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đŸ’« Pontes Imortais ― Capítulo 28

Nossa terra e seus segredos

Excelente sexta pra vocĂȘs, humanos do VĂłrtex! Seu coelhinho vortexiano favorito chegou com capĂ­tulo novo de Pontes Imortais!

No Ășltimo capĂ­tulo
 A comitiva farkasiana atravessou a ponte em segurança atĂ© Nivaria (para completo choque e horror de nosso querido Maali). Pra completar, um jovem Oz parece muito interessado por Yan jĂĄ de cara — e bem pouco propenso a dar atenção a um caçador, o que Ă© recĂ­proco! Como vamos evoluir disso para noivado ainda nĂŁo foi revelado, mas nossa caminhada “romĂąntica” começa agora!

MĂșsica-tema do capĂ­tulo: Untamed, de Lindsey Stirling (sigam a playlist oficial Pontes Imortais #2 no Spotify!

Capítulo 28 — Nossa terra e seus segregos

Nivaria, dois anos antes da queda da Cidade

O centro comunitĂĄrio seguia o mesmo padrĂŁo circular das construçÔes do Distrito. Suas paredes feitas de vidro refletiam a paisagem externa sem dar qualquer sinal do que acontecia no interior e o telhado cĂŽnico — agora coberto por uma fina camada de neve que em pouco tempo viraria ĂĄgua a ser coletada pelo sistema de calhas inteligentes — apontava para o cĂ©u vermelho-azulado como um dedo acusatĂłrio.

Aquela era a ponta da maior das espirais que formavam o Distrito, rodeada por construçÔes menores que pertenciam ao clĂŁ Tyr. 

Em Nivaria, a liderança nĂŁo pertencia a um clĂŁ, mas a muitos, cada qual especializado em algo essencial para a manutenção da Cidade. Orgulhavam-se de formar laços tĂŁo robustos entre si que o peso de estarem prĂłximos demais do vĂłrtex distribuĂ­a-se pelos ombros de todos, de forma que a geografia local nĂŁo representava mais do que uma pequena inconveniĂȘncia. 

No entanto, mesmo lugares assim tinham seus discretos favoritismos: os Tyr foram brindados com magia. NĂŁo tanta que acabasse por tornĂĄ-los ditadores, mas o bastante para que se destacassem. 

Quando os jovens monges finalmente recebiam permissão para caçar, eram os anciÔes Tyr que se deslocavam até os amplos salÔes médicos da Cidadela da Neve Eterna, carregando estojos com ossos afiados que serviriam para escarificar suas peles, preenchendo-as com runas e símbolos de proteção contra os fronteiriços. A isso chamavam firmar o Chamado.

TambĂ©m era dos Tyr a fagulha de magia que ajudava a ligar os autĂŽmatos pela primeira vez ou que mantinha em funcionamento o gigantesco relĂłgio de neve na base de Espinho de Cristal, que marcava o Tempo de Aurora e ajudava os nivarianos a saber se teriam pouca ou muita luz disponĂ­vel, e quando o degelo estava se aproximando — detalhes essenciais em uma terra em que tudo parecia funcionar Ă s avessas. 

Por essa razĂŁo, quando Maali, o filho mais velho dos lĂ­deres, começou a crescer sem carregar uma gota de magia sequer, houve uma grande comoção. Os demais lĂ­deres, antes interessados em firmar contratos de casamento entre as famĂ­lias, foram pouco a pouco declinando da ideia — e foi com grande alĂ­vio que todos viram Maali partir para a Cidadela, e depois firmar a ideia de se tornar um monge. 

De que lhes serviria um Tyr se nĂŁo era mĂĄgico o bastante, afinal? 

Era justamente sobre magia que os lĂ­deres conversavam naquele momento, reunidos em uma sala tĂŁo aquecida que os farkasianos puderam se livrar das camadas de casacos e peles que usavam sobre as tĂșnicas. 

