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💫 Pontes Imortais ― Capítulo 29
Uma única frase rasgada
Sexta-feira é dia de:
a) alegria
b) happy hour (?)
c) FESTA NO VÓRTEX!
E hoje também é dia de relatório, mas não se preocupem porque Sênior Tyr já deixou ele no jeito!
No último capítulo… O roubo da oferenda de Silki causou calamidade em Banjora. A fofoca chegou até Nivaria junto com notícias das quais Oz não gostou nada: ele vai ter que ficar um tempo no frio, sendo educado na Academia Nivariana. Pelo menos, é mais tempo pras cantadas ruins pra cima do Yan e pra irritar Maali, né?
Música-tema do capítulo: Hero, do Monsta X (sigam a playlist oficial Pontes Imortais #2 no Spotify!
Capítulo 29 — Uma única frase rasgada
Nivaria, dois anos antes da queda da Cidade
Relatório de atividades n. 2133
Tyr Maali
Trigésimo terceiro tempo desde a balbúrdia chegada da comitiva pela Ponte
Palavras de interesse: indisciplina, insubordinação, indecência
Maali era o tipo de pessoa que controlava a intenção na pressão da caneta: leve para os bilhetes que deixava com Yan pouco antes de tomar o caminho gelado até a Cidadela da Neve Eterna; moderada, com letras de forma perfeitamente alinhadas, na correspondência oficial para os líderes dos monges caçadores.
A pressão era pesada em apenas duas situações. A primeira, para dar ênfase a situações emergenciais. Tinha sido usada apenas uma vez nos últimos tempos, quando um gigantesco fronteiriço se lançou do vórtex para cima da floresta, coberto por uma camada podre que deixava até mesmo a neve com um fétido rastro de morte.
A segunda situação na qual a pressão da caneta de Maali era forte o bastante para ameaçar rasgar o papel era quando ele perdia o controle das emoções, fosse por empolgação irracional ou uma raiva desmedida causada pelo esgotamento de sua paciência. Enquanto riscava rabiscos carregados sobre a palavra balbúrdia, Maali se xingava por ter sido tão tendencioso em um relatório. E percebia, para sua própria amargura, que era a primeira vez que sua paciência estava mesmo no limite.
Por causa daquele indomado.
Primeiro evento: da ocasião em que Uki Yan e eu acompanhamos Oz de Farkas em uma breve trilha de reconhecimento pelo bosque.
Nota de atenção: Farkasianos pensam que somos animais.
— Quando os lobos balançam o rabo desse jeito, é porque estão felizes.
A voz de Oz ecoava pela clareira em meio ao bosque, fazendo revoar pequenas nuvens de pássaros pretos. As asas desajeitadas batiam na neve acumulada sobre os galhos, derrubando-as lá de cima sobre a trilha. Uma bola atingiu a orelha boa de Maali, que automaticamente voltou a se virar para trás.
Era dele a cauda agitada. Se batia de um lado para o outro, impaciente, e tinha pelos tão negros quanto as penas daqueles pássaros. Ela se destacava contra as vestes brancas de caçador, assim como os longos cabelos escuros, cujo penteado destacava-lhe as tranças.
Em Maali, a cor ficava por conta da melanina da pele e do toque de geada no olhar sério.
— Nos parecemos com lobos? — ele questionou. Comandava o pequeno grupo alguns passos à frente.
— Você não — Oz concedeu. A voz baixa deixava evidente que não falava com Maali, mas com Yan, que caminhava ao seu lado. Tinha se abaixado um pouco para isso, aproveitando a diferença de altura como desculpa para chegar sempre um pouco mais perto quando falava. — Mas e ele, Nix? O que você acha? Merece entrar pro time dos lobos?
A loba gigantesca deu um uivo, patejando pela trilha, a própria cauda balançando no ar. Era felpuda e cheia. E, verdade fosse dita, se mexia da mesma forma que a de Maali.
A percepção fez Yan dar uma risadinha. Ainda que tivesse coberto a boca com a mão, o som atraiu a atenção de ambos.
— Ó, raposo, até o Yan concorda. O rabo igualzinho… — Oz não fez qualquer esforço para segurar a risada. O som que veio de Maali foi um rosnado de aviso.
— Maali, é uma bobeira inofensiva. — Yan o abordou.
Passando às suas costas, contornou o caçador e se desviou da trilha para adentrar o bosque de araucárias com o cuidado de pisar sobre a neve fofa para evitar escorregões.
Sabia que atrairia o olhar de Maali ao fazer isso, desviaria a atenção dele de Oz e suas provocações.
