- Dead Bunny BL
- Posts
- 💫 Pontes Imortais ― Capítulo 27
💫 Pontes Imortais ― Capítulo 27
Cores contra a neve
Saudações, meus mais amados vortexianos! Sexta-feira de sol no Vórtex com altas chances de enxurrada de farkasianos descendo a ponte! Excelente dia para comprar um guarda-chuva (ou um fone abafador de ruído, eles são barulhentos)!
No último capítulo… Maali nos mostrou um pouco sobre seu hábitat natural, a Cidadela da Neve Eterna, no topo das montanhas geladas de Nivaria! Também ficamos sabendo que nivarianos demonstravam gênero através de fitinhas nos cabelos e que os farkasianos e diplomatas das Cidades Flutuantes devem chegar em breve a Nivaria. Parece que chegou o momento de nossos queridinhos se trombarem.
Música-tema do capítulo: Prince Ali, Robin Williams (sigam a playlist oficial Pontes Imortais #2 no Spotify!
Capítulo 27 — Cores contra a neve
Nivaria, dois anos antes da queda da Cidade
— E quando é que a gente chega?
Oz sempre tinha sido tão resmungão quanto era alto. Mesmo largado no banco do carro, envolvido em camadas de cachos castanhos que caíam sobre os ombros, seu tamanho não passaria batido. Quando se erguesse daquele assento, o crânio de lobo que usava como adereço passaria alguns dedos da altura do veículo, uma estatura considerável mesmo em terras farkasianas. Certamente mais naquele lugar.
— É frio — voltou a reclamar.
Enganchara um dedo por baixo do osso abaulado do crânio e o rodava displicentemente sobre ele como se fosse feito de tecido.
— É claro que é frio. E longe. Tenha paciência — sua mãe ralhou, fazendo Oz franzir o nariz. — E pelo amor dos Imortais, para de rodar isso. O que as lideranças vão achar de você?
Juno sempre tivera o tom de voz que promete uma tempestade. Oz admirava esse traço na mãe. Ela era a promessa enquanto seu pai era a ameaça. Ela, um primeiro trovão que ecoava pelas planícies como o rugido de um monstro; ele, um raio, mais ameaçador e bem menos sutil.
Com a mãe, ainda podia simpatizar, mesmo que valesse sempre a pena lembrar: o sorriso que ela reservava para Ravi nunca havia se estendido para qualquer outra criatura, nem mesmo para ele. Era como se convencia de que, no fim das contas, relâmpago ou ameaça, os dois eram iguais.
Tinha meia dúzia de respostas prontas que fariam Juno respirar fundo e seu pai erguer a voz. Em Farkas, renderiam uma noite na Casa de Repouso. Sua curiosidade questionava o que renderiam ali, no meio daquela ponte sem fim.
Mas guardou tudo para si com outra franzida no nariz quando pousou o crânio de lobo sobre o colo. Nem mesmo o olhar feio do pai o obrigaria a viajar usando aquele treco pesado sobre a cabeça. Nenhum líder teria nada a dizer, porque não o veriam ali dentro do carro, a meio caminho do fim do mundo gelado.
— Mas é frio demais — reforçou, só pra ver a mão do pai se fechar em um punho impaciente.
Tocou a cortina que fechava a janela grossa e a afastou para o lado. O vidro tinha se embaçado todo. Esfregou a mão nas gotículas que se formavam por dentro e espiou a paisagem.
A ponte era um troço retorcido e brilhante que descia de Farkas em direção ao vórtex como se tivesse sido tecido e costurado às duas Cidades por magia. A falta de conhecimento sobre magia daquele nível faziam Oz pensar que era possível que fosse exatamente o caso. Deu uma espiada em Juno pelo canto do olho, mas logo voltou a analisar o brilho mágico da ponte.
Banjora, a Cidade de sua mãe, era amplamente conhecida pela magia têxtil, como a que revestia a peça de pele ao redor de seus ombros. Só dessa forma era capaz de usar pele em Farkas. Embebido em magia, o tecido proporcionava proteção e não o matava de calor enquanto também garantia a pompa de que sua família tanto gostava.
Tinha desviado o olhar da janela por apenas um instante e ela já voltara a se embaçar com a fina camada trazida pelo frio. Oz fez a terceira careta em pouco tempo.
— Que tipo de gente vive nesse fim de mundo?
