baixinho sobre como era mesmo pesada e muito quente para o clima mais controlado no Distrito — coisa de que Oz, nascido e criado no ambiente abafado de Farkas, fez questão de discordar prontamente. 

— Essa capa tem magia têxtil da terra da minha mãe. Ela se adapta, mas foi feita pra mim, por isso é pesada. Se você encomendasse de Banjora um casaco como esse, eles poderiam fazer com tecidos mais leves, mas que garantissem  que você não morreria de frio andando no meio desse mato congelado o tempo todo. 

— Você sabe que essa é nossa estação quente, não sabe? — Yan provocou. 

— Ainda acho que você tá me zoando. Ou então… — ele abaixou a voz — não sabe o que é um clima confortável. Vai saber quando for me visitar. 

Puxou de volta a pesada capa, enrolando-a em volta dos próprios ombros antes que fosse atingido por mais uma lufada daquele vento gélido ao qual Yan parecia imune. Desconfiou, enquanto tentava ajeitar o laço das vestes, de que as roupas daqueles nivarianos tivessem algum tipo de emulação da magia têxtil de Banjora. Não era possível que ficassem sempre tão confortáveis naquela friagem. 

— Deixa eu ajudar — Yan ofereceu, entregando o prato com o pão em suas mãos antes de tocar o laço torto para ajeitá-lo. 

Foi quando Oz pôde reparar em suas vestes. Não tinha visto Yan vestir nada de diferente dos trajes de curandeiro em cores claras e a bolsa de viagem amarela-escura. Naquela noite, ele vestia uma peça rosa acolchoada cujo toque lembrava o de uma manta. Por ela, contornos de flores bordadas em preto eram um convite à estação do degelo. Os cabelos soltos estavam enfeitados com fitinhas vermelhas. 

Na Festa de Luzes nos desaterramos de qualquer gênero para sermos um com Niva, foi o que o professor de cultura e tradições tinha explicado semanas atrás, um detalhe que Oz acabou rabiscando no topo da folha em branco porque o conceito todo da coisa — escolher um gênero, então abrir mão dele — era muito interessante e complexo.

— Tá olhando o quê, colega? — Shu espezinhou, surgindo do ombro do curandeiro com um gorro feito de lã que imitava um broto de flor. — Nem pensa em comer esse pão aí sozinho! 

— Você precisa ser um pouco mais generoso em uma noite como essa, lagarto. 

Não tinham percebido a aproximação de Maali, mas ouvi-lo foi o bastante para trazer um sorriso aos lábios de Yan enquanto se ele virava para recepcioná-lo. Oz também ergueu os olhos, imaginando que teria a mesma visão entediante de sempre: Maali em suas ascéticas roupas brancas, como se ele tivesse planos de sumir em meio à neve. 

Em vez disso, as roupas de Maali eram do mesmo verde que pintava a noite: uma túnica de mangas curtas presa à cintura por uma grossa faixa de couro escuro e calças largas e confortáveis. O tecido era tão leve que, se já parecia difícil imaginar que Yan não sentia frio, era impossível que Maali não sentisse. 

Os braços expostos revelavam uma miríade de cicatrizes: runas escarificadas que iam-lhe dos ombros aos punhos e pareciam emitir um brilho discreto, como se pulsassem magia. Por alguma razão, as cicatrizes fizeram Oz pensar em flores. Pequenas flores de ameixa agrupadas. 

Maali tinha vestido um colar feito com pequenos ossos e enfeitado as orelhas de raposa com brincos cor de bronze. De um deles, partia uma correntinha delicada que se conectava à argola que adicionara ao nariz. 

— Feliz noite, Yan — desejou, sorrindo. — Oz — completou, e apesar da seriedade, seus olhos pareciam bem mais suaves naquela noite. 

— E pra mim ninguém deseja nada? — Shu protestou. 

— Me parece que todas as suas noites já são felizes o bastante, lagarto — Maali comentou com uma sugestão de sorriso. — Posso pegar um pedaço desse pão? 

— Claro — Yan e Oz responderam juntos, e isso fez ambos rirem enquanto Oz oferecia o pratinho para Maali.

Já tinham quase dado cabo do pão quando Sesi os abordou. O último punhadinho de recheio, que Oz havia planejado comer, foi surrupiado por Shu quando a voz dela os distraiu. 

— Maali, te aguardam para a preparação do ritual. 