Para Yan, a dinâmica era tão óbvia que chegava a ser engraçada. Gostava do conforto daquele lugar, de estar acocorado para procurar pequenas raízes retorcidas pelo frio sabendo que tinha dois pares de olhos bem à sua nuca.
Os dois. Tinha a atenção de ambos. E estando na trilha, não havia criatura alguma com quem precisasse dividi-los.
— Eles são meio tapados — Shu comentou de seu esconderijo debaixo do cabelo de Yan.
O lagarto vestia um casaquinho mal-ajustado preso ao redor do corpo por um laço. Vergonhoso, como ele próprio havia dito, ainda assim mais digno do que morrer congelado de novo. Ele estreitou os olhos quando o comentário fez Yan sorrir.
— Você gosta…
— Essas raízes parecem mortas há quanto tempo? — Yan desconversou, erguendo a planta até a altura do ombro.
— E como eu vou saber? O curandeiro é você e eu sou um lagartinho, não algum tipo de oráculo. Pss — ele chamou.
Subitamente, tinha erguido o olhar para a copa das árvores. A revoada de pássaros tinha revelado uma grata surpresa: uma cumbuca com a aparência de uma gorda avelã. Se parecia muito com as sapucaias encontradas nas Cidades mais quentes. Aquela, natural de Nivaria, era conhecida pelas castanhas oleaginosas que se espalhavam de dentro do fruto aberto.
Se fossem boas como as sapucaias comuns, já seriam deliciosas, mas as nivarianas tinham a fama de serem especialmente saborosas.
— Ei, Yan! Não são aquelas castanhas que você disse que adora?
Yan ergueu automaticamente o olhar, fazendo a franja lisa se abrir em cortininha no meio da testa. Gostava de sapucaias de inverno. Não havia conhecido até então um único nivariano que não as apreciasse. Mas nunca tinha falado nada em especial sobre elas para Shu.
— Eu gosto.
— Eu pego pra você! — Oz gritou, se antecipando para passar à frente de Maali, seguido de Nix, que latia ao seu lado.
— Sai.
A voz de Maali foi séria e grave, um aviso bem pouco urgente, mas que veio seguido do som cortante da flecha. Oz rosnou em resposta, acompanhando o uivo irritado da grande loba.
O som acompanhou a flecha até que a ponta se fincasse no galho firme bem acima do fruto. Ele balançou, chacoalhando os galhos mais finos e secos e a cabaça recheada, sem derrubá-la.
— Você me atrapalhou — Maali pontuou, dando um passo para o lado, então armou uma nova flecha no arco.
— Ei! — Oz ergueu a voz. Em uma olhadela rápida, espiou Yan por cima do ombro. — Eu disse que vou pegar! Pode guardar suas flechas pros monstros do vórtex, caçador!
Yan tinha se acomodado sentado sobre um toco de pinheiro. Com o rosto apoiado na mão, ele acompanhava a interação dos dois com um sorriso discreto.
— Pega — concedeu Maali, antes do movimento breve do arquear de sobrancelhas — se for mais rápido que eu.
A segunda das flechas de Maali já estava armada no arco e direcionada ao destino quando o nivariano resolveu espiar Yan no canto por cima do ombro — um detalhe que era, em suas próprias palavras, parte de sua responsabilidade como encarregado pelo grupo, mas que mesmo assim fora deixado de fora da versão final do relatório.
Pegaria aquelas castanhas para ele. Não permitiria que Yan achasse que o deixaria passar fome em uma trilha de meia tarde. Não se preocupava com a interferência daquele farkasiano barulhento. Não havia qualquer chance de ele subir a árvore mais rápido do que a risca da sua flecha.
Quando olhou de volta para frente, entretanto, foi atingido por uma lufada de folhas bem no rosto. Com um rosnado surpreso, foi obrigado a sair da posição, a flecha caindo de uma das mãos e o arco pendurado na outra enquanto abanava as folhas velhas e quebradiças dos cabelos.
— O que significa isso? — questionou, impaciente, ao ouvir a risada do farkasiano.
— Ué, não tem treinamento pra isso?
Não havia. E não faria sentido haver treinamento na Cidadela da Neve Eterna contra ataques causados por completos idiotas, mas Maali ainda assim fez uma nota mental naquela tarde que transportou para o relatório:
Observação: incluir treino defensivo de curta distância contra elementos surpresa.
Motivo: Selvagens são imprevisíveis.