O grupo reunia-se em um grande cĂ­rculo, o que Ravi achou bastante ingĂȘnuo da parte dos nivarianos. Aquela irritante tentativa de tratar todos como iguais era o que fazia deles um bando de molengas dependentes da tecnologia. 

— O banjoriano que roubou a oferenda
 — começou o lĂ­der Tyr, que mergulhara em um silĂȘncio reflexivo desde que Ravi havia contado novamente sobre o incidente em Banjora. — Quem era, lĂ­der Farkas? 

— Um dos responsĂĄveis pelos Jardins Suspensos de Silki, Ă© tudo o que podemos imaginar — Ravi retrucou com uma expressĂŁo carrancuda. — JĂĄ que a equipe inteira foi assassinada pelo prĂłprio Silki poucas horas depois de a oferenda ser roubada. 

— O que nos deixa com bem pouco espaço para conclusĂ”es
 — Amka tomou a palavra, inclinando-se sobre o braço da poltrona para tocar o ombro do marido em um carinho. Tinha sentado ali como a mais informal das criaturas. — A imprudĂȘncia dos Imortais nos coloca em situaçÔes complicadas, Ă s vezes. 

O lĂ­der Tyr concordou com um aceno quieto, pousando os dedos sobre os de Amka para retribuir o carinho do marido. 

— Suponho que mesmo depois disso as coisas nĂŁo tenham se normalizado. 

— Nem parece haver previsĂŁo de que irĂŁo
 — Juno confessou. — Silki lacrou as portas de todos os templos e pequenos oratĂłrios, escondendo nossos sacerdotes de nĂłs para que nĂŁo pudessem nos ajudar. As fiandeiras tentaram apaziguĂĄ-lo com oraçÔes sobre os bastidores de bordar, mas suas linhas se rompem antes que consigam completar o menor dos desenhos. 

— Os Imortais que vivem depois da Ponte me assustam mais do que os Fronteiriços — Mestre Inua comentou, chamando a atenção de Ravi, o que parecia ser bem a sua intenção porque pousou os inquietantes olhos de geada sobre o farkasiano. — Diga, lĂ­der Farkas: todo esse caminho atĂ© Nivaria e por quĂȘ? 

— Tecnologia — foi lĂ­der Tyr quem respondeu. Desde a chegada do Senhor Instrutor, Uka revirava a questĂŁo na cabeça, embalado pelos beijos do marido. 

NĂŁo tinham terras fĂ©rteis o bastante para abastecer Banjora com qualquer coisa que pudesse virar material tĂȘxtil. Tampouco um sistema mĂĄgico capaz de lidar com o caos de um Imortal furioso. Tinham, contudo, tecnologia: mĂĄquinas que dependiam tĂŁo pouco da magia que poderiam ser uma solução de longo prazo — uma forma de driblar os Imortais. 

Pelo brilho lupino nos olhos de Ravi, estava certo. 

— Farkas Ă© nossa cidade-irmĂŁ, Ravi. — Uka abandonou a postura grave, em parte estimulado pelo olhar desorientado de Juno. — E nossas vidas estĂŁo entrelaçadas hĂĄ tantas geraçÔes que Ă s vezes Ă© difĂ­cil saber onde termina um nivariano e começa um farkasiano. Por isso o meu coração doi. Porque hĂĄ bem pouco que podemos fazer nesse sentido. A tecnologia de Nivaria nĂŁo Ă© produzida em larga escala, mas de acordo com nossas necessidades. 

— AlĂ©m disso — Mestre Inua tomou a palavra — o material que trazemos de MinĂ©ria para desenvolver nossos equipamentos reage com a magia da ponte. Nossos estudos indicam que transportĂĄ-lo em grandes volumes poderia fazĂȘ-la ruir.

Ravi absorveu aquele nĂŁo disfarçado em palavras bonitas enquanto observava a fumaça doce que escapava das bebidas que tinham recebido, uma mistura de creme de leite espesso salpicado com canela e pimenta. 