— Eu já vou — ele anunciou, ajeitando as vestes e adequando a postura ao esperado de um monge. 

Do alto da seriedade daquele nivariano, Oz ainda não tinha notado como tudo o que era oficial parecia deixá-lo mais monge. Nas ocasiões em que estiveram sozinhos, os três, Maali se parecia mais com uma criatura quieta e sem jeito, com pouca paciência e amarras sociais demais para romper. Na frente dos demais, ele era calmo e comportado, frio como a neve que recobria as trilhas do bosque. 

Se o degelo havia sido capaz de derreter, ao menos um pouco, a severidade dele naquela noite, então a menção à palavra ritual acabara de construir novas camadas de gelo.

Depois de se dar conta disso, vê-lo dar as costas e se afastar deixou um rastro amargo na língua cujo significado Oz não teve tempo de perscrutar porque a mão de Yan em seu braço atraiu-lhe a atenção. 

— Siga o fluxo — ele orientou, mostrando que convivas reuniam-se em grupos e começavam a subir o lance de escadas em espiral que conduzia ao topo do largo. — Um monge vai recolher seus desejos em breve, então pense bem sobre eles. 

— E você? 

— Preciso encontrar minha família agora. 

Pelo canto do olho, já tinha avistado Jiao tentando chamar sua atenção. Não pretendia deixar que ela o visse perto de Oz assim tão cedo porque sabia como a cabeça dela funcionava. Nem se surpreendeu quando, em lugar de recebê-lo com um abraço e desejos de feliz noite, Jiao o puxou para o canto, animada.

— Aquele é o filho do líder Farkas? — Seus olhos brilhantes se alongaram até a figura de Oz, que já tinha sido cooptado por outros líderes e seus filhos. 

Depois de se soltar delicadamente do toque dela, ele se virou para o irmão, recebendo Nyan no abraço apertado com que o menino o brindou. Assim era muito melhor. Assim fazia sentido uma festa como aquela, que era toda sobre atravessar a dureza impiedosa da neve sob o conforto da família e de Niva. 

Em Niva, Yan não colocava sua fé — assim como não colocava em nenhum outro dos Imortais, embora tivesse o bom senso de guardar para si suas convicções. Segurar uma lanterna era fácil, mesmo sem intenções. Assim como se colocar como parte do grande círculo enquanto assistia as lanternas se incendiarem uma a uma aos pés das pessoas. A sua sempre demorava para queimar, o que representava por si só má sorte para os desejos, ou então desejos grandiosos demais. Não podia negar que os tinha. E não negaria também, ao menos para si mesmo, que participava dos rituais por Nivaria muito mais do que por Niva. O tanto que os Imortais poderiam fazer por seu destino sempre ocupou apenas o campo das ideias. 

O abraço de Nyan, no entanto, era tremendamente real. Afundou a mão em seus cabelos, afagando-os até sentir as pequenas orelhas de esquilo, nas quais deu uma puxadinha gentil. 

— Ai, Yan! — o menino reclamou, muito mais por manha. 

— Já separou seus desejos para o novo ciclo? — perguntou, vendo a empolgação crescer junto com o sorriso do garoto. — Então vamos nos apressar. 

Se Jiao tivesse algum comentário para fazer sobre sua proximidade com Oz ou qualquer outra criatura, poderia guardá-lo para depois. Não faltariam ocasiões para que sua mãe fosse desagradável. 

Os nivarianos se organizavam em círculos que cresciam de tamanho conforme se aproximavam das bordas da praça. É claro: não caberiam todos ali, por menor que fosse a população da Cidade; mas cada família tinha enviado pelo menos um membro para representá-la naquele ritual. 

Yan conseguiu um lugar privilegiado, bem próximo ao púlpito onde Mestre Inua se preparava para discursar. A uma distância bem pequena, conseguiu enxergar Oz, que se inclinou para acenar e indicar, por sinais expansivos demais, que já tinha depositado os seus desejos dentro da lanterna de papel que tinha em mãos agora. 

Ele era fofo. Tão fofo que poderia convencer Yan a se aventurar por um lugar tão possivelmente insalubre quanto Farkas. Ou então, poderia convencê-lo a visitar Nivaria com frequência. De seu canto do círculo pensou que ele fazia pequenos milagres pelo humor de Maali, mesmo que tivesse certeza de que Maali negaria prontamente se o acusasse de amolecer por uma criatura barulhenta como aquela. 