— Yan, olha só, ainda bem que eu estou aqui junto! — Oz ergueu a voz acompanhada de um sorriso largo. Um par de covinhas o adornava bem no meio das bochechas. — Nosso amigo quietão só é bom com flechas? Por que eu me viro de perto e… de longe!
— O grandão barulhento quer muito a sua atenção — Shu comentou, intrigado enquanto observava o próximo movimento de Oz.
Se abaixando no mesmo buraco na neve de onde tinha tirado as folhas velhas, ele sacou uma pedra. E a arremessou contra a cabaça.
— O quietão também — Shu completou, vendo como Maali sacou de volta o arco e o armou prontamente, com a ponta voltada para o trajeto que a pedra deveria fazer até o fruto.
A flecha, entretanto, nunca precisou ser lançada para bloquear pedra nenhuma. Da mão do herdeiro de Farkas, aquela foi arremessada no ar com uma força estrondosa, subiu em direção ao céu como um relâmpago e desapareceu em algum lugar bem longe no bosque.
Sem nunca passar sequer perto do destino.
— Você não tem mira — Maali pontuou, sério. Era muito mais uma observação do que uma crítica, mas foi a vez de Oz rosnar em resposta.
Seguindo o movimento fluido, Maali direcionou a flecha para o destino certo. E não deu chance para que Oz interrompesse mais uma vez o seu momento. A flecha cortou o ar num movimento perfeito, encontrando precisamente o pedúnculo que prendia o fruto, derrubando-o finalmente em um pequeno bolo de neve aos pés da grande árvore.
— Aí sim! Mandou bem! Eu gosto mais desse aí, Yan, o eficiente. Dá moral pra ele! — Shu mostrou a linguinha, erguendo a cabeça para espiar a sapucaia caída.
Maali abaixou o arco, orgulhoso. Sua expressão não dizia muito, mas por dentro estava sorrindo. Tinha sido ele, afinal — como era mais justo —, a conseguir as castanhas para Yan. Sua postura pareceu inabalável a princípio, mas quando seu olhar se virou em busca da reação do curandeiro, como se quisesse se certificar de que ele havia visto, Maali pareceu bem mais transparente.
— Yan! — Oz o chamou, rompendo aquele contato visual de sopetão antes que o sorriso de Yan pudesse ressurgir.
Depois de coletar do chão o fruto caído, Oz voltou a mostrar o sorriso, e os caninos afiados que tinha, pontudinhos como as orelhas que despontavam pelas laterais do cabelo. Em um único movimento, ele forçou o tampo do fruto. A cabaça estalou, trincando e cedendo em suas mãos, revelando um aglomerado de castanhas enrugadas.
Passou por Maali sem nem lhe oferecer um olhar, estacionando na frente de Yan já com uma castanha na boca antes de oferecer a ele a cabaça cheia.
— Pra você.
— O quê? — ressoou Maali, incrédulo. — Eu que peguei! É isso que ensinam em Farkas, a roubar a caça dos outros?
— Você não ia dividir comigo, Maali? — Yan perguntou baixo, uma sombra de sorriso delineada nos lábios, perfeita para quebrá-lo.
— E você nem ia conseguir abrir com esses braços fraquinhos de qualquer jeito — Oz acrescentou. O sorriso daqueles lábios eram uma curva bem menos sutil.
Maali ergueu as sobrancelhas, estudando brevemente a própria fisionomia. Mesmo que fosse esguio, ninguém nunca havia dito que tinha braços fracos. Não com os músculos de treino e os ombros largos. Foi como entendeu, depois de um momento de reflexão, que aquele farkasiano só o estava provocando. E revirou os olhos, em um gesto juvenil do qual não se orgulhava, antes de cruzar os braços.
Yan os observava atento. Com uma risadinha, tomou uma das castanhas para si e outra para o Shu, então juntou as mãos no ar, batendo uma sequência de palmas que atraiu de volta a atenção dos dois.
— Vocês se completam. Parabéns pelo trabalho em equipe.
Ele se colocou em pé, ajeitando as roupas e o capuz sobre a cabeça. Então passou por entre os dois, surrupiando mais uma das castanhas em um movimento delicado.
— Eu não teria provado essas castanhas deliciosas se estivesse sozinho. Vamos? Tá frio demais pra ficar parado.
Maali não era acostumado a dividir a atenção de Yan. Dividir, além dela, também os agradecimentos e as piadinhas era ainda mais indigesto. Que fosse com aquele tipo de criatura barulhenta não contribuía em nada com seu desgosto.