Já tinha estado em outras Cidades antes. Em Banjora, frequentemente; em Aruvi, nas raras vezes em que convidaram outras lideranças para dentro de seus limites; no Deserto, uma única vez. Não em Nivaria. A ponte sem fim que a ligava a Farkas era uma figura marcante de sua infância apenas como fonte de histórias e teorias.
Chamavam as pessoas que lá moravam de Domadores de Fronteiriços. Quando pequeno, Oz costumava pensar que era a única alcunha que fazia sentido. Aquela Cidade ficava pendurada tão perto da boca do vórtex que as únicas alternativas viáveis pareciam ser ou tornar-se comida de Fronteiriço ou aprender como controlá-los.
Finalmente pôde ver algo que se parecia com o fim da estrada, ao longe. E suspirou, deitando a testa contra o vidro. Quase dois séculos de vida e ainda não se conformara com perder tanto tempo em uma única viagem. Para compensar, esperava pelo menos conhecer alguma criatura interessante por lá. Um pouco de romance ajudaria a aquecer o peito naquele inverno insuportável.
Que a Grande Loba Kana o ajudasse. Nem todos naquele lugar poderiam ser caçadores, não é? Ele próprio era um guerreiro e um líder. Caçadores eram o tipo mais entediante de criatura.
Só precisava conhecer uma criatura interessante que não fosse um deles.
— Espero que esse frio não deixe a Nix doente.
━━━━━━ • ❆ • ━━━━━━
Quando desciam Espinho de Cristal em grupo daquela forma, os monges tinham a aparência de um batalhão de demônios. Era mesmo essa a ideia: as máscaras sobre o rosto tinham um duplo propósito: protegê-los do frio colossal das montanhas e mimetizar a aparência de uma criatura perigosa. Normalmente eram utilizadas nas caçadas a Fronteiriços, mas também em ocasiões especiais, como uma espécie de ornamento cerimonial. A chegada de uma comitiva farkasiana se encaixava no segundo tipo.
— Mantenham a posição! — o monge na ponta da formação comandou, sua voz reverberando pelos comunicadores encaixados aos ouvidos de todos os demais monges.
Descer Espinho de Cristal exigia cuidado: as montarias robóticas costumavam ser pesadas. Um passo em falso e uma avalanche poderia prendê-los. Ou chegar ao Distrito.
Maali odiava descer a montanha.
As ribanceiras abrindo-se em curvas súbitas, ou escondidas atrás de coníferas, eram seu pior pesadelo. Se pudessem ver seu rosto, pareceria mais sério que o normal, e qualquer júnior interpretaria aquilo como respeito à responsabilidade de escoltar os recém-chegados. A verdade é que Maali só estava apavorado. Nunca cogitou a possibilidade de sair de Nivaria porque isso implicaria em enfrentar aquela ponte horrorosa e instável, balançando ao sopro de qualquer brisa, pronta para derrubar qualquer um no vórtex.
No que dependesse de si, manteria os pés sempre no terreno mais estável possível. Tinha se especializado no tiro com arco para derrubar Fronteiriços de longe, resguardando-se da possibilidade de escalar ribanceiras ou se pendurar em penhascos. O peso da arma às costas lhe ajudava a recuperar um pedacinho da confiança.
O alívio que o engoliu assim que o agrupamento pisou no terreno lamacento da base da montanha quase tirou dele um grito. O Distrito já era visível dali e a suave luz carmesim daquele período causava um efeito bonito quando refletia naquele punhado de construções feitas de vidro que surgiam aqui e ali. A ponte estava mais adiante, escondida sob a bruma da geada.
Suas orelhas giraram para trás quando escutou algo. Ali embaixo havia muitos sons. O cotidiano era agitado no Distrito, sempre barulhento, mas ruídos assim não chamariam sua atenção em particular porque eram velhos conhecidos.
— Monge Tyr! — o comandante berrou, mas Maali já havia saído da formação.
Porque conhecia aquele som também, e o timbre era motivo de preocupação.
— Ele vai queimar a gente! Faz alguma coisa!
Yan ainda não havia se acostumado com a voz emanando do meio dos seus cabelos. Não seria agora que aquilo iria mudar. Deu outro gritinho quando desviou para o lado, fugindo do ataque daquele pequeno Fronteiriço de labaredas.
Não era maior do que um gato, mas no lugar de um amontoado de pelos felpudos, o monstro era coberto de chamas tremeluzentes. Estava fraco. Era sempre um infortúnio quando algum daqueles bichos era cuspido do coração do vórtex direto no inverno nivariano. Sem o cuidado apropriado, morriam logo, engolidos pela neve.