NĂŁo havia uma gotinha sequer de ĂĄlcool para ajudĂĄ-lo a engolir sua frustração. Tinha trazido um Ășnico lobo consigo para dentro da sala, um macho robusto de pelagem escura cujos olhos arredios davam-lhe a aparĂȘncia de uma criatura pronta para o bote. O animal rosnou baixo, reagindo Ă  impaciĂȘncia do lĂ­der.

— Podemos ceder alguns de nossos tĂ©cnicos — o lĂ­der Tyr concedeu apĂłs outro momento de silĂȘncio — para que se instalem em Banjora e desenvolvam algum projeto emergencial. Fora de Nivaria, nĂŁo somos capazes de fazer nada muito elaborado, mas temos mĂłdulos de criação portĂĄteis que devem servir para produzir pequenos teares e mĂĄquinas de costura. Isso deve ajudar a escoar um pequeno pedaço da produção atĂ© que Silki se acalme.

— E se ele nunca se acalmar? 

A pergunta veio de Juno, aterrorizada feito o assobio do vento entre as folhas naquele ponto em que a escuridĂŁo se alonga atĂ© se esgarçar, sem trazer qualquer esperança de que haverĂĄ luz novamente. Os nivarianos tinham um nome para aquela sensação: solifania. A voz de Juno estava carregada daquilo, por isso os olhos de todos os lĂ­deres se voltaram para ela. 

— EntĂŁo talvez seja a hora — Ravi disse, ocupando o vĂĄcuo da esposa como se a tristeza dela nĂŁo fosse nada alĂ©m de uma oportunidade — de assumirmos as rĂ©deas da situação.

Mestre Inua acompanhava sua postura como um observador atento. Ele sabia que o que fazia bons caçadores não eram as habilidades para capturar muitas presas, mas seu dom para enxergar a história por trås dos pequenos sinais. Via perfeitamente a postura de predador em cada pequeno sorriso presunçoso de Ravi.

Aquela gente estrangeira e seus deuses eram mesmo tĂŁo peçonhentos quanto Niva tinha advertido. Inua era uma voz quase solitĂĄria naquele front porque a dependĂȘncia que tinham de Farkas havia amaciado os coraçÔes dos lĂ­deres.

NĂŁo o seu.

— O que quer dizer, líder Farkas? — estimulou, servindo-se de mais um gole de bebida, embora o leite contra a língua não tenha parecido tão doce quanto esperava.

— Quero dizer que a tecnologia nivariana pode atravessar a ponte em livros e mentes pensantes, e se espalhar pelas outras Cidades, da mesma forma que as caixas de frutas e legumes farkasianas alimentam o povo de Nivaria.

— A tecnologia de Nivaria nĂŁo estĂĄ Ă  venda, Ravi — Amka comentou, tranquilo. — Por que Ă© o que fazemos com suas frutas e legumes, nĂŁo Ă©? ComĂ©rcio.

— E isso nĂŁo me parece razoĂĄvel, Amka! — Ravi bradou com indignação, buscando apoio nos outros lĂ­deres, mas sĂł alguns pareceram inclinados a lhe dar algum crĂ©dito.

De sĂșbito, aquela sala estava quente demais. O lĂ­der farkasiano bufou e seu lobo de companhia deixou escapar um latido de aviso, mas antes que pudesse arreganhar os dentes, sapateou para trĂĄs com um ganidinho, escondendo-se atrĂĄs dos joelhos de Ravi.

KuĂ­ acabara de se levantar.

Movia-se de um jeito gracioso, os cachos presos em duas grossas tranças embutidas que tocavam-lhe as escĂĄpulas. Como um bom mestre de picadeiro, nĂŁo precisava se esforçar demais para atrair a atenção do pĂșblico.

