💫 Pontes Imortais ― Capítulo 25

Sem vida, sem nomes

É com muita satisfação que chego até o centro do Vórtex munido da minha tesourinha inaugural para decretar INICIADA a temporada 2 de Pontes Imortais! ajeita a gravatinha

Quero aproveitar a oportunidade para agradecer a todos os leitores, especialmente aos que participam do nosso Canal do Vórtex no Telegram! O link pro grupo (e todas as minhas redes) está no meu Carrd! Aguardo vocês por lá!

No prólogo… Voltamos no tempo para a longínqua (nem tanto) época em que Nivaria ainda não tinha virado camiseta da saudade e acompanhamos um encontro peculiar entre Ravi, o nada-querido Líder Farkas, e Kuí, nosso maluco oficial. Fofocas sobre Banjora? Que interesse Farkas poderia ter na tecnologia nivariana? Acompanharemos tudo isso ao longo de grande parte desta temporada. Agora é hora de ver onde nossos outros meninos estavam naquela época. Lembram do Yan? Aqui ele ainda está vivo. Vamos lá matar a saudade.

Música-tema do capítulo: Little Things, Xdinary Heroes (sigam a playlist oficial Pontes Imortais #2 no Spotify!)

PARTIU!

Capítulo 25 — Sem vida, sem nomes

Nivaria, dois anos antes da queda da Cidade

— Yanyan, você viu? Eu assei biscoitos de lobo

Yan se assustou discretamente com a exclamação. Com a bolsa de lã pesada virada do avesso, ele batia restos de folhas secas e gravetinhos presos ao forro, acocorado perto da soleira que levava à cozinha. 

Nyan exibia a travessa a poucos metros de distância. O cabelo preso em um coque alto dava destaque às suas orelhas redondinhas, que despontavam entre uma mecha e outra como o broto peludo de alguma das plantas raras encontradas aos pés das montanhas nivarianas. 

Tinha as mãos protegidas pelo par de grossas luvas de cozinha e carregava um sorriso orgulhoso enquanto expunha a fornada de biscoitos sobre a assadeira. Se pareciam grosseiramente com várias coisas, mas lobos nunca teriam entrado na lista de Yan. Ainda assim, ele sorriu, ajeitando o forro da bolsa. 

— E por que você decidiu assar justamente biscoitos em formato de lobo? 

— Porque são legais! — Nyan voltou a exclamar, olhando sobre o ombro para verificar se a mãe vinha repreendê-lo por erguer tanto a voz. Já fazia tempo demais que não era criança, ela diria, para ficar gritando pela casa. 

Yan envolveu o ombro do irmão em um toque sutil, guiando-o de volta para que colocasse a fornada sobre a mesa. Então analisou novamente o formato, voltando a sorrir quando finalmente identificou os contornos imprecisos de um lobo em perfil. Era como encontrar formatos nas nuvens. 

— Não dê nome pros biscoitos desta vez, ou vai ficar com dó de comê-los de novo — brincou. — Esse interesse por lobos é vontade de ter um bichinho? 

— Mamãe disse que Farkas é cheia de lobos e é uma cidade muito imponente! 

— Farkas de novo… — Yan suspirou, pensando na mãe e sua mania de grandeza. Para o irmão, ofereceu seu último sorriso antes de roubar um dos biscoitos, assoprando-o enquanto o revezava de uma mão para a outra, evitando se queimar. 

— Você sabia que os lobos deles são tão obedientes que, quando uivam, soam quase como um coral? — Nyan o seguiu, aguardando atento a reação que o irmão teria ao provar o doce. — Foi a mamãe quem contou! 

— Achei que farkasianos teriam usos mais bélicos para lobos do que um coral. Mas a mamãe não tem orelhas como as nossas… Os sentidos dela são menos apurados — Yan provocou, sacudindo as orelhas de arminho para fazer o irmão rir. 

— Eles atacam de acordo com o humor do líder também!

— Não ouvi histórias sobre Farkas ser tão organizada em ataques — rebateu, se divertindo com o súbito foco do irmão. — Nossa mãe sempre faz todos os lugares parecerem mais legais do que Nivaria, lembra?