Para um monge, aquele nem chegaria a ser um embate. Muitos cidadãos comuns de Nivaria resolviam seus conflitos com as pequenas labaredas por si mesmos. Yan nunca tinha perdido tempo aprendendo a enfrentá-los. Nem mesmo na primeira vez em que um deles o atacou, causando a queimadura cuja cicatriz recobria o antebraço.
Na ocasião, estava bem mais embrenhado no bosque, e sozinho. O Fronteiriço era maior, uma ameaça de verdade, do tamanho de um boi, cuspido do vórtex num dia seco e frio. As trilhas costumavam ser tranquilas. Que um Fronteiriço como aquele pequenino tivesse cruzado seu caminho justo naquela manhã, quando se aproximava do Distrito, teria sido apenas um infortúnio, não fosse Yan parcialmente aruviano, e, portanto, propenso a irritar Fronteiriços das Chamas, que pareciam sentir a presença das magia das águas.
Sentiu o fogo cruzar seu caminho perto das pernas e rodou para o outro lado, segurando perto do corpo a bolsa de viagem. E então o bicho o encurralou entre um aglomerado de raízes protuberantes.
— Faz alguma coisa! — Shu repetiu, a voz se erguendo em desespero enquanto puxava os cabelos de sua nuca com as patinhas agitadas.
Yan ergueu os braços, protegendo o rosto quando se acocorou rente ao chão numa postura defensiva quase infantil. Sua mão já exibia a marca de uma queimadura superficial, o primeiro ataque do Fronteiriço de labaredas, que o tinha pegado de surpresa enquanto andava pela trilha.
— Não isso! — Shu berrou, pateando contra os ombros de Yan como se pudesse assim convencê-lo a fazer algo. Lutar.
Tantas pessoas que podia ter conhecido naquele lugar e foi parar no ombro da única delas que parecia incapaz de lutar. Ia acabar virando churrasquinho por causa de um monstrinho-labareda e de um curandeiro que não sabia usar os punhos.
Que tivesse dado a sorte de encontrar alguém capaz de trazê-lo de volta dos mortos era um mero detalhe.
A longa cauda felpuda de Yan se enrolara no corpo, juntando-se aos braços erguidos na frente do rosto como se fizesse alguma diferença, a pontinha de pelos da cor dos cabelos se agitando como a chama de uma vela.
— Ah, pronto. Agora você tá tentando falar a língua do fogo com esse rabo balançando! — Shu bufou, encarando o monstrinho de chamas. — Xô! Você vai morrer de qualquer jeito, colega. É triste, mas eu aqui não tenho nada com isso!
O assovio cortando o ar foi todo o aviso que aquele monstrinho teve: em um instante, estava prestes a armar o bote; no outro, uma flecha o acertou com uma precisão sinistra — bem na cabeça, atravessando-lhe um dos olhos, a melhor forma de abater Fronteiriços, não importava o tamanho.
Shu teria se sentido grato pela intervenção se a criatura que cavalgava na direção dos dois agora não fosse ainda mais assustadora que aquele monstrinho. O rosto vermelho escancarava a boca em um sorriso malévolo. Cornos dourados partiam-lhe das têmporas, terminando em pontas afiadas que só não eram mais assustadoras do que os chifres daquela coisa de metal que montava.
— Pelos Imortais, Yan! Faz alguma coisa! — Shu implorou, escondendo-se tão enfaticamente entre os cabelos do rapaz que chegou a arrancar alguns fios no caminho.
Ser trazido dos mortos só para morrer nas mãos de um demônio só podia ser algum tipo de castigo dos Imortais.
— Yan…
Maali desmontou do alce, batendo no lombo do bicho para acalmá-lo com um carinho. Devagar, puxou a máscara para cima até livrar-se dela, os olhos sérios inspecionando-o até pararem sobre a queimadura. Uma sugestão de rosnado escapou de seus lábios e suas orelhas se voltaram para trás novamente. A ferida na orelha esquerda, no formato de uma mordida, era uma lembrança da última vez em que Yan teve problemas parecidos na floresta. Problemas de verdade. Não uma coisinha fraca como aquela.