— Mestre Inua tem razĂŁo sobre os Imortais — comentou, espiando o mundo lĂĄ fora atravĂ©s do vidro. Sua voz baixa e sibilante sugeria o  tipo de segredo que vem antes de uma rebeliĂŁo. — SĂŁo tĂŁo inconstantes que podem nos punir se acharem que deixamos de respirar do jeito certo. Todos os jardineiros foram punidos pela audĂĄcia de apenas um deles. Um grupo inteiro de jovens aprendizes banjorianos foi soterrado por pilhas de tecido perfeitamente posicionados. Fiandeiras tiveram os dedos decepados por linhas de tecido macio
  Todos sabemos na conta de quem estĂŁo essas situaçÔes, e nenhuma delas foi um acidente.  

Aquilo parecia ser um ponto sensĂ­vel para Juno, que cobriu os lĂĄbios com os dedos finos a fim de conter um suspiro dolorido. Amka inclinou-se em sua direção sussurrando condolĂȘncias que ela recebeu com acenos silenciosos.

— Do outro lado da ponte o mundo funciona com magia, mas jĂĄ estĂĄ claro que nĂŁo Ă© a Ășnica coisa em que podemos confiar — KuĂ­ disse depois de dar a Juno algum tempo para se recuperar. Mais uma vez, parecia saber o momento certo para se armar de seriedade. 

— Niva nos abençoou com conhecimento e conselhos, Senhor Instrutor, e isso nĂŁo Ă© sequer um segredo. — O olhar circunspecto do lĂ­der Tyr abrangia a sala, seus pares e um agastado Ravi. — SĂŁo ordens que seguimos desde sempre, e que garantem a manutenção de Nivaria. Nossa Cidade funciona atravĂ©s de regras bastante restritas e nĂŁo nos cabe quebrĂĄ-las justamente agora. 

Nivaria equilibrava-se sobre grandes manuais de conduta cujas instruçÔes eram lidas todos os dias para os monges em treinamento, recitadas nos salĂ”es comunitĂĄrios, repetidas aos ouvidos dos bebĂȘs para que desde cedo soubessem sobre a mais dura das verdades: eram sobreviventes. E nĂŁo durariam um dia contra a brancura agreste de Nivaria se nĂŁo fossem disciplinados. 

— As suas regras os impedem de prestar socorro a uma cidade-irmĂŁ, portanto — Ravi fez pilhĂ©ria. 

— De forma alguma. — Uka balançou a cabeça. Ao contrĂĄrio de Ravi, o lĂ­der Tyr parecia incapaz de perder a paciĂȘncia. — Vamos ajudĂĄ-los com todos os recursos que pudermos, e nossas regras podem nos aproximar mais do que afastar, Ravi. Lembre-se disso. 

De seu canto, KuĂ­ brincava com a estola de pele de raposa que usava sobre os ombros como se carregasse uma cobra.

— A tecnologia nivariana sĂł pode ser compartilhada entre nĂșcleos familiares de Nivaria — ele cantarolou, olhando na direção de Mestre Inua. — É isso que diz sua tradição, Mestre, estou certo? 

O monge assentiu. Se desconfiava de Ravi, tinha ainda menos razĂ”es para dar crĂ©dito a uma diplomacia sem raĂ­zes como a daquela Ópera. 

— Eu me pergunto as razĂ”es por que Niva determinou que fosse assim — KuĂ­ continuou, erguendo os ombros. — Mas os Imortais sĂŁo os Imortais por um motivo, afinal
 

Embora nĂŁo parecesse muito disposto, Ravi acabou se forçando a desamarrar a cara, apoiando o copo vazio no suporte perto da poltrona. Correu os olhos pelos demais lĂ­deres e assentiu, como se estivesse convencido de algo. O lobo aos seus pĂ©s sapateou, ameaçando se levantar, mas o lĂ­der o acalmou com um gesto. 