Mas Yan não tinha voltado a olhar para trás depois de passar por eles e avançava sozinho pela trilha principal. O caçador suspirou. Aquele curandeiro nunca tinha pedido ajuda para entrar no bosque. Ele próprio foi quem havia se oferecido, assim como Oz. Essa era outra camada do comentário de Yan, no fim das contas, o que dizia que a única coisa da qual ele teria sido privado na ausência dos dois teria sido um punhadinho de sementes.
Aquilo fez Maali sorrir. E então bufar quando seu olhar reencontrou Oz no caminho.
— Tenta não atrasar a gente mais.
— Não, pode deixar — Oz concedeu com um movimento displicente de ombros. — Yan, você ouviu? A raposa vai ficar na retaguarda. Eu vou na frente com você!
Segundo evento: de quando Oz de Farkas foi submetido a disciplina por comportamento incompatível.
Nota de atenção: farkasianos não são treinados em tarefas básicas.
— Nós temos um lugar assim lá em Farkas. Se chama A Casa de Repouso.
— É um prédio de estudos?
— Uma sala de castigo, bem chata.
Oz riu. Tinha subido até o último degrau da escada móvel portando esfregão e balde. Olhando lá de baixo, Yan teve a sensação de que se estivesse usando o largo crânio de lobo como adereço, Oz já teria batido a cabeça no teto alto do prédio.
Não era assim que a limpeza era feita nas demais áreas da Cidade. Nivaria empregara tecnologia básica para realizar tarefas como aquela, o que permitia às pessoas mais tempo para se dedicar aos estudos e à aplicação deles. Se Oz estava agora trepado em uma escada e carregando um esfregão, isso deveria ser coisa de Maali. Yan podia pensar em algumas regras quebradas que renderiam esse tipo de punição.
— Eu estudo aqui, sabia? — Yan achou de bom tom pontuar.
Era raro, em Nivaria, que um aluno tecesse críticas tão diretas à Academia ou ao seu propósito. Não eram criados para ver a sabedoria como uma chatice, a aquisição dela como um castigo.
— Sério? Te fazem passar por isso também?
Oz tinha um jeito manhoso de falar que o dava tons mais juvenis. Yan sabia, entretanto, de que ele era pouca coisa mais novo do que Maali, com apenas alguns anos a mais do que ele próprio.
A facilidade com que o farkasiano abandonou a tarefa também entreteve Yan. Deixando o esfregão apoiado no lustre e o balde carregado sobre o topo da escadinha, Oz pulou de volta para o chão e ajustou a fita que prendia os cabelos. Não era nada ordenado, com mechas caindo ao redor do rosto de um jeito divertido. Combinava com ele em cada detalhe.
— Foi uma escolha minha ser curandeiro. — A doçura na voz de Yan tinha ganhado um tom novo na frente dele. A cada dia, era mais parecida com a voz que ele reservava antes apenas para Maali. Até mesmo Shu já tinha notado. E fazia questão de espetar levemente as unhas na nuca dele sempre que ele usava aquela voz na frente de uma criatura tão barulhenta quanto aquele farkasiano.
Era rico, pelo menos. E de família influente. O coração de Yan parecia fazer escolhas muito pontuais.
— E aposto que você é o curandeiro mais foda deste lugar — Oz ofertou, com um sorriso largo. — Além de ser o mais bonito.
— Sério? — Shu entoou indignado, sendo atingido por um movimento dos cabelos de Yan.
— Eu tento ser foda — Yan respondeu, desviando o olhar para as mãos enquanto sentia o gosto daquela palavra que nunca tinha usado abertamente. E então voltou a encarar os olhos castanhos de Oz. Uma das mechinhas soltas do cabelo dele insistia em cair sobre o olho. Um pouco mais e Yan tomaria a liberdade de ajeitá-la com a própria mão. — A outra parte, eu vou precisar ser lembrado.
— Yan. — A voz séria de Maali fez Yan dar um passo para o lado, o corpo girando no eixo para ficar de frente para ele, então pôde ver o embrulhinho na mão dele. — Tinha esperança de te encontrar. Para você.
A fita que fechava o pequeno embrulho era azul como um lago nos dias de degelo. Yan a puxou e abriu, revelando um pãozinho no formato de uma folha. O cheiro de leite doce que exalava da massa era uma das lembranças mais nostálgicas da aproximação da Festa de Luzes.
— Eu achei que você tinha esquecido este ano — Yan rebateu, a voz tão doce quanto mel enquanto segurava o presente nas mãos.
— Do seu favorito? Eu não esqueço.