Todos. Ainda assim, segundo ela, o Deserto devia ser muito seco. E Banjorianos eram muito metidos. Sobre Aruvi, raramente falava — consequência do quão pouco querida havia sido por aquelas terras. Então restava Farkas, que ela insistia em pintar com palavras bonitas, como se lá residissem as criaturas mais sortudas das Cidades Flutuantes. 

Yan nunca havia conhecido um farkasiano, não de perto. Sua impressão era a de que pareciam, quase sem exceção, como um bando de filhotes agitados. Divertidos, a princípio, mas cansativos. Perdidos, se deixados sem supervisão. 

— Veja, Nyan, o meu biscoito vai se chamar Farkas — decidiu, mostrando o biscoito entre os dedos. 

— Se você der nomes, vai ficar com dó de… 

As palavras de Nyan nunca encontraram o fim da frase. Levando o biscoito à boca, Yan quebrou-o ao meio com uma mordida. Então sorriu, enquanto mastigava sob o olhar estarrecido do irmão caçula. 

— Ficou uma delícia. Você só melhora a cada fornada, Nyan. Um dia, vai ser o melhor confeiteiro das Cidades Flutuantes. As pessoas vão encarar vários dias só para provar os seus doces. Farkasianos, inclusive. 

Os olhos de Nyan brilhavam. De acordo com a mãe,  não havia magia aruviana naquele par de íris negras, mas Yan conseguia vê-la perfeitamente, fluindo ao redor das pupilas com um brilho quase impossível. 

— Guarda mais biscoitos para mim. Eu volto logo. 

— Você vai sair agora?

A pergunta não vinha à toa. Nyan desembaçou a janela com a manga das vestes. Pelo vidro grosso, podia ver um pedacinho do céu lá fora. O vórtex assumia tons cada vez mais escuros, um azul profundo pincelado com nuances de carmesim. Aquele padrão indicava uma nova camada de neve em breve, para voltar a cobrir de branco os campos cristalizados pelo orvalho congelado. 

— É rápido — Yan garantiu. — Você sabe que alguns tipos de cogumelos para chás só são encontrados nesse tempo. Se esperar a neve cair, então vou custar a consegui-los. Se a mãe perguntar — abaixou a voz —, diz que alguém importante encomendou esses fungos. 

As botas o esperavam na soleira que levava à varanda. Era toda fechada, como uma antessala, pontuada por duas janelas grossas. A casa era pequena o bastante para que quase tudo que não fosse usado no dia a dia permanecesse acumulado naquele espaço, por cima dos vasos de plantas meio molengas que Yan tinha insistido em tentar cuidar e então desistido, dada a insistência de sua mãe em estragar toda a sua planejada rotina de regas. 

O capuz do casaco pesado amassava suas orelhas contra o cabelo, abafando os sons. Havia uma infinidade de modelos em Nivaria com espaço para as orelhas, mas Yan nunca se adaptou àqueles. O frio nas orelhinhas podia muito bem ser o traço mais jocoso de seu lado aruviano, tirando sarro dele por ter crescido em meio à neve. 

— Não devia estar esse frio tão perto do início do degelo — Yan resmungou, encarando o lago ainda congelado.

Dali podia ver a estrada que vinha da ponte que os ligava a Farkas — a única ponte que os conectava a qualquer lugar. Sua mãe sempre gostou de viver nos limites da cidade. Não teriam dificuldade de chegar no centro se precisassem de algo, mas também estariam bem perto da ponte, caso precisassem sair. Essa parte, Yan achava bobeira. Nunca precisaram sair de Nivaria. 

Percorreu o olhar pelo gramado sofrido que rodeava o lago. Era surpreendente que a vegetação ainda sobrevivesse mesmo com o frio. O suplemento jogado nos descampados tinha mesmo sido um avanço eficiente. Quando chegasse o degelo, aqueles campos floresceriam novamente, como se tomados por magia. 

Contudo, havia pouca magia na ciência nivariana. Ele próprio era uma dessas raras exceções, educado em medicina, treinado em cura e agraciado com a imponência mágica de seu lado aruviano. 