— Isso me recorda de pedir: por favor nĂŁo se esqueçam de pensar com cuidado sobre aquele outro assunto. 

O comentĂĄrio chamou a atenção de Mestre Inua. O que quer que fosse, ainda nĂŁo havia sido informado. Se a postura do lobo ou do homem o incomodaram, contudo, nĂŁo pareceu demonstrar, embora seus prĂłprios olhos nĂŁo tenham ficado mais dĂłceis nem por um segundo. 

E isso, acima de qualquer outra coisa, estava começando a deixar Ravi genuinamente irritado. 

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Enquanto os mais velhos continuavam trancados na sala, ocupados com suas prĂłprias picuinhas, Oz tentava nĂŁo parecer tĂŁo encantado. Sentado no salĂŁo principal do lugar, seus olhos pulavam de um canto para o outro como os de uma criança atentada. Tudo era uma novidade que ele parecia pronto para desvendar com as prĂłprias mĂŁos. 

— VocĂȘ vai se machucar — Maali disse, segurando-lhe o pulso antes que Oz tocasse o forno central. 

Oz puxou a mĂŁo com uma expressĂŁo desgostosa. Nem poderia resmungar sobre a intervenção porque teve tempo de sentir a onda morna contra a pele. 

— O que Ă© isso? — questionou, buscando a atenção Yan, do outro lado da sala. 

— É o coração — ele respondeu, rindo da confusĂŁo no rosto de Oz. Maali tinha razĂŁo: aquele farkasiano nĂŁo sabia nada sobre eles. — O forno central. 

Intrigado, Oz tornou a encarar o objeto. NĂŁo se parecia com um forno, mas com um vaso alongado feito de um material semitransparente que tinha a mesma cor verde-arroxeada da fluorita. A princĂ­pio, achou que fosse parte da decoração, mas agora conseguia ver como ele se abria em direção ao teto, como os galhos de uma ĂĄrvore. Ou como uma tubulação para aquecimento interno. 

Sim, agora que olhava com mais atenção, fazia sentido. 

— Todas as casas nivarianas tĂȘm um coração — Yan continuou a explicar. Percebeu Shu escalar seu ombro e espiar a conversa entre seus cabelos, interessado. — É um ritual de nĂșpcias, sabia? Sempre que um novo nĂșcleo familiar se forma, todos os cĂŽnjuges dĂŁo vida ao coração da casa. 

— Todos os cînjuges? — Oz repetiu, confuso com aquela construção de frase. — Mais de duas criaturas costumam se casar por esses lados?

— Do outro lado da ponte, as criaturas só formam famílias em duplas? — Maali redarguiu, cruzando os braços enquanto se colocava entre Oz e Yan feito um muro.

Veja, nĂŁo era como se Oz quisesse desgostar daquele rapazote. De perto, atĂ© que ele era bonitinho com aqueles olhos afiados, mas a cara amarrada fazia Maali perder uns bons pontos da sua simpatia. Espiou a silhueta de Yan atrĂĄs dos ombros dele e abriu seu sorriso mais descarado. 

— E alĂ©m de mim, vocĂȘ se casaria com outros? 

Maali piscou devagar, atordoado com a petulĂąncia daquele farkasiano. 

— Como
? — disse, dando a Oz a oportunidade de se retratar, mas tudo que arrancou dele foi um sorriso ainda maior: 

— Eu estava falando com o ratinho — acrescentou, indicando Yan com o queixo. 

O atrevimento de Oz se dissolvia muito fĂĄcil nas covinhas de seu sorriso e mesmo Yan, que nĂŁo era o maior fĂŁ de farkasianos, se pegou rindo daquela interação, o que nĂŁo fez muito pelo humor de Maali. 

— Era brincadeira, viu? — Oz acrescentou, satisfeito por vĂȘ-lo sorrir. — A menos que vocĂȘ queira — completou, brindando-lhe com uma piscadinha charmosa. 