— Sabia que, em Farkas, esse tom de azul é reservado só para a família de líderes? — Oz fez questão de comentar.
— Vocês clamaram posse sobre uma cor tão básica? — Shu cutucou, limpando a garganta.
— Terminou suas tarefas?
A falta de sutileza com que a voz de Maali retomou o tom oficial fez até mesmo Yan ficar mais sério. Não Oz. Ele parecia imune a qualquer tipo de autoridade.
— Relaxa, eu já vou terminar — ele disse, erguendo os ombros.
Maali contornou Yan, absorvendo os detalhes da cena: o balde na escada, o esfregão apoiado no lustre, a mecha solta do cabelo de Oz deixando-o com uma aparência irritantemente adorável. Quando o olhar chegou ao teto translúcido da estrutura de caracol da construção, Maali fez uma careta.
Estava imundo.
— Você não tem qualquer noção? — perguntou, o tom se erguendo só um pouco, como as curvinhas laterais do nariz quando franziu a testa. — Não ouviu quando listei quais materiais deveriam ser usados para a limpeza do vidro?
— Pano macio embebido em mistura suave, movimentos circulares curtos, trocar a água.
Oz ergueu os dedos um por um, enquanto recitava quase perfeitamente as mesmas palavras que Maali havia usado quando tinha passado as instruções, ainda que não visse na cena nada perto do que o farkasiano deveria estar fazendo.
— Você não conhece essas palavras? — Maali questionou.
O vidro tinha marcas das cerdas do esfregão, do movimento de vai e vem que aquele indisciplinado havia usado na limpeza, tinha trechos manchados de produto.
— Ah, tá ficando bom, vai! Você nem ia notar que eu não usei o pano se não tivesse visto. — Oz cruzou os braços, virando o rosto para evitar encarar a expressão chocada do nivariano. — Tá vendo, Yan? Ele encrespa com qualquer coisa.
— Você vai ter que recomeçar. Nós não vamos sair daqui até ter isso limpo.
Yan parou no meio da mordida. A cobertura do pãozinho tinha melado seu lábio, deixando um sabor doce espalhado pela pele. Passou a língua entre os lábios bem quando Oz fazia o mesmo movimento. Pela expressão no rosto do farkasiano, o gosto das palavras de Maali tinha sido bem mais azedo.
— Quem você acha que é pra falar comigo como se eu fosse um leva-e-traz abobalhado? Eu sou o herdeiro de Farkas!
— Você não está em Farkas! Não me importa quem você é — Maali começou incisivo, então se deixou voltar para a calmaria. — Vou buscar o pano.
Ele se virou com ênfase. A longa cauda preta e felpuda bateu acidentalmente contra a escada.
Sozinha, nunca teria causado comoção alguma, mas a vibração suave da escada foi o bastante para desequilibrar o esfregão recostado contra o lustre, fazendo-o cair sobre a boca do balde e virando o conteúdo líquido de uma vez no chão.
Maali se esquivou rapidamente para o lado, recolhendo a cauda contra o corpo para evitar que fosse alvejada pela mistura. O cheiro era tão forte que ele não teve dúvidas de que era apenas a mistura de limpeza pura, sem ser diluída em água nenhuma. Aquele indisciplinado devia ter pensado que o produto concentrado seria melhor do que diluído, outra dedução errada que ia contra todas as suas cuidadosas instruções.
— Oz… — começou, mas foi interrompido.
— Ei, cuidado com o rabão derrubando as coisas — Oz resmungou, interrompendo-o. Voltou a cruzar os braços, pulando uma poça de produto para voltar a se aproximar de Yan. — Ele vai achar um jeito de botar a culpa em mim, fica vendo. Ei, Yan! — Seu sorriso se alargou, ignorando o teto manchado e a explosão molhada no chão. — Posso provar esse bolinho?
Observação: Teto e chão do salão de eventos da Academia foram limpos por mim para manter o padrão. Assumo a responsabilidade por tomar o caminho menos cansativo.
Observação complementar: Ele disse que nosso pão doce de nozes tinha gosto de amendoim.
Terceiro evento: da minha tentativa de apresentar um pouco da nossa cultura.
Nota de atenção: nosso conhecimento cultural deve ser exercitado para aprimoramento social.
O centro de cada casa nivariana era ocupado pelo forno — o coração. A casinha onde Uki Yan ficava quando não queria encarar a estrada gélida até o Distrito fugia à regra. Era bem menor do que os aposentos destinados às visitas ilustres vindas de outras Cidades — onde a família Farkas, com exceção de Oz, fora alocada — e a residência dos Tyr, onde Maali havia morado antes de se tornar monge.