Que fosse o discípulo favorito dos antigos mestres curandeiros, entretanto, tinha bem pouca ligação com seus olhos ou com a magia que transbordava das íris alaranjadas. Tinha se esforçado em ser nada menos do que brilhante por anos e anos. A dádiva com que a magia lhe agraciara, aquela que lhe permitia trazer a vida de volta, tinha sido conservada latente por muito tempo, até que seus mestres julgaram que poderia utilizá-la como uma ferramenta, mais do que como seu único talento médico. 

— Não pode se esconder de mim.

Sua voz soou risonha enquanto cruzava a distância que o separava daquele fungo em particular. Ele surgia da terra, quebrando a camada de gelo. Era escuro e duro como um corno, então se abria dias depois como a casca da banana, revelando um cogumelo achatado. De onde estava, Yan via um punhadinho deles, em estágios diferentes de crescimento. Mais ao canto, escondidos entre as raízes de uma enorme árvore, estavam os cornos ainda duros. Alguns passos para o lado, já na região onde o gelo se misturava a um lamaçal, viu os pequenos fungos descascados. 

Se dirigiu até eles, agradecendo ao par de botas por manter seus pés secos. A neve que restava sobre a relva era suja, bem pouco branca, mais uma mistura disforme e marrom como barro. 

Foi assim que o notou. 

O corpinho do lagarto era de pele lisa, clarinha. Um pouco mais de neve e teria sido impossível vê-lo. 

Yan desviou do caminho, fazendo a curva para se abaixar perto do corpinho sem vida, então o cutucou com a ponta do dedo.

Não estava rígido ainda. Provavelmente, não tinha estado morto por muito tempo antes de encontrá-lo. 

Tomou-o sobre a palma. O lagarto ocupava grande parte do espaço, o corpinho roliço esparramado da base da palma até a ponta dos dedos, as patinhas sem vida largadas molengas para os lados, a cauda longa desabando pelo pulso de Yan. 

Levou-o até perto do tronco da árvore e se sentou sobre uma das raízes mais secas, analisando o cadáver do bichinho. Segurando sua pata, virou o corpinho para o lado, revelando uma pequena constelação de manchinhas marrons nas costas, que constatou não serem manchas de lama. 

Uma das patinhas da frente era mais rígida, natural, os movimentos das juntas pareciam anatomicamente apropriados. A outra era mole e mais flexível, não de um jeito bom, mas como se os ossinhos ali dentro tivessem sido esfarelados. 

Ele não tinha feridas externas, entretanto, o que só levava Yan a uma possível causa de morte. 

— Mais uma vítima do frio nivariano — sussurrou. E deixou escapar um suspiro. — Será que você era um lagartinho de Farkas, todo delicado pro frio?

A pele do lagarto estava gelada. Se o colocasse de volta no chão e voltasse em algumas horas, era capaz de encontrá-lo envolto em uma crosta de gelo. E então o corpinho só começaria a apodrecer verdadeiramente quando viesse enfim o degelo. 

Mas Yan tinha outros planos. Planos que o fizeram erguer um sorriso orgulhoso. 

Ergueu a mão no ar, pousando-a sobre o peito do lagarto. E olhou ao redor, como se esperasse encontrar um dos seus mestres curandeiros prestes a dizer que não deveria levar a cura com aquele sorriso prepotente de quem acha que se tornou um dos Imortais. 

Deixou sumir o sorriso devagar. Não precisava sorrir para se sentir orgulhoso e, sem o sorriso, não incomodaria nenhum de seus professores. A seriedade era uma boa máscara de humildade.

Com os olhos transbordando faíscas laranjas, Yan deixou que a magia fluísse de seus dedos para o corpo inerte do lagarto. Não tinha muita experiência no uso daquela magia. Só sob fiscalização, diziam os mestres. Só quando fosse solicitado, ou necessário. Sua prática com pequenos bichinhos era um segredo bem guardado pelos campos afastados da cidade. 

Injetou o cadáver do réptil com magia e esperou que se movesse. Ele seguia estático como um boneco.

— Vai… eu sei que fiz certo — sussurrou para o ar. 

Nunca tinha falhado. Treinava sempre que podia para ser perfeito. Assim, no dia em que precisassem, estaria pronto. E então estaria certo por ter praticado. Estaria certo o tempo todo, como sabia que estava.