— Sou um arminho — Yan pontuou gentilmente, no tom de alguĂ©m que esperava que Oz lembrasse daquela informação no futuro. 

— Resta saber se ele sabe o que Ă© um — Shu espezinhou, tomando o cuidado de manter apenas a cabeça visĂ­vel. 

E como nunca tinha visto um animal falante antes, Oz soltou um ofego surpreso, dando um passo cauteloso para trĂĄs. Em seguida, percebendo que aquela nĂŁo era uma postura adequada para um guerreiro farkasiano, endireitou os ombros e limpou a garganta. 

— Os bichos falam em Nivaria? 

— SĂł os espertos, camarada — Shu respondeu. — E os que voltaram dos mortos. 

— Shu, shh! — Yan pediu, interrompido logo depois pela porta da sala de reuniĂ”es, recĂ©m aberta. 

Ravi foi o primeiro a surgir, acompanhado por Mestre Inua e pelo casal de lĂ­deres Tyr. Yan registrou como ele tinha uma silhueta imponente, especialmente ao lado do lĂ­der Tyr. Deveria ser confortĂĄvel para os farkasianos a figura de alguĂ©m capaz de esmagar o mundo com as mĂŁos, assim como lhe eram confortĂĄveis os olhos sĂ©rios de um dos seus lĂ­deres, tĂŁo parecidos com os de Maali. Yan pensou que se estivessem sozinhos agora, poderia abraçå-lo para matar um pouco da saudade. Mal teve tempo de falar com Maali desde que se encontraram mais cedo. 

— E este rapaz? — Ravi questionou, atraindo o olhar de Yan. — É filho de algum lĂ­der tambĂ©m? 

SĂł entĂŁo percebeu que era sobre ele que o lĂ­der de Farkas falava. 

— NĂŁo, lĂ­der Farkas — respondeu, cumprimentando-o com uma reverĂȘncia. — Sou Uki Yan. 

— Yan Ă© um dos nossos curandeiros mais jovens — Amka explicou, uma sombra de sorriso brincando pelos lĂĄbios porque conhecia bem seu filho e o espaço que Yan cavara no coração de Maali. — E um dos mais talentosos, por sinal. 

Ravi assentiu. A princĂ­pio, parecia um rapazinho comum, desses de quem se esquece rĂĄpido, tĂŁo logo saem do seu campo de visĂŁo. Contudo, Ravi sabia reconhecer olhos aruvianos. Mais que isso, olhos aruvianos cheios de promessas de magia, como aqueles. 

Um curandeiro mĂĄgico seria uma adição interessante ao Hall da Conflagração. 

— Oh! — ele sorriu. No futuro, pediria ao Senhor Instrutor que levantasse mais informaçÔes sobre aquele jovenzinho. — Espero vĂȘ-lo algum dia em Farkas. Quem sabe entre os nossos mĂ©dicos oficiais?

— Seria uma honra, lĂ­der — Yan respondeu, movido mais por educação do que por honestidade. 

— Oz! 

Para chamar o filho, a voz de Ravi soava mais potente, menos gentil. A rispidez que apenas se insinuava no fundo de sua garganta era uma velha conhecida de Yan porque fazia com que se lembrasse da maneira com que a mĂŁe agia com Nyan. Maali tambĂ©m percebeu aquele desprezo disfarçado de autoridade. A fuça indisciplinada de Oz nĂŁo lhe despertava a maior das simpatias, mas a prepotĂȘncia daquele lĂ­der estimulou o seu desdĂ©m. 

A magia perniciosa que borbulhava sob a sua pele acariciou-lhe a ponta da língua, pedindo passagem. Uma palavrinha sua bastaria para fazer Ravi passar vergonha diante de seus pares, e quem desconfiaria que tinha sido Maali o culpado? Ele mordeu a bochecha por dentro até que a dor colocou seus pensamentos de volta nos freios. Não deixaria nenhum farkasiano, pai ou filho, tirar a paz que conquistara para si com anos de disciplina.