— Por que você insiste em usar esses atalhos? — ralhou com uma expressão impaciente que não correspondia à delicadeza com que se abaixou para tocar a mão dele e examinar-lhe o ferimento. Não parecia profundo, como o do braço tinha sido. — Você é muito imprudente para um curandeiro.
— É bom te ver também, Maali — Yan respondeu, suave, depois de se desenrolar de sua postura defensiva com uma expressão aliviada. O sorriso fazia uma curva graciosa que conseguiu deixar Maali sem graça o bastante para desviar o olhar.
— Você está acompanhado? — questionou, buscando no bolso uma das misturas para pequenos ferimentos que sempre levava consigo. — Pensei ter ouvido alguém falar o seu nome.
Yan acompanhou os gestos dele. Interpretava aquilo como cuidado, de uma forma que sempre era capaz de deixá-lo mais calmo. Levou a mão à própria bolsa, entretanto, tirando dela uma mistura para queimaduras que ele mesmo tinha feito.
— Posso ser um curandeiro imprudente — começou, segurando o sorriso. — Mas não sou um relapso. Ou um ruim. Minhas poções são melhores do que as suas, monge.
O tom delicado que usava com Maali era como uma nuvem leve de fumaça circulando a ambos, um tom que existia apenas para aquela criatura — ao menos até então. Pretendia falar sobre Shu na sequência. Um lagartinho trazido de volta dos mortos que calhava de ser um animal falante. Nada demais — o que, na linguagem de Maali, indicava nada perigoso.
— É só… — começou.
— Ah, esse é o cara que você tava querendo ver, acertei? — A cabecinha do lagarto surgiu por entre suas orelhas, no topo da cabeça. — Do jeito que chegou, eu achei que era um emissário da morte vindo me buscar de volta.
A velocidade com que Maali armou uma nova flecha quase fez Shu desmaiar na sequência. Foi um alívio que Yan tenha sido igualmente rápido, tocando-lhe as mãos para impedi-lo de atacar.
— O que você ia fazer, disparar uma flecha entre as minhas orelhas? Ele está comigo — garantiu, forçando as mãos de Maali para baixo com delicadeza, como se a ponta de metal afiado não lhe causasse medo algum. — É uma história engraçada que posso te contar mais tarde, se você me acompanhar pra comer alguma coisinha. Você vai me dar carona até o Distrito, não vai?
— Você vai ter que vir comigo na escolta primeiro.
Um animal falante. Um animal falante perto de Yan.
O brilho nos olhos do curandeiro enquanto avaliava sua preocupação só não era mais doce do que a percepção de que Maali baixou o arco porque foi um pedido seu. Yan gostava do quão disciplinado ele era tanto quanto gostava de que sempre parecia disposto a quebrar algumas regras por sua causa.
Se afastou dele só quando teve certeza de que estava mais brando, então ocupou o lugar sobre uma das majestosas raízes que tomavam a relva, usando-a como banco enquanto cuidava do ferimento novo como se não fosse nada.
Maali sempre admirou o fato de que era ele quem era treinado em sobrevivência, mas Yan parecia sempre pronto para lidar com adversidades de uma forma bem mais consistente. Fosse aquela queimadura na sua própria pele, se permitiria ao menos uma careta. Yan cuidava da mão como se nem sentisse a própria ferida, como se ele todo fosse firme feito mármore.
— Vamos ter bastante assunto — Maali decidiu, guardando a arma às costas. O comunicador explodia em seu ouvido com pedidos para que voltasse à formação. Levantou-se, oferecendo a mão para Yan tão logo teve certeza de que ele tinha terminado o curativo. — Você ainda sabe como montar, certo?
— Com companhia? Acho que sim…
Yan tocou a barra do casaco de Maali para se segurar na montaria, apertando as coxas ao redor do lombo do animal. Quando eram mais novos, costumavam cobrir as trilhas ao redor do Distrito em pôneis autômatos, caçando pequenos animais e segredos das florestas. Seu arsenal de ervas tinha começado a brotar naquela época.
— Assim você vai cair — Maali resmungou, puxando as mãos de Yan para envolver sua cintura.
O rosto afogueado de Yan passou batido por Maali, mas não por Shu, ainda pendurado no ombro do rapaz. Os olhos foram de um para o outro antes de ele soltar um “he-he” sonoro.
— Tô começando a entender as coisas por aqui, companheiro. Tô começando.