— A nossa noite é ainda mais especial este ano — Mestre Inua começou a falar, e o burburinho animado foi morrendo devagar, da mesma forma que o som de água corrente desaparece conforme se fecha uma torneira. — Porque temos amigos de outras terras visitando Nivaria. Eles ocupam o lugar daqueles em nossas famílias que partiram para prestar socorro aos irmãos banjorianos. Por isso, peço que acrescentem aos seus desejos, votos para que Banjora encontre paz em um futuro próximo. 

Mestre Inua deve ter discursado por mais tempo — quando desandava a falar, tinha um fôlego espetacular —, mas suas palavras não alcançaram Oz. Em vez disso, ele absorvia a cena: a primeira lanterna, aquela na mão do Mestre, se acendeu, e então todas as demais, uma a uma. Contra o papel, as chamas bruxuleavam em verde-esmeralda. Mais parecia que o céu nivariano tinha escorregado do firmamento para se espalhar aos pés de todos. Oz tinha muitos desejos, tantos que não poderia contá-los mesmo se usasse todos os dedos das mãos, mas experimentando a calmaria do fogo brando diante de si, então se encantando com a beleza das manchas lá em cima, o que mais desejava era não ser uma decepção. 

Ousou olhar para o pai ao seu lado, na esperança de encontrar o mesmo tipo de fascínio que via em si. O que encontrou foi um Ravi distraído, conversando em voz baixa com dois líderes nivarianos igualmente desinteressados. Aquilo era mais gelado do que neve infiltrada sob as roupas e ele não entendeu muito bem por que estava tão chateado. Esperar que quaisquer tradições tocassem o coração de seu pai era utopia. Ainda mais sendo tradições de povos que nunca pertenceram a Farkas. 

Seu olhar percorreu o círculo até encontrar um semblante conhecido. As orelhas e os longos cabelos pretos de Maali foram seu primeiro alvo. 

Ele era mesmo sério, com aquela postura que o fizera achar, em um primeiro momento, que se tratava de um guarda. Maali estacionou em frente a um grupo de adultos e os auxiliou com a queima das lanternas. Oz revirou os olhos, mas com alguma simpatia. Vendo-o trabalhar, parecia haver um milhão de detalhes perdidos em todo o processo: a mão protegendo a lateral da chama do vento suave, as palavras murmuradas sem som enquanto o fogo era transportado até o pavio. Todos detalhes novos, que Oz desconhecia quando acendeu sua lanterna e que, pensando agora, talvez fizessem seu desejo nunca se realizar, afinal. 

Seguiu Maali com o olhar quando ele caminhava pelo círculo, parando em frente a algumas crianças. Se Oz esperava a mesma postura séria, se enganou. O sorriso de Maali para lidar com as crianças só não o quebrou mais do que a postura, que perdera a rigidez e se tornara-se etérea. Agora ele se movia como as raposas das histórias, tão leve que Oz chegou a pensar que a mesma brisa da qual havia protegido a chama da lanterna seria capaz de levá-lo. Era a primeira vez que via Maali daquela forma e a primeira vez que as palavras de Yan faziam qualquer sentido: ele devia mesmo se parecer com o príncipe de algumas histórias. 

Para as crianças, é claro.

— Espero que tenha sido esperto com os seus desejos, criança. 

Aquele era um dos pais de Maali, certo? Amka, o engraçado. Oz lembrava-se de como se divertiu com o fato de que aquele homem tinha os mesmos olhos que Maali, mas um senso de humor muito mais apurado. 

— O senhor vai me julgar se eu disser que o meu desejo foi que, só por hoje, adoraria beber alguma coisa alcoólica? — brincou, fazendo Amka rir. 

— Não vou julgar nem um pouco — Amka garantiu. — Não ache que somos um bando de chatos, mas em uma Cidade como Nivaria o álcool é uma saída rápida para espantar o frio. Seria imprudente que fossemos um bando de alcoólatras vivendo à beira de um abismo, concorda? 

Oz fez que sim. Lembrava-se dessa explicação em outra das aulas sem fim que foi obrigado a ter. Agora que parava para pensar no assunto, tinha absorvido muito mais daquelas aulas do que ousaria dizer em voz alta. 

E por falar em coisas de que se lembrava… 

— Yan! 