— Peça para que um leva-e-traz pegue suas malas de viagem no carro — Ravi orientou assim que o filho se aproximou, deixando-o confuso.

— É aqui que nós vamos nos instalar?

— Oh
 — Amka colocou uma mĂŁo no peito, a outra enganchada ao braço do marido. — Ravi, vocĂȘ nĂŁo avisou ao menino
 

— Avisar
 O quĂȘ? 

Oz tinha um pĂ©ssimo pressentimento sobre aquilo. E parecia ser infeccioso, porque Maali experimentou a mesma sensação. Se estava lendo bem a linguagem corporal de Mestre Inua, sabia quais palavras viriam depois — e que Niva o perdoasse pelo egoĂ­smo de implorar em pensamento para que fossem diferentes do que foram. 

— VocĂȘ vai se instalar na Academia Nivariana, Oz — Inua explicou. — Para participar do programa de educação monacal, como se espera do filho de um lĂ­der. Comumente, os jovens sĂŁo educados na Cidadela da Neve Eterna, mas o clima de Espinho de Cristal Ă© rigoroso demais. A cĂ©lula da Academia no Distrito cumprirĂĄ o papel perfeitamente bem.

Nenhuma outra Cidade era melhor para colocar os jovens na linha quanto Nivaria. Era isso que os lĂ­deres buscavam sempre que deixavam suas crias aos pĂ©s de Mestre Inua: que o frio ou os monges colocassem algum juĂ­zo na cabeça daquelas criaturinhas. 

— Maali — Mestre Inua prosseguiu. — VocĂȘ serĂĄ o sĂȘnior responsĂĄvel por orientar Oz a partir de agora. 

Ser disciplinado à beira do vórtex durante uma tempestade de neve seria menos desagradåvel. E se não controlasse as expressÔes no próprio rosto, Mestre Inua acabaria por lhe passar esse exato castigo. Controlou a cauda agitada e forçou as orelhas de raposa, que tinham se voltado para trås, a retornarem para uma posição relaxada.

— Ele? — Oz redarguiu, sem se preocupar em esconder a indignação. — Nem fodendo que ele Ă© mais velho que eu! 

— Oz! — Ravi repreendeu. Estava prestes a usar palavras mais duras, mas a lembrança de onde estava abrandou sua lĂ­ngua: — Peça desculpas pelo seu vocabulĂĄrio.  

Antes que Oz abrisse a boca, Maali respondeu: 

— NĂŁo Ă© necessĂĄrio, lĂ­der Farkas. Ele vai ter tempo para repensar as prĂłprias palavras.

Ravi percebeu que aquele garoto tinha os mesmos olhos inflexíveis de Mestre Inua e desgostou dele imediatamente — o que pareceu passar longe do radar de Maali, que acabara de se voltar na direção de Oz.

— E tambĂ©m vai ser capaz de pegar as prĂłprias malas — continuou, indicando a porta com um gesto. — VocĂȘ nĂŁo vai precisar levar muita coisa consigo. 

Os dois se encararam como se estivessem dando partida a um desafio cujas regras se assentavam silenciosamente ao redor de ambos. Oz mostrou os dentes como um bichinho, entĂŁo riu. 

Se Maali pensava ser capaz de colocar uma coleira em um lobo, entĂŁo realmente teria bastante com que se divertir.

Continua


No prĂłximo capĂ­tulo
 Se fĂŽssemos acompanhar todos os primeiros dias de Oz na Academia, terĂ­amos material para umas duas temporadas. Felizmente, o relatĂłrio de Tyr Maali dĂĄ conta dos eventos principais. 

O CapĂ­tulo 29 — Uma Ășnica frase rasgada chega em 18 de outubro Ă s 12h!

Ei, vizinho! NĂŁo esquece de me acompanhar nas outras redes! đŸ’«

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