Ninguém estranhou quando Maali voltou à formação com Yan a tiracolo. Atrás do grupo, a capa baixa de neve estava estampada por um tapete de buraquinhos por onde os alces tinham passado, como uma constelação às avessas revelando estrelas de lama. Os monges se distribuíram ao longo da passagem onde a ponte desembocava, fechando o cerco um pouco depois do grupo diplomático que receberia a comitiva farkasiana.
— Aquele é o Instrutor da Ópera do Fim do Mundo — Yan se inclinou, sussurrando para Maali. Tinham estacionado perto deles e o líder Tyr chegou a olhá-los de soslaio, oferecendo um sorriso discreto para os dois. Nomes e cargos eram uma das muitas coisas que sabia sobre os jogos políticos das Cidades, graças à ladainha de Jiao. — Maali, olha! Olha!
Era difícil não ver — e ainda mais difícil não ouvir. O som começava a ecoar à distância, multiplicado pelos ecos das cordilheiras. Ao mesmo tempo o som de tambores e vozes; o apito de trombetas e o bramido de trompas. Assustadas, uma revoada de sereias cortou os céus, seu piado hipnótico misturando-se aos demais sons como se fosse proposital.
Não demorou para que os recém-chegados surgissem na curva da ponte, em um número tão grande que Maali questionou-se, assombrado, se não temiam cair.
À frente da comitiva vinha um elefante branco montado por uma jovem farkasiana cujo conjunto de roupas de frio era de um laranja chamativo demais. Maali fez careta. Aquela gente era mesmo tão temerária ou só não tinha noção de que poderiam fazer iscas de si mesmos assim? Atrás dela, caminhando a pé, um grupo de discípulos mantinha o ânimo da comitiva com seus tambores e trombetas. Desmontaram dos carros algumas horas antes para se organizar naquela ponte bamba, o que lhes atrasara um pouco, coisa com que Ravi não se importava. Ao contrário de seu amigo diplomata, tinha bem pouco respeito por horários.
— Mãe… — Oz cutucou Juno, tentando enxergar pelo vidro embaçado do carro. — Estamos sendo recepcionados por demônios?
Aquela terra parecia ainda mais horrorosa de perto: Nivaria era bem menor do que tinha imaginado, cercada por uma cadeia de montanhas cujos picos afiados lembravam os dentes de um monstro antigo, abatido há muito tempo. Dos dois lados da passagem, sobre animais cujos corpos luziam como se feitos de aço puro, criaturas em roupas brancas exibiam caretas vermelhas numa diversidade absurda de cornos, dentes e ameaças.
Oz não tinha certeza se estavam ali para recepcioná-los ou para espantá-los.
— Eles são mesmo tão ricos assim? — Yan questionou com um sorriso de divertimento que começava a despontar pelo canto dos lábios.
Tentou contê-lo. Aquilo era muito farkasiano, por tudo o que tinha ouvido sobre eles até então. A pompa, a ostentação, a falta de discrição, o barulho. Não precisariam de uma comitiva como aquela em uma viagem de cunho diplomático, mas faziam questão não só de atrasar a recepção e deixar a escolta de monges caçadores aguardando no frio, mas de chegarem com música e firula como se fossem os donos da festa em uma Cidade que nem era deles.
E mesmo assim, Yan tinha vontade de sorrir, porque nunca tinha visto algo tão animado descer a ponte para Nivaria. Perto da Festa de Luzes, era uma promessa de diversão que não tinham com frequência. E teria Maali ao lado para desbravar cada detalhe daquela exibição de riqueza.
— Minha mãe estava certa — sussurrou sobre o ombro, na direção de Shu.
Na noite anterior, enquanto ajeitava os últimos detalhes na sua mala de viagem, Jiao havia ocupado todo o jantar com histórias sobre Farkas que se pareciam com contos para crianças. Uma delas, que Yan julgara a mais esdrúxula, envolvia uma comitiva liderada por um artista montado em um elefante.
Com o bicho bem na sua frente agora, nem mesmo podia achar aquela história absurda mais.
Os pensamentos de Maali iam numa direção bem mais prática: uma comitiva daquele tamanho exigiria uma travessia bem mais lenta pela ponte. Como tinham feito para se alimentar? Algum daqueles carros funcionaria como cozinha? E outro deles como local para as necessidades básicas? Nem queria pensar em quanto trabalho os autômatos de limpeza teriam com a quantidade de esterco dos animais espalhado pela ponte.