A primeira coisa que se mexeu foi um dedinho da pata boa, então os outros; finalmente as patas posteriores e a cauda, meio atrapalhada. A patinha desajeitada permaneceu sem movimento, jogada para o lado, mesmo quando o peito do lagarto voltou a se mexer, subindo e descendo em arfadas audíveis. 

Yan notou como o lagarto agitava três das perninhas tentando conseguir algum apoio, mesmo ainda desnorteado. Resolveu ajudá-lo virando-o de barriga para baixo ainda sobre as mãos, e o trouxe para perto do rosto, notando os olhinhos ainda apertados para evitar claridade. 

— Oi — voltou a sussurrar, brincando. Conter o orgulho no sorriso se tornava uma façanha cada vez mais difícil. 

Os olhos do animal se abriram, alertas, e seu rostinho se virou na direção da voz. O momento de silêncio parecia planejado, como nas contações de história dos garotos mais velhos que povoava as memórias de infância de Yan. 

O grito que o sucedeu já era bem menos planejado, bem menos ordenado. Era um som agudo como o berro de uma criança. Não se parecia em nada com o som de qualquer lagarto que já tivesse ouvido. 

Assustado, Yan perdeu o equilíbrio e caiu para trás, as pernas presas na raiz larga da árvore, por onde o lagarto manquitolou para fugir.

Com uma careta, se levantou e passou as mãos pelas vestes molhadas. Deu sorte. Um pouco mais para perto do lago e as teria empapadas em neve lamacenta.

Não demorou para achar o lagarto se arrastando para longe como se Yan fosse um predador em caça. A pata ferida era um atraso desvantajoso. Em poucos passos, o curandeiro o alcançou, se abaixando para voltar a pegá-lo na mão, ouvindo um novo grito, já com bem menos elementos surpresa. 

— Por que você berra desse jeito? — Yan perguntou, curioso. 

— E você? Por que fica pegando os outros assim? Sua mãe não te deu educação, não? 

O gritinho agora veio de Yan. Era bem menos potente e esganiçado. Não esperava aquela resposta, porque não esperava resposta nenhuma. 

Em toda a vida, nunca havia encontrado um bicho falante, ainda que os registros de estudo dessem conta de relatar algumas histórias sobre eles. Yan nunca os havia visto, nem ninguém da sua família, nem mesmo — mas essa precisaria confirmar — nenhum dos outros discípulos nivarianos. E ali estava um deles agora, bem na sua frente. Um bem pouco cortês, mas que o fazia sentir novamente único

— Ficou falando do meu berro só pra responder ele com esse gritinho de dondoca? E eu achando que você era um monstro!

— Eu pareço um monstro? — Yan questionou, fazendo careta. Colocou o lagarto sobre uma pedra mais alta e se abaixou, olhando-o de perto como se procurasse um indicativo de que havia algo peculiar naquele lagarto além da fala. — Eu te trouxe de volta.

— Até mesmo uma dondoca bonitinha que nem você ia parecer monstruosa a meio palmo da minha fuça, moça. Nem vem ficar ofendida! E o que você tá esperando com esse papo de que “me trouxe de volta”? Um prêmio? Aqui, ó — erguendo o dedo no ar, o lagarto fez um gesto que levou Yan a cobrir a boca em descrença. — Seu prêmio!

Tinha levado tudo com certo espanto até ver o gesto daquele lagarto mal-educado em cima da pedra. Então tudo o que Yan conseguiu fazer foi rir, cobrindo a boca com as costas da mão. 

Ele parecia inofensivo. E engraçado. E para onde achava que estava indo, mancando daquele jeito no terreno congelado? Ia acabar perdendo os movimentos da outra pata.

— Eu não sou moça — corrigiu, tocando levemente uma das fitas cor de areia presas aos cabelos que desciam até os ombros. Ele não as tinha visto ou não as tinha compreendido? Aquele era outro indicativo de que o lagartinho falante não era mesmo nivariano.

— E eu tenho coisa mais importante pra fazer do que discutir seu gênero, colega — ele rebateu, virando o corpinho num movimento brusco, então sapateando com as patinhas boas de um lado para o outro da pedra, vendo o chão coberto de gelo lá embaixo com uma careta. 