Amka o observou se afastar correndo no instante em que o círculo começou a se desfazer. Tinha uma animação anormal — o tipo de animação que emprestava ao brilho agudo do gelo contornos muito mais mornos. Também percebeu a forma com que Maali ergueu os olhos e franziu o nariz, ao mesmo tempo incomodado e incapaz de desviar sua atenção da bolha de calor que Oz e Yan formavam juntos. 

Pais precisavam tomar muitas decisões difíceis. Amka fechou os olhos e respirou fundo, arriscando um sorriso para si, então outro para Uka depois que abriu os olhos e o encontrou ao seu lado. Esperava que Niva respeitasse os desejos que queimou naquela noite. 

Mais adiante, Oz estava às voltas com os bolsos da roupa. Para Yan, ele era uma das poucas criaturas que ficavam adoráveis quando estavam atrapalhadas assim, mas Shu tinha uma opinião diferente. 

— Por acaso você sentou num formigueiro durante a cerimônia? — escarneceu aos risos. — Ou são pulgas? 

— Você não vai conseguir me irritar hoje, lagartixa — Oz resmungou, o sorriso voltando ao rosto logo depois. — Yan, isso é pra você.

A caixinha era pequena e estava meio amassada depois de algumas horas dentro do bolso, coisa com que Yan não se importou. Maali olhou de um para o outro, muito mais surpreso que enciumado. 

— Você lembrou…? 

Que se trocavam presentes durante a Festa de Luzes… Ele lembrou? Em certa altura, tinha apenas concluído que Oz não se importava em conhecer sua cultura e precisava admitir — com muita vergonha — que simplesmente deixou de se esforçar para ensiná-lo. 

— Minha memória é boa — ele se gabou, erguendo um sorriso. Então se inclinou para segredar para Yan: — Mas só tenho presente pra gente bonita, então o senhor raposão ali ficou sem. 

Com os olhos levemente fechados, Maali suspirou. Não daria àquele forasteiro rude o gostinho de vê-lo irritado no meio das festividades, mesmo que seu desejo começasse a passar de indiferença para uma vontade quase incontrolável de acertá-lo com um murro bem no meio da cara. 

— Experimente o frango com creme de leite — respondeu em vez disso, porque em noites de festividades, seu papel como monge era garantir que todos estivessem bem. — O da tia Mirna é o melhor de todo o Distrito — garantiu, apontando para a maior das barraquinhas, montada no entorno do largo, na área inferior. 

Havia, por sinal, um detalhe que lhe cabia no quesito “garantir que todos estivessem bem”. Durante a cerimônia, percebeu que toda a comitiva de visitantes estivera presente, exceto por uma criatura. 

— Senhor Instrutor — cumprimentou com uma reverência ao se aproximar. — Feliz noite. 

Ao lado de Kuí havia uma barraquinha ainda vazia, exceto pela idosa de sorriso fleumático que cantarolava uma canção nivariana com os lábios fechados. Ela vendia sorte e, até o final da festa, haveria uma fila de criaturas ansiosas para receber um dos papeizinhos de seu cesto de capim dourado, torcendo para que fosse uma sorte boa. As ruins eram jogadas para dentro do vórtex, na esperança de espantar o mau agouro. Kuí pensou que não podia existir lugar mais interessante naquela festa toda. 

— Jovem Mestre Tyr — o diplomata cumprimentou de volta, sorrindo. — Obrigado pela gentileza, mas não abandone suas obrigações por minha causa. Vá se divertir.

— Eu pensei que um diplomata participaria mais ativamente da cerimônia — Maali disse. 

Era um comentário atrevido que não parecia correto emitir, especialmente diante de alguém mais velho. Estava prestes a pedir perdão pela impertinência quando ouviu Kuí rir, e sua risada parecia capaz de fazer os ombros de Maali relaxarem um pouco.

— Não é a coisa mais adequada para confessar para um monge, jovem mestre, mas não sou exatamente um fiel. 

— De Niva, suponho.

— De ninguém — Kuí corrigiu, pontuando a frase com um sorriso irreverente. 

Exceto por Yan, nunca tinha ouvido outra criatura falar tão casualmente sobre sua falta de fé. Era arrogante e corajoso, e despertou a simpatia de Maali. Ele assentiu. Se o diplomata não iria se sentir bem participando da cerimônia, era capaz de respeitar. Olhou para a barraca ao lado, então para ele, e fez um gesto para que Kuí esperasse. 