— Filho… — o líder Tyr chamou. Àquela altura, a comitiva já havia saído da ponte e começava a ocupar a passagem estreita que levava ao Distrito. — Fique perto de mim hoje.
O pedido era estranho. Maali encarou o monge que liderava o grupo e o viu fazer um sinal discreto de que tudo estava bem. Maali ainda era um monge externo e poderia se envolver com as questões do Distrito e do seu próprio clã.
Destacando-se do grupo, ele ladeou a comitiva nivariana, tirando do rosto a máscara demoníaca. Não fazia sentido usá-la se estava lá para representar os Tyr, e não a Cidadela.
— Você precisa de enfeites — o pai comentou em um tom suave de repreensão que Maali acatou com um aceno porque ele tinha razão. Sem a máscara, estava simples demais para a ocasião.
— Por sorte, eu pensei nisso — um homem atrás do líder Tyr sorriu. Era quase da mesma altura que Maali e com olhos igualmente cinzentos.
— Papai. — Maali se permitiu sorrir, aceitando o par de brincos que recebeu das mãos dele. Longos e pesados, eram feitos dos ossos dos diversos animais, pintados à mão com runas tão minúsculas que mais pareciam um padrão de pontinhos para quem olhava à distância.
A interação deixou Shu confuso e Yan, risonho. Adorava como a cabeça de Maali diferenciava aqueles dois entre pai e papai. Pai era o líder Tyr, a pessoa de quem havia herdado o rosto sério e os traços de raposa; papai era Amka, o marido de líder Tyr — a criatura mais doce que Yan lembrava-se de ter conhecido; e que brindara Maali com seus olhos de geada e a altura espetacular.
— Um bom dia sem nuvens — Yan ofereceu com a voz suave. Em um lugar sempre coberto de neve branca, o céu era um elemento importante. Em Nivaria, ele refletia o vórtex e suas cores com promessas de histórias. Aquele era o cumprimento mais educado, especialmente em uma data festiva.
— É bom te ver, Yan — Amka respondeu com um sorriso depois do líder Tyr cumprimentá-lo com um aceno de cabeça sério e educado. — Vai passar alguns dias pelo Distrito, imagino. Sua família também?
— Eu vim mais cedo. Não perderia a festa.
E a chance de ver Maali, mas isso não diria em voz alta. Menos por recato diante dos pais dele e mais por saber que um comentário tão direto o deixaria bem arredio. Com Maali, era sempre melhor levar as coisas com casualidade. Um convite para comer um espetinho enquanto contava uma história, por exemplo. Era perto o bastante de um convite para jantar, mas menos assustador.
— Parece que ela será animada este ano, não é mesmo? — Amka concedeu, mirando pelo canto dos olhos a carreata de animais e música que terminava de descer na estrada coberta de neve.
Do ombro de Yan, Shu deixou o queixo cair. Um dos funcionários da comitiva farkasiana apressou o passo até um dos carros, liberando de dentro dele uma pequena alcateia de lobos monstruosamente grandes.
— Tem certeza de que isso não é um ataque? — ele questionou, puxando com a patinha boa uma mecha do cabelo de Yan, que sacudiu a cabeça em reprimenda.
— Você tem medo de cachorros?
— Dadas as suas habilidades defensivas, eu tenho medo de tudo.
Para os monges, foi certamente uma experiência escoltar aquela gente barulhenta e seus lobos que, animados diante da neve, espalhavam-se por todos os lados, atiçando os alces com promessas de mordida que pareciam com as brincadeiras de um filhote. Dentre eles, um grande lobo de pelos escuros parecia o mais sério. Enquanto os outros brincavam, aquele caminhava atentamente ao lado de um dos carros como se fosse parte da escolta, uivando vez ou outra como se pudesse se comunicar com alguém dentro do veículo. Yan achou a cena especialmente intrigante.
— Aquele deve ser o carro dos líderes — Shu comentou, em uma observação óbvia dado o tamanho e a pompa daquele carro em específico.
— Você acha que eles podem falar com os lobos? — Yan perguntou, provocando um sério Maali, que ainda achava tudo um grande absurdo.
— Eu não saberia dizer.
— Talvez eles uivem com os bichos durante a noite — Yan sussurrou. E aquilo tirou de Maali um curto sorriso.