Yan fixou os olhos na patinha ferida erguida no ar. 

— Isso aí não doi?

— Não. Nadinha — o lagarto enfatizou, espaçando cada sílaba com um movimento desengonçado da pata, que por si só reverberava em uma careta. 

Devia doer muito, ainda mais naquele frio. Se entendia o bastante sobre répteis, então Yan achava que uma cobertinha não faria mal ao lagarto. 

— Você tem certeza? Porque calhou de você conhecer justamente um curandeiro. Se estivesse doendo, então… talvez um curandeiro pudesse fazer algo.

Yan ergueu os ombros, fingindo desinteresse. E fingiu observar o céu enquanto o lagarto analisava novamente sua falta de rotas de fuga. E testava o movimento da patinha, reagindo com uma nova careta. 

— Não tenho dinheiro. Você passa fiado? 

— Abro essa exceção — respondeu, e estendeu a mão, pousando-a na pedra para que o lagarto pudesse escalá-lo. 

Ele o fez, se detendo na mão de Yan por um tempo até se decidir que aquele parecia mesmo um curandeiro bonzinho, então escalou as mangas de suas vestes até se enfiar debaixo do seu cabelo. 

— Ei! — Yan protestou, tentando alcançá-lo. O lagarto revidou com uma mordida em seus dedos. 

— Você nunca ouviu aquele ditado, colega? Não ofereça a mão se não quer dar o braço? 

— Não é bem assim, pelo que eu me lembro. — Yan franziu a testa, resmungando quando o lagarto puxou uma mecha de seu cabelo. — Ei!

— Só me ajeitando. Você tem esse tanto de cabelo pra esquentar a nuca nesse inferno gelado e eu não tenho um fiozinho!

Ele resmungava muito, Yan pensou. Tanto que não estavam juntos há mais de dez minutos e já conseguia prever o quanto precisaria da própria paciência para lidar com ele. 

— Olha, eu tinha vindo até aqui atrás de uns cogumelos. Eu posso pegar e aí a gente vai pra casa. Meu irmão vai adorar conhecer um lagarto metido como você e então a gente pode ver essa patinha.

— E tem o quê pra comer nessa sua casa? — ele questionou, se revirando no ombro de Yan até espiar o caminho por trás de sua orelha. 

— Sopa. 

— Só isso? 

Yan ergueu as sobrancelhas. Metido mesmo. Até há pouco estava morto, largado no gelo, e não precisou nem de uma lasquinha de intimidade para ser invasivo e reclamão. 

— Com… pão? — ofereceu.

— É, serve. 

— Todos os lagartos são assim que nem você?

— Assim como? — ele perguntou, dando uma pausa antes de acrescentar: — Lindos?

Aquela fez Yan rir. Abaixou-se perto de um dos cogumelos mais crescidos, encaixando a mão em sua base para extraí-lo da terra com casca e tudo. Colheu mais um logo depois. E um terceiro e último, mesmo que aquele ainda estivesse a alguns dias do crescimento perfeito. A neve não permitiria, pelo que via no céu. 

Do seu ombro, o lagarto parecia entretido o bastante para ficar quieto, se esticando para farejar o ar quando o último dos cogumelos saiu do chão, então voltando a se encolher, puxando o cabelo de Yan para cima do corpinho como se fosse uma manta.

— Meu nome é Yan, aliás. — A apresentação veio tão sutil que o lagarto demorou a entender que era com ele. — É apropriado dizer, né? Já que você se alojou aí no meu ombro. Pretende me contar o seu também. 

— Se eu estiver de bom humor — ele resmungou. Yan não esperava que a resposta viesse depois daquilo e da pausa que ele fez, mas ela veio, baixa como um sussurro. — … Shu Lan. Tá bom pra você?

Aquilo o fez sorrir. Escolher trazer de volta a vida daquele bichinho tinha sido o certo, não importava o que dissessem os mestres.

— Yan — Shu chamou, a voz acompanhada de uma puxadinha em uma mecha, como se o lagarto achasse que seu cabelo era um sininho por atenção —, você não é mesmo um monstro, é?

Aquilo o desarmou. Yan abriu a boca, então voltou a fechá-la. Tocou o dedo sobre a boca e virou o rosto como pôde, mesmo que ver Shu Lan fosse impossível naquele ângulo. Sorriu, por fim.