A casa era a única herança que o pai de Yan havia deixado. Pequena e arrumada, era comum e central demais para agradar sua mãe, mas uma ajuda de ouro para que Yan pudesse se dedicar aos estudos no Distrito, sem ter que seguir a trilha todas as noites — embora ainda o fizesse com bastante frequência por conta de Nyan.
— Maali, você pode sentar? Vou ficar zonzo com você andando assim.
Era a terceira volta que Maali dava. No ambiente arredondado e miúdo, sua inquietação ficava mais óbvia.
— Você não me disse em que posso ajudar.
— Pode ajudar não atrapalhando! — Shu reclamou do canto perto da quina. Yan tinha ajeitado naquele canto uma almofada gordinha cuja capa era enfeitada com bordados simples.
Tinha sido um presente de Nyan. As pétalas das flores tinham ficado um pouco tortas, mas tinham sido as primeiras dele. E ele fizera questão de que seu primeiro bordado fosse um presente para Yan.
Era um dos únicos objetos pessoais que fazia questão de carregar sempre na bolsa de viagem, e que agora também era algum tipo de cama para o lagarto linguarudo.
Maali franziu a testa ao encarar Shu, mas então esperou, de braços cruzados, que a resposta viesse de Yan.
— Eu já te disse — o curandeiro riu. — Senta. Foi um convite meu, não foi?
Mais do que as palavras, foram os gestos de Yan que o convenceram a se sentar. Ele tinha chegado perto o bastante para descansar levemente a cabeça em seu braço, o cheiro de folhas dos cabelos inundando as narinas de Maali e o fazendo perder a postura de guarda. Maali tinha a sensação de que Yan lavava os cabelos com ervas diferentes dependendo da ocasião. A da vez era camomila.
— Quase não te vejo fora das épocas de festa — Yan resmungou, com um tom manhoso que fez arrepiar os finos fios da nuca de Maali. — Desde que você começou seu treinamento na Cidadela, tem cada vez menos tempo pra passar com pessoas do Distrito. Às vezes, eu até acho que vai acabar esquecendo de mim.
— Não vou — garantiu Maali, com uma seriedade que fez Yan sorrir.
O ambiente tinha um cheiro bom de farinha. Quando Yan voltou a se aproximar, tinha nas mãos uma tábua grossa. Sobre ela, um pão recém-assado, polvilhado com pedacinhos de castanhas. A casca que se formava sobre ele ainda estava pálida demais. Podia ter ficado alguns minutos a mais no forno. O erro só mostrava a Maali como até mesmo Yan sentia uma ansiedade que não demonstrava. Gostava de saber que ele a sentia consigo.
— A receita é do Nyan, imagino — Maali ergueu os cantos dos lábios. — Parece ótimo.
Yan pousou o pão sobre uma mesa baixa antes de se acomodar ao lado de Maali no chão, sobre uma das almofadas de casa.
— É uma comemoração — ele concedeu — à vinda dos farkasianos pra cá. Por causa deles, você ficou no Distrito e eu tive mais tempo com você.
Maali tinha começado uma reação bem diferente com a primeira frase de Yan, uma careta desgostosa que foi convertida rapidamente assim que ouviu o complemento.
— Você gosta de farkasianos — Maali provocou, tomando coragem para colocar a mão sobre a de Yan, o olhar baixo sobre a tábua de pão para evitar que ele visse como suas palavras o deixaram desnorteado.
— Não de todos eles — Yan confessou, deixando o silêncio que seguiu trazer o olhar curioso de Maali de volta para ele. — Ele é divertido, você não acha?
— Não me atentei — retrucou Maali bruscamente. E então se inclinou para sentir o aroma do pão ainda quente.
Era grande e fofo, o cheiro de nozes misturando-se ao de farinha assada e fermento. Aquele cheiro sempre o lembrava de Yan e Nyan, e das coisas grandiosas das quais frequentemente pensava em abrir mão, se pudesse ser parte daquela família. De perto, a camomila dos cabelos de Yan se misturava àquele aroma. Maali pensou que tinha encontrado sua nova combinação de cheiros favorita.
— Posso cortar? — Maali perguntou, tomando nas mãos a faca serrilhada que ocupava a lateral da tábua. Então sorriu, tentando perder um pouco mais da postura oficial. — É um pão bem grande só pra nós dois e um lagarto.
— Yan! — A voz potente vinda do lado de fora da porta fez as orelhas de Maali se voltarem automaticamente para trás. — Cheguei!