Mesmo sendo uma Cidade pequena, era um evento ter praticamente todos os moradores do Distrito parados às portas ou reunidos nas pequenas praças para observar a passagem dos farkasianos. Sobre o elefante, a artista tirava de um cesto pequenas esferas de doce para atirar na direção das crianças, arrancando-lhes gritinhos surpresos e olhares encantados. Eram coloridos e exalavam um forte aroma cítrico, coisa de alguma fruta natural dos climas mais quentes e impossível de se cultivar no inverno rigoroso. Pelas coisas que havia provado, trazidas pelos pais, Yan chutaria que eram bombons de cupuaçu.
Os artistas da banda eram igualmente charmosos e por mais sisudos que fossem os idosos nivarianos, nem mesmo eles escondiam seus sorrisos quando recebiam cumprimentos galantes.
O Centro Comunitário era o ponto final daquela divertida arruaça. Foi só quando, enfim, pararam ali, que Ravi fez um sinal para a esposa e o filho. Logo em seguida, apertou o pulso de Oz antes que ele abrisse a porta do carro.
— Comporte-se, garoto. Esse lugar vai ser sua casa por algum tempo.
E Oz torceu para que, em nome de todos os Imortais, fosse um exagero do pai o uso da palavra casa.
— Uka!
O brado de Ravi parecia tornar mais potente o nome do líder Tyr. Ele saiu do carro já com os braços abertos, sua silhueta parecendo ainda maior com as camadas de casaco. No centro do Distrito havia aquecedores externos em bom número, tornando o clima mais agradável, o que dava a Ravi coragem para sair do carro com o grande crânio de lobo preso ao topo da cabeça.
Oz pensou que mesmo que aquele treco congelasse no cocuruto do pai, o velho insistiria em carregá-lo — como se não fosse lobo o bastante sem aquilo. É claro, era o tipo de coisa que nunca comentaria.
— Líder Farkas — Tyr Uka respondeu, a voz carregada de uma sobriedade tão afiada quanto a neve sobre as cordilheiras. — Madame… — Continuou, estendendo o cumprimento a Juno, que acabara de sair e buscava o braço do marido.
— Como o seu pai sabe de que forma chamá-los? — Yan tomou o cuidado de perguntar em voz baixa. Vasculhou detalhes nas roupas farkasianas para entender como sinalizavam o gênero ao qual tinham se aterrado.
— Não sei — Maali respondeu, igualmente confuso. Aquela gente farkasiana cada vez mais parecia bem pouco civilizada.
— Oz, bem-vindo a Nivaria — o líder Tyr completou, estendendo suas boas vindas ao rapaz que saiu do carro logo atrás do casal de líderes farkasianos.
Yan viu quando ele encaixou sobre a cabeça o grande adereço de crânio. Era bonito, pensou. E combinava com os enfeites feitos de ossos usados por Maali. Ao menos algo a respeito daquela gente parecia no lugar. Isso e a agitação do grande lobo ao lado dele, que fez até mesmo aquele animal parecer um filhote animado.
Viu também quando os olhos do rapaz circularam pelos arredores, abrangendo todos as lideranças em volta de si e seus rituais cortesia para os quais ofereceu uma careta insubmissa que era quase engraçadinha. Então pararam sobre os dois.
Oz soube na hora que aquela pessoa sobre o alce era um caçador e isso o entediou a tal ponto que não dedicou a Maali mais que dois segundos de sua atenção antes de migrar para Yan. Ah… Ali assim conseguia ver alguma coisa interessante.
— É um prazer — Oz ofereceu em resposta a Uka. Então abriu um sorriso bem pouco político, bem mais orgânico, tão grande que fazia despontar o par de covinhas nas suas bochechas, um detalhe que Yan achou adorável. — É frio aqui, né?
Ele esfregava os braços por cima do casaco como alguém que nunca tivesse vivido nenhum inverno. Yan o observou por trás das lentes dos óculos. Ainda tinha o gorro pesado do casaco sobre a cabeça, protegendo as orelhas do frio, mas logo o abaixaria. A temperatura no Distrito era até que bem agradável para os padrões de qualquer nivariano, mas parecia um pesadelo para aquele moço enorme.
— Aqui nem tanto. Fora do Distrito é bem mais — Yan comentou, escondendo um sorrisinho nas costas da mão.
O olhar de Oz o localizou como origem da voz, então desviou-se para baixo, como se Yan tivesse sido capaz de deixá-lo tímido, e o encontrou de volta, já trajando um sorriso mais confiante.
— Eu aposto… — ele começou, se aproximando do alce com o foco tão centrado em Yan que era como se Maali nem existisse — que os locais sabem um jeito de não congelar na estrada. Então o que me falta é um guia.