— Não.

— Que bom. Porque se fosse, eu teria que te matar durante a noite. 

Ele riu. Foi como Yan soube que era uma piada. 

Um estalo cortou a conversa antes que Yan pudesse retrucar a ameaça. Alerta, ele cruzou os poucos passos que o separavam da enorme árvore, se escondendo atrás do tronco.

Os mais velhos e os monges eram incisivos nas instruções de segurança: a qualquer sinal de Fronteiriço, buscar abrigo ou se esconder. Não tentar lutar por conta própria e esperar pelos caçadores. 

Yan não tinha em seu corpo um único osso de lutador, mas tinha, em compensação, vários de aventureiro, qualidade que o fazia um bom curandeiro, disposto a montar o mais completo arsenal de ervas. 

— O que estamos fazendo? — Shu perguntou, se abrigando rente à nuca de Yan, que o calou com um sinal.

Os passos que ouviu avançar pela estrada eram ritmados como os de um quadrúpede, discretamente pontuados bem ao fim do movimento por um som que se parecia mais metal do que casco. 

Um alce, constatou colocando parte do rosto de fora pela lateral do tronco; um parrudo alce quase todo metalizado. Sobre ele, montavam a monja Apudi e uma figura não muito alta, envolta em peles. Uma mecha de cabelo rosa e cacheado despontava pela abertura do gorro.

— O doido do circo — Shu sussurrou. E Yan franziu a testa.

Kuí, o famoso Instrutor da Ópera do Fim do Mundo. Yan não o teria reconhecido àquela distância, mas agora que Shu havia dito, achava que só podia mesmo ser ele. A escolta de Apudi era indicativo de um representante diplomático renomado. 

— Deve estar aqui por conta do problema de Banjora — Yan respondeu.

Sua mãe era uma fonte inesgotável de fofocas das cidades, trazidas das suas inúmeras idas ao centro de Nivaria, das visitas às casas de beleza e mercearias. Jiao não era mesmo uma figura agradável a longo prazo, mas a grande maioria das pessoas tolerava de bom grado um inconveniente bem informado. 

Se a situação em Banjora tinha sido suficiente para entrar em suas rodas de fofoca — e consequentemente a feito repetir a história algumas vezes pela casa, falando com as paredes como se as visse como um fiel público silencioso —, então a presença do Senhor Instrutor podia indicar uma reunião diplomática. 

E acompanhado dela…

— Maali deve vir pra cidade! — Yan se viu sorrindo, a empolgação cobrindo o rosto quando recostou o corpo no tronco. 

— Ih, e esse é quem? Seu namorado? — Shu cutucou, mordendo o ar quando Yan ameaçou dar-lhe um peteleco. — Ei, eu estou ferido, curandeiro! Lembra?

— Só quando te convém, pelo jeito. Mas vamos. Talvez hoje à noite ainda dê tempo de montar uma malinha.

— Malinha? Pra quê? Pra onde vamos? — questionou Shu. A velocidade com que simplesmente se enfiou em sua vida fazia Yan achar graça. 

O mais provável é que o usasse de carona até a cidade e então sumisse, mas pelo menos teria a história. O dia em que salvou um lagarto falante. E ao menos alguém na cidade teria tido tempo de ver a prova sobre seu ombro.

— Pra cidade. Ver algumas pessoas importantes. Não lembro te ter oferecido carona para lagarto, mas posso, depois de ver essa pata ferida.

Rodeando o tronco pelo lado oposto, Yan apressou o passo pela relva gelada. Naquele ritmo mais rápido, seu cabelo atingia o lagarto em seu ombro a cada sacolejar. 

— Yan.

— O quê, agora?

— Se vamos pegar estrada assim, você vai ter que prender o cabelo. Ou raspar. Pode decidir entre esses dois.

Continua…

No próximo capítulo… Finalmente a fofoca completa sobre a situação em Banjora! E Maali, nosso menino dos sonhos (Cidades Flutuantes edition) entra em cena! Ansiosos pra conhecer ele na skin nivariana?

O Capítulo 26 — Cinza como geada chega em 27 de setembro às 12h!

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