— E o momento, amigos, é simplesmente insuperável — entoou Shu, erguendo a cabecinha para espiar melhor a cena. — Ei, raposo! Corta logo essa delícia. Vamos comer antes do barulhento acabar com tudo.
— Posso pegar mais um pedaço?
A voz de Oz rompeu mais uma vez o silêncio na casa. Aquele era um padrão que Maali já tinha memorizado: todas as vezes em que o silêncio crescia, ele voltava a falar, como se precisasse ocupar cada pequeno espaço com sua presença, até mesmo aquele.
Maali notava que Oz já havia ocupado o seu espaço. Invadido, para ser mais preciso. Tinha pensado nisso sem pausas enquanto o via devorar todo o pão, sentado ao lado de Yan. A mão de Oz espalmada no chão perto do curandeiro o aborrecia ainda mais.
— É o último — Yan anunciou com um sorriso.
A última fatia de pão era um naco gordinho da ponta, com um buraco no miolo de onde Shu tinha surrupiado alguns pedaços. Oz contemplou o resto de pão com um sorriso que murchou assim que o pegou. A gorda fatia era pequena na palma de sua mão larga.
— Você comeria mais? — Yan perguntou, entretido. — Eu deveria ter feito dois.
— Você pode fazer mais? — ele pediu. A falta de tato atraiu uma encarada feia de Maali. O monge nunca soube se foi em resposta a ela ou por um lapso de noção que o farkasiano completou: — Ou eu posso fazer alguma coisa! O raposo ali quase não comeu nada. Deve estar com fome, ou vocês todos têm estômago de passarinho aqui?
— Pra combinar com o seu cérebro — Shu provocou, emburrado. Subiu no prato de pão, recolhendo as últimas migalhas junto com um pedacinho de noz, que enfiou de uma vez na boca.
— Shu — Yan pediu, torcendo para que o lagarto o concedesse uma noite de paz. — Oz não precisa cozinhar nada. Eu tenho biscoitos. Mas vou querer ver o tipo de comida farkasiana que você prepararia com os nossos ingredientes, uma outra noite.
Um convite. Um convite para jantar. E tinha sido tão casual, espontâneo, tão íntimo. Maali acompanhou com o rosto em chamas o movimento da cauda de Yan conforme ele andava até a cozinha. O que ele via naquele farkasiano que não tinha visto nele? Era mais apropriado, melhor guerreiro, mais versado, tinha melhor postura.
— Eu posso cozinhar também — disse, antes que pudesse se conter.
— E eu adoraria isso — Yan respondeu.
Da cozinha, voltou com um embrulho de biscoitos decorados, comprados na cidade. Pegou um punhado, colocando nas mãos de Maali antes de tocar seus cabelos perto da orelhinha ferida. Maali achou que o forno o tinha deixado tão aquecido que seus ombros ficavam meio moles. Não relacionou a sensação com o toque gentil de Yan, assim como nunca notou todas as vezes em que havia jantado com ele — a seu convite — sem se dar conta.
— Yan, quer ver um negócio legal? — Oz perguntou assim que Yan voltou a se sentar entre os dois. Maali pensou que era realmente notável que ele não tivesse levado mais do que um instante para estar todo ao redor de Yan novamente, como uma criatura aquática de uma dezena de braços. Suas orelhas se voltaram mais uma vez para trás.
Oz tomou entre os dedos um dos biscoitos, passando-o de uma mão para outra de forma teatral até fazê-lo desaparecer. Maali ergueu as sobrancelhas. Aquele truque era mais velho do que a própria fundação de Nivaria. Não havia uma festividade em que não houvesse ao menos um ancião fazendo esse tipo de mágica fajuta para impressionar as crianças. E mesmo dali de onde estava podia ver a sombra do biscoito escondido atrás de seus dedos. Ele nunca seria capaz de impressionar Yan com algo tão mundano. Se permitiu um sorriso, aguardando a vergonha cair sobre o farkasiano.
Depois de fazer o biscoito sumir, Oz fingiu recuperá-lo de trás da orelha arredondada de Yan. A cara de bobo que fez ao mostrá-lo era bonitinha, mas nem mesmo aquelas covinhas poderiam salvá-lo daquela vez.
Maali demorou a notar que havia algo de diferente. O biscoito, antes moldado no formato de um bonequinho, exibia agora seu corpo arredondado sem a cabeça. Oz abriu a boca, mostrando a cabeça do boneco de biscoito já sobre a língua. Não importava o quanto repassasse a cena, Maali não fazia ideia em que momento aquele grande bobalhão tinha quebrado o biscoito, muito menos quando o levou até a boca.