Os líderes mais velhos tinham se juntado em uma pequena roda a alguns passos de distância, deixando Oz, Maali e Yan em seu próprio nucleozinho.
— E aposto também que você tem olhos bons para isso. Assim, seus olhos já são os mais bonitos que já vi. Não me surpreenderia se fossem também os melhores. Você é o filho do líder Tyr?
O riso de Yan, escondido por trás das costas da mão, ficou um pouco mais audível. Com aqueles óculos grossos que usava, chamar seus olhos de bons tinha sido um flerte tão óbvio que chegava a ser divertido.
— Meus olhos são bons para algumas coisas. Mas infelizmente ver não é uma delas. E não sou. Eu sou Yan, um curandeiro. Se procura um jovem Tyr, então fale com Maali.
Suas mãos tocaram Maali de novo na altura da cintura, o que o fez ajeitar a postura em uma reação surpresa. Ainda parecia oficial demais. Tão sério e calado que Oz tinha achado que aquela criatura era algum tipo de guarda.
— Bem-vindo a Nivaria — Maali finalmente concedeu, sem qualquer divertimento na voz. — Sim, é frio. Não somos guias.
— Ah… — Oz tentou esconder a decepção debaixo de um novo sorriso, que não foi tão empolgado quanto o que oferecera a Yan. — Gostei das fitinhas! — pontuou, apontando para as tirinhas de tecido presas aos cabelos de ambos. — A cor combina com os seus olhos — acrescentou para Yan antes de voltar a atenção para a criatura séria à sua frente. — Muito prazer… Senhorita…?
A última palavra saiu como uma interrogação. Era difícil determinar o gênero daquele ali, mas Oz percebeu que tinha errado quando a expressão de Maali tornou-se ainda mais sombria.
— Ele não sabe nada sobre nós — reclamou, dirigindo-se a Yan como se Oz não estivesse ali, da mesma forma que o rapaz havia feito consigo até então.
Era verdade, e Yan não defenderia aquele estrangeiro por algo assim, mesmo que Oz tivesse o par de covinhas mais adorável que já vira.
Convencido de que a temperatura controlada do Distrito já tornara seu casaco de neve excessivamente quente, Yan abaixou o gorro, revelando as orelhinhas nivarianas, então deixou que o manto deslizasse para descobrir seus ombros.
Sem o casaco, suas vestes eram quentes, mas menos sufocantes. Deixavam à mostra um trecho do antebraço marcado pela cicatriz de queimadura mais antiga. Unida ao curativo na mão, faziam Yan parecer demasiadamente desastrado. Ou aventureiro.
— Você se machucou… — Oz comentou, se agarrando ao primeiro assunto que pôde pensar sem deixar que o silêncio se estendesse demais. Tinha tomado o silêncio daquela criaturinha bonita como decepção, afinal.
— Não é nada de mais – respondeu o curandeiro, com uma gentileza que fazia Maali segurar uma careta. — Fronteiriços das Chamas não gostam muito de mim. Felizmente tenho Maali pra me ajudar.
— Não rápido o bastante, se você se machucou — Oz provocou, tentando uma abordagem mais casual. Sorriu para Maali, como se visse nele a ponte necessária para conquistar a atenção do seu interesse atual. — Né, amigo? Tá precisando melhorar a agilidade. Não é pra isso que treinam caça?
Maali o encarou de cima a baixo, silencioso como deveria ser o movimento de uma flecha sendo ajustada ao arco. O tempo se alongou como uma nota sustentada na corda de um violão até ficar aguda demais. E sem dizer palavra alguma, atiçou o alce para contornar o centro comunitário e instalá-lo na cocheira dos fundos.
Para Oz, a ausência de uma resposta foi mais desconcertante do que uma resposta atravessada, que poderia rebater com humor ou raiva. Encarou as costas dos dois se afastando por tempo o bastante para perceber que um lagartinho pendurado no ombro de Yan mostrava-lhe a língua como se estivesse tripudiando de si.
Continua…
No próximo capítulo… O começo da estadia de Oz (e da comitiva farkasiana) em Nivaria! Por quanto tempo a carranca de Maali pode durar?
O Capítulo 28 — Nossa terra e seus segredos chega em 11 de outubro às 12h!
Ei, vizinho! Não esquece de me acompanhar nas outras redes! 💫
Reply