A velhota simpática se remexeu de alegria vendo que o seu primeiro cliente da noite era o filho de um líder. Se aquilo não representasse boa sorte para si, então nada mais representaria. Recebeu o punhado de moedas, que tilintou sobre a bancada de madeira, e entregou de volta um papelzinho da cor de café, cuidadosamente dobrado. 

Kuí ficou genuinamente surpreso assim que o rapaz lhe ofereceu o papelzinho. 

— O que é isso?

— O senhor não precisa ser um fiel, de quem quer que seja, para aproveitar a parte mais divertida da festa: os presentes.

— Eu envelheço mil anos a cada vez que você me chama de senhor, docinho. — Kuí segurou o papelzinho entre os dedos, sem desdobrá-lo. — Pode me chamar de Kuí. 

Maali concordou com a cabeça, mas não repetiu o nome dele. Sua educação ainda era rígida demais para que tratasse um diplomata tão importante como um amigo íntimo. 

Não muito longe, Oz tinha olhos sobre a interação. Tinha deixado Yan com seu presente, que agora pensava ser bobo demais. Havia se habituado a prender os cachos com fitas de couro adornadas por estreitos fitilhos dourados. Eram uma produção conjunta: a matéria-prima de Farkas e a tecelagem mágica de Banjora. Um pouco de suas duas origens facilmente transportado em uma caixinha. 

O que dera a Yan era um dos mais bonitos, adornado com um requintado bordado cor de ouro. Tinha visto como ele e o lagarto endemoniado se digladiavam por conta do cabelo solto. Caso Yan se decidisse por prendê-lo, poderia fazê-lo com algo que o lembrasse de si. Pensando agora, devia ter soado como um grande tonto — por presenteá-lo com algo tão trivial — ou como um cafajeste, que devia carregar em viagens um pequeno arsenal daqueles — e essa parte nem mesmo chegava a ser mentira, mas raramente chegava a ponto de presenteá-los, de fato. 

Enquanto Yan ajeitava os cabelos, envolvendo as pontas das mechas com a fita, Oz desviou o olhar. E foi quando sua atenção caiu sobre Maali ao lado daquele diplomata

Por que a imagem o incomodava, não sabia dizer ao certo. 

Era bem verdade que sempre tivera rusgas com aquela amizade de seu pai em específico. Um instrutor de ópera bem relacionado demais, influente demais, e que sempre fizera questão de tratá-lo como um filhote, mesmo agora, quando já era carregado através das pontes como o futuro herdeiro de suas terras. Ser chamado de garoto por um diplomata era como entornar um gole de cerveja fermentada com demasiado lúpulo. 

Ver Maali comprando-lhe um presente trouxe de volta essa memória. Ainda bem que não trouxe nada para aquele chato, ou teria feito papel de bobo. Ele provavelmente nem agradeceria. Talvez o respondesse com um sorriso desgostoso de pura formalidade.

Já era presente demais que Tyr Maali tivesse ganhado semanas no Distrito por conta de sua visita. Aquele mosteiro isolado no topo de uma montanha de gelo parecia o lugar mais insalubre de toda aquela terra. 

— Oz — Yan puxou de volta sua atenção, tocando-lhe a curva do braço. Nyan, grudado ao seu lado, olhava com um indisfarçado interesse para o farkasiano. Yan tinha certeza de que sua mãe também, mas com olhos bem menos inocentes, bem mais vorazes. — Vamos chamar o Maali para contar uma das histórias sobre as festividades de hoje?

E mesmo que ele tenha feito careta e resmungado, Yan teve certeza de que Oz estava tão curioso para ouvir Maali quanto ele próprio estava saudoso da voz suave dele o levando para mundos de fantasia. 

A interação do pequeno grupo foi seguida pelo olhar atento de Amka por tempo suficiente para que ele se convencesse das suas próprias decisões. Ou para que elas parecessem menos suas, e mais de Maali. Ravi havia estado rodeado por líderes durante toda a cerimônia, até bem tarde da noite, mas foram Amka e o líder Tyr os primeiros a falarem a única coisa que lhe interessava ouvir naquela noite. 

— Nós temos uma resposta para a sua oferta, líder Farkas. 

Continua…

No próximo capítulo… De que oferta estamos falando? Parece que tem gente demais por aí discutindo o futuro dos outros…

O Capítulo 31  — Avisos que se repetem como eco chega em 8 de novembro às 12h!

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