Suas orelhas ficaram ainda mais na horizontal quando ouviu Yan rir um riso espontâneo. Aquilo não era deboche, não era para causar embaraço. Era divertimento.
— Você é uma graça — Yan disse baixo, se inclinando para presentear Oz com um beijo no rosto.
Maali ficou desnorteado.
Era disso, então, que Yan gostava? Não postura ou honra, habilidades ou cultura. Disso.
Tudo bem. Se aquele era o jogo, então o jogaria. Tinha a cartada perfeita.
— Yan — chamou, esperando que a atenção do curandeiro pousasse sobre si. — Eu memorizei uma piada.
— Isso vai ser uma experiência — comentou Shu de perto dos biscoitos.
Yan o olhou pelo canto dos olhos em reprimenda antes de dedicar toda a atenção a Maali.
A expectativa de Yan, acima de tudo, foi o que começou a azedar seu plano.
— Toc toc — Maali começou. E a sala mergulhou em silêncio. — Esqueci de dizer. Yan, você precisa perguntar quem é. Toc toc.
— Quem é? — perguntou ele baixo.
— Um ata-
Morta no ar, a frase mais uma vez permaneceu sem resposta. Maali mordeu o canto do lábio.
— Pergunta “ata quem” — ele sussurrou.
— “Ata” quem?
— Ataque Fronteiriço interceptado pela guarda.
Foi Maali o primeiro a esboçar um sorriso de reação que logo morreu. Em Yan, a expressão ainda sustentava um sorriso perdido.
— Não é engraçado? — perguntou o caçador.
— Rapaz, aí você buscou a humilhação — foi Shu quem respondeu, balançando a cabeça antes de enfiar na boca mais um grande pedaço de biscoito.
O silêncio era humilhante. Maali queria ter qualquer controle sobre o tempo, assim poderia voltar nele e nunca ter se arriscado em algo que claramente não sabia fazer. Tinha tentado, entretanto. A ideia de perder Yan para um farkasiano, antes apenas um absurdo, agora parecia se desenrolar na sua frente como um pesadelo.
— Eu acho que não… — começou Yan, com a voz suave.
— Entendi! — Oz gritou, agitado. — “Ata” porque o ataque foi interceptado no meio!
Maali assentiu, as orelhas tão firmemente voltadas para trás que chegavam a ficar enrijecidas. Tinha tido a decência de deixar o arco na porta de casa para não carregá-lo no ambiente como um guarda a trabalho, mas não teria problema nenhum em pegá-lo de volta se aquele farkasiano tentasse ridicularizá-lo na frente de Yan.
— Porra, essa é nova! — ele disse, antes de explodir em uma risada tão alta que poderia ter levado Maali junto, não fosse aquela situação. — Muito boa! Mas seu jeito pra contar histórias pode melhorar, raposo. Um pouco de prática, talvez.
— Ele é incrível contando histórias — Yan interrompeu.
Incrível, ele tinha dito. Era outro momento em que Maali queria controlar o tempo, assim poderia ouvir o elogio de novo.
— Sério, Oz. Não piadas, mas histórias, contos passados de boca em boca pelas gerações. Vai ser novidade pro Maali também, mas quando eu era novo, eu imaginava todos os príncipes e guerreiros das histórias com a cara dele, porque era ele quem contava a maioria delas.
Yan abaixou a cabeça. Maali quase teve o impulso de perguntar se ele estava bem. Foi só quando Shu apontou com um riso que se atentou para seu rosto corado.
Nunca tinha visto Yan tímido.
Sorriu. Rubor era mais raro do que uma risada e, portanto, mais valioso.
Tinha vencido, no fim das contas, mas não diria isso em voz alta ou Yan poderia tomá-lo por um grosseiro.
Mas era a realidade: tinha vencido. E a única coisa que o impediu de guardar essa informação para esfregar na cara do farkasiano em algum momento foi o fato de que ele riu da sua piada.
Por esse detalhe, concederia que estavam empatados.
Observação: Farkasianos têm uma risada bonita.
Rasgou a ponta da página com a última anotação e guardou no próprio bolso. Aquele era um lembrete para si mesmo, não para os relatórios.
Continua…
No próximo capítulo… É a noite da Festa de Luzes, uma das principais festividades nivarianas. Venham à caráter!
O Capítulo 30 — Não se esqueça do presente chega em 1 de novembro às 12